A “Pastoral” nunca me conquistou durante meus tempos de guri. Preferia ouvir as sinfonias ímpares, as obras de grandes gestos: o portento da “Eroica”, a Quinta, ou a “apoteose da dança” – nas palavras de Wagner – da Sétima. Achava a “Pastoral” engraçadinha e um pouco enfadonha. Talvez a tormenta de meus tempos espinhudos me soprasse em direção de mais fortes e fortíssimos e de vivaces e vivacíssimos. Tampouco as interpretações que ouvia contribuíam para melhorar o quadro. Ouvia os jurássicos, e os então novos, e nada me convencia. Detestava em especial a versão de Wilhelm Furtwängler (aqui inclusa), que me soava incomparavelmente desconexa e sem pulso. Acho que era isso: os regentes não conseguiam achar um pulso que servisse para a “Pastoral”. Seria ela um calcanhar de Aquiles dos grandes maestros? Foi o que pensei, até encontrar a interpretação de Gardiner (também incluída nessa postagem) que finalmente a revelou para mim. Desde então eu a revisito com frequência, inclusive as gravações jurássicas, e passei até a ouvir com mais gosto aquela do Furtwängler, embora ela ainda não me desça bem.
A “Pastoral” cresceu em meu conceito, também, quando fui sobre ela aprender. Descobri que era a gêmea bivitelina da Quinta: compostas paralelamente numa mesma e prolongada gestação, com os mesmos dedicatários, estreadas no mesmo dia e em ordem invertida (a “Pastoral” primeiro, o que a fez ser considerada a “quinta” até a publicação de ambas, no ano seguinte), e, ademais, compartilhando o mesmo recurso de unir os dois últimos movimentos e de fazer flautim e trombones aguardarem pacientemente para irromperem, com grande efeito, no quarto movimento. Entre as tantas obras de Beethoven a levarem apelidos, ela carrega a distinção de ser uma das poucas a ganharem-no do próprio compositor, que a batizou Pastoral-Sinfonie oder Erinnerungen an das Landleben (“Sinfonia Pastoral ou Lembranças da Vida no Campo”). Composta em Fá maior – a tonalidade-clichê para evocações pastorais -, ela foi uma das primeiras composições com conteúdo assumidamente programático, e certamente a primeira sinfonia de um grande compositor com tal conteúdo. O próprio Ludwig desdenhava a música descritiva, e chegou a mencionar com pesar em sua correspondência as passagens em que o grande Haydn, em seus oratórios, imitava animais e fenômenos da Natureza. Não obstante, incluiu em sua “Pastoral” uma vívida evocação duma tempestade e, de forma ainda mais notável, o canto de três pássaros: o rouxinol (na flauta), a codorniz (oboé) e o cuco (clarinetes), todos óbvios na “Cena no regato” e com seus nomes indicados na partitura.
Beethoven provavelmente se sentia bastante ambivalente em colocar esses elementos em música, pois a partitura autógrafa e os rascunhos são repletos de anotações e lembretes para não perder o prumo: “os ouvintes devem conseguir descobrir as situações”, “Sinfonia caracteristica – memórias da vida no campo”, “Sinfonia pastorella – qualquer um que tenha ideia de como é vida no campo deve deduzir as intenções do compositor sem muitos títulos”, “mesmo sem os títulos o todo será reconhecido mais como uma evocação de sentimentos do que pintura com sons” e, talvez a mais importante de todas, “toda pintura em música instrumental está perdida se é por demais forçada”. De qualquer forma, Beethoven, que foi por toda vida um urbanita, amava a vida no campo. Fazia longas caminhadas – sempre com seus cadernos de anotações – fora dos muros da cidade e passava todos verões que podia nos sossegados subúrbios de Viena – num dos quais, Heiligenstadt, viveu o maior desespero de sua vida. A ocupação da Áustria pelas tropas napoleônicas impediu-o de fazer seus retiros, de modo que a composição da “Pastoral” certamente foi estimulada por fortes e genuínos sentimentos de nostalgia.
A inspiração funcionou, e os rascunhos mostram uma gestação muito menos conturbada que a da Quinta – até a medonha caligrafia do compositor parece mais legível. Pelo que deduzimos de sua correspondência, ele considerava a “Pastoral” um ferrolho do atribulado processo de composição da sinfonia-gêmea, o que é curioso se considerarmos que ambas foram lançadas ao público na mesma ocasião, praticamente no atacado, junto com a Fantasia Coral e o quarto concerto para piano. O mal ensaiado concerto de estreia certamente não contribuiu para qualquer das obras ser bem recebida. A frieza da crítica foi tão grande quanto a do teatro naquele dezembro gelado em Viena, a que se seguiu uma polêmica sobre se era apropriado que tais “evocações de sentimentos” fossem incorporadas à música de concerto. A discussão, hoje, parece superada, depois de tantas Sinfonias Fantásticas e Aberturas 1812, e do próprio Beethoven voltando à carga, anos mais tarde, com a ruidosa “Batalha de Wellington”, composta para ganhar dinheiro e que algum dia ouviremos aqui. A “Pastoral”, hoje, soa-me como uma obra-prima do mesmo nível de sua gêmea bivitelina, bem-sucedida tanto em sua capacidade de evocação quanto em expressividade. À sua já significativa discografia aqui no PQP Bach, que recebeu há alguns meses a importante contribuição do colega Chucruten, num guia de gravações comparadas cuja leitura fortemente recomendo, somam-se agora estas doze outras versões. Espero que algumas delas lhes agradem – e, se me permitem a sugestão, comecem por Chailly, Jansons ou Gardiner, que não irão se arrepender.
Sinfonia no. 6 em Fá maior, Op. 68, “Pastoral”
Composta entre 1802-1808
Publicada em 1809
Dedicada ao príncipe Lobkowitz e ao conde Andreas Razumovsky
1 – Allegro ma non troppo – Erwachen heiterer Empfindungen bei der Ankunft auf dem Lande (“Despertar de sentimentos alegres com a chegada ao campo”)
2 – Andante molto mosso – Szene am Bach (“Cena à beira de um regato”)
3 – Allegro – Lustiges Zusammensein der Landleute (“Alegre reunião de camponeses”)
4 – Allegro – Gewitter, Sturm (“Trovões, tempestade”)
5 – Allegretto – Hirtengesang. Frohe und dankbare Gefühle nach dem Sturm (“Canção de pastores. Sentimentos alegres e gratos, após a tempestade”)
Wiener Philarmoniker
Wilhelm Furtwängler
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
NBC Symphony Orchestra
Arturo Toscanini
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Chicago Symphony Orchestra
Fritz Reiner
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Berliner Philharmoniker
Herbert von Karajan
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Chicago Symphony Orchestra
Sir Georg Solti
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Sinfonieorchester des Norddeutschen Rundfunks
Günter Wand
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Koninklijk Concertgebouworkest
Bernard Haitink
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
The Hanover Band
Roy Goodman
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Orchestre Révolutionnaire et Romantique
John Eliot Gardiner
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Symphonieorchester des Bayerischen Rundfunks
Mariss Jansons
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Gewandhausorchester Leipzig
Riccardo Chailly
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Berliner Philharmoniker
Sir Simon Rattle
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
#BTHVN250, por René Denon
Vassily
Gratíssimo! Permito-me adicionar à nobre lista a leitura que Norrington faz, com The London Classical Players, das sinf. 5 e 6. Abraços
El enlace de Reiner lleva a la quinta sinfonía.
El enlace ya fue corregido. Gracias por apuntarnos el error!
Gracias a ustedes, en todo caso.
Ver un film con Reiner y luego escucharlo es una de las cosas mas chocantes que he visto/escuchado en la dirección de orquesta. ¡Cómo debía de ensayar! Él estaba allí para que lo animaran, no al revés.
Lean mi español en portugués porque el traductor hace herejías.
Oi a Gravação de Rattle é da 5a e não da 6ª.
Um abraço
Chailly também. É a quinta e não a sexta
Chailly também. É a quinta e não a sexta Um abraço
Caro Agostinho,
Poderia, por gentileza, tentar baixar novamente?
Acabo de conferir as ligações mencionadas e elas me pareceram corresponder às sinfonias corretas.
Um abraço!
Lá vou eu de novo: O Gardiner: tá com defeito (dá uma engasgada) várias vezes na faixa 7 (um exemplo em 3’15”)
Final da faixa 8 também
Caro Agostinho,
Acredito ter corrigido o problema. Grato por apontar os soluços da ripagem!