Johann Sebastian Bach (1685-1750): A Paixão Segundo São João, BWV 244 (Herreweghe, 2020) ֍

 Bach 

Johannes-Passion

Collegium Vocale Gent

Philippe Herreweghe

 

Em 1724 Johann Sebastian Bach estava em seu segundo ano como o Cantor da Igreja de São Nicolau, em Leipzig, e apresentou na Sexta-Feira Santa sua Passio secundum Johannem. Os acordes iniciais do coro de abertura devem ter realmente provocado grande impacto na congregação, não necessariamente positivo, uma vez que na reapresentação da obra no ano seguinte, o número foi substituído por um coral mais ‘ameno’. É possível que Bach tenha iniciado a composição desta obra magistral nos anos anteriores, em Weimar, e ele prosseguiu fazendo adaptações e mudanças nas quatro apresentações posteriores à estreia.

Esta é a terceira gravação desta Paixão feita por Herreweghe, sendo que na segunda delas ele usou a versão de 1725 e Herr, unser Herrscher… não foi gravado. Ainda bem que ele desta vez tenha escolhida a versão estabelecida que todos os outros maestros geralmente escolhem.

Em um artigo escrito para The New Yorker, Alex Ross dedica muita atenção a este número de abertura da obra e vale a pena a leitura, que pode ser feita aqui.

Ele trata da verdadeira obsessão que Bach tinha em copiar e estudar as partituras dos outros compositores e por isso, apesar de ter vivido toda a sua vida em uma área relativamente pequena, conhecia a música dos mais importantes compositores da Europa, e não apenas os seus contemporâneos.

Quando chegou a vez de compor sua Paixão, ele certamente conhecia obras de outros mestres, alguns do passado, como o pioneiro Johann Walther e posteriormente Heinrich Schutz, mas também de seus contemporâneos. Handel compôs música para uma Paixão segundo São João, com texto de J. G. Postel, quando tinha ainda 19 anos.

São João, Evangelista, pelo pintor francês Jean Bourdichon (1457-1521)

Segundo Geiringer, a parte principal do texto é bíblica, neste caso extraída de São João 18-19 (com curtas inserções de São Mateus). A narração é feita na forma recitativa por um tenor, o Evangelista. Personagens individuais, incluindo o Cristo, são cantados por solistas, as falas de grupos de pessoas e multidões pelo coro. Ariosos e árias inseridas entre as partes da narração expressam a reação do indivíduo aos eventos descritos, os corais as de toda a congregação. Afinal, esta música foi composta para fazer parte integrante do serviço daquele importantíssimo dia. Bach foi responsável pela seleção de corais e deve também ter providenciado o texto das árias. Ele seguiu o modelo do texto de autoria de Barthold Heinrich Brockes, de Hamburgo, Der für die Sünden dieser Welt gemarterte und sterbende Jesus (Jesus torturado e morto pelos pecados deste mundo), mas nunca literalmente. Interessante notar que os corais são relativamente simples. Eles oferecem uma oportunidade para a comunidade participar da execução da obra. Portanto, não se faça de rogado e cante junto estas partes…

Há várias maneiras para se ouvir esta maravilhosa música. Você pode simplesmente colocar a música para ouvir pelo prazer estético e deliciar-se com a beleza das árias, com a versatilidade, força e dinâmica dos coros, com a dramaticidade da narração e com a singeleza dos corais. E pronto…

Mas, se quiser, Bach oferece mais que isto. A obra tem uma construção extremamente bem planejada, buscando um equilíbrio e uma perfeita distribuição das diferentes intervenções, do narrador, dos personagens e das multidões. Também há equilíbrio na escolha dos tipos de solistas: tenor, soprano, contralto e baixo.

Ou seja, se sua abordagem é de busca de prazer pela estética da obra, poderá buscar mais do que só ouvir este ou aquele número (nada de errado com isso), mas procurar uma visão de todo o conjunto da obra.

Finalmente, não é por nada que Bach é chamado de o quinto evangelista. Ele nos convida a uma reflexão, um passo mais ousado na direção do que, na falta de palavra mais apropriada, chamaremos de espiritualidade. A obra expõe um dos aspectos talvez mais perturbadores da fé, que é a do sacrifício. E aqui, o sacrifício do Filho de Deus é apresentado em cores vivas. É este aspecto que fica evidente logo na abertura da obra e é por isso que ela é tão importante para o conjunto. Estamos diante de uma abertura que diz claramente que o que está por vir não é para os fracos de coração.

E está tudo lá: a traição com a captura do Senhor, com direito a Pedro decepando uma orelha do pobre Malchus. A atitude de Jesus se oferecendo para a captura, intervindo pela liberdade de seus discípulos.

A Negação de Pedro, de Theodoor Rombouts

Temos a negação de Pedro, que era muito humano, como nós o somos. Todos os meandros e delicadezas do interrogatório do acusado, com Pilatos tentando safar-se da enrascada de condenar um inocente. Os detalhes para que as palavras da antiga profecia fossem satisfeitas, como os soldados jogando dados para decidir com quem ficaria a túnica do Senhor. A escolha entre o nazareno e Barrabás é impressionante, assim como os gritos demandando a crucificação. Pilatos ainda diz duas impressionantes falas: o Ecce homo – Sehet, welch ein Mensch! – e o sutilíssimo Was ich geschrieben habe, das habe ich geschrieben. O que eu escrevi, eu escrevi! E é claro, o sacrifício precisa ser cumprido. Mas antes, aquele discípulo que ele amou ao lado de sua mãe e as outras Marias, recebe a incumbência de zelar por ela.

Ecce Homo, Caravaggio

Todas estas passagens são entremeadas pelas mais lindas árias, que cumprem o papel de refletir sobre os significativos momentos. Por exemplo, ao cumprir-se o calvário, com a morte do Senhor, e morte de cruz, ouvimos uma ária lancinante, cantada por um contralto: Es ist vollbracht! Esta é a primeira frase da ária, que repete a última fala de Jesus, ao entregar seu espírito. O sacrifício está completo, cumpriu-se. Para fazer contraponto a está atual interpretação da famosa ária, apresentada nesta postagem, você poderá ver, clicando aqui, como esta música tem atravessado os tempos sempre encantado e tocando os corações das pessoas. A gravação que está no Youtube apresenta a contralto inglesa Kathleen Ferrier, cantando em inglês.

Deposição da Cruz, van der Weyden

Temos ainda uma etapa, a deposição da cruz e o sepultamento. Palavras terríveis. E assim termina a Paixão, com Jesus sepultado. Afinal, só no Domingo de Páscoa ele ressurgirá, mas aí é outro Oratório, que você poderá ouvir se clicar aqui.

Como acontece nas grandes obras de arte, quanto mais nos aproximamos delas, mais minúcias e detalhes impressionantes descobrimos. No caso das obras musicais dependemos dos intérpretes e nos nossos dias, também das equipes de gravações que nos levam para mais perto destas maravilhas. Mas para não desperdiçarmos tamanhos tesouros, precisamos aplicar um certo esforço.

Apesar de já ter ouvido esta obra diversas vezes, a cada vez descubro algum novo detalhe que me impressiona ou que me inspira. Nesta gravação gostei muito do conjunto todo, mas chamo a atenção para o coro de abertura, tremendo, e para a ária de tenor que transmuta o sangue do dorso de Jesus nas cores de um arco-íris que do céu nos abençoa.

Independentemente da maneira que você escolha para ouvir esta maravilhosa gravação, que ela lhe toque o coração, de alguma maneira.

Johann Sebastian Bach (1685 – 1750)

Johannes Passion

Parte 1

[1-7] Traição e Prisão
[8-14] Negação

Parte 2

[1-6] Interrogatório e Flagelação
[7-12] Condenação e Crucificação
[13-18] A Morte de Jesus
[19-26] Deposição e Sepultamento

Maximilian Schmitt, Evangelista

Krešimir Stražanac, Jesus

Dorothee Mields, soprano

Damien Guillon, contratenor

Robin Tritschler, tenor

Peter Kooij, baixo

Collegium Vocale Gent

Philippe Herreweghe, regente

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE

FLAC | 425 MB

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE

MP3 | 320 KBPS | 245 MB

Collegium Vocale Gent

Veja o que a Gramophone disse sobre esta gravação:

Contributing to the discerning unity of vision and character of this performance is how the instruments sit embedded at the heart of the vocal sound…This is indeed one of the most thoughtful, affecting and powerful St John Passions in recent years. It reveals the mature mastery of Herreweghe at his most perspicacious and consistent, with Collegium Vocale Gent paving the way with gold.

Então, tá esperando o que? Aproveite!

René Denon

6 comments / Add your comment below

  1. Puxa vida, estão realmente caprichando nessa Páscoa!!!
    Obrigado por esse presentão.
    Não ouvi ainda, mas tenho certeza que isso vai ser um deleite absoluto.
    Ótimo bálsamo pro tédio da quarentena.

  2. Sempre gostei mais da Paixão segundo São João, em grande parte por causa desse coro inicial Herr, Herr… que já começa fazendo um golaço de bicicleta.
    Não sabia que havia uma versão sem esse coro, de qualquer jeito ele foi a gota d’água que faltava pra eu querer ouvir essa gravação do maravilhoso grupo de Gent e Herreweghe!

  3. Oi René. Que postagem linda ! Vou tomar a liberdade de dizer como gosto de ouvir esta obra do quinto Evangelista: aparelho de som num nível adequado (para não incomodar os vizinhos) uma taça de vinho, queijo e a leitura da tradução. Uma postagem gigante da gigante obra do gigante Bach. Abaixo a tradução da Johannes Passion:

    https://1drv.ms/b/s!Ap9EE3ZSC6Nl12jW0bfHY46Wp2OX

    Um Abração !

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