Imaginem só a cena: 1790, coroação de Leopoldo II como imperador do Sacro-Império Germânico, toda a pompa e circunstância na frente de incontáveis príncipes, duques e similares daquelas dezenas de reinos que formariam a Alemanha, todos querendo se impor para evitar o destino de Luís XVI, que ainda não tinha perdido a cabeça mas estava quase lá. Agora imaginem se a orquestra começasse a tocar a introdução densa, sombria e misteriosa do Concerto nº 20. Seria desastre garantido. Se introduzisse o sério tema do Concerto nº 21, apesar da indicação allegro maestoso, também não sei se os duques e os cardeais iriam aprovar.
O Concerto nº 19, que o acadêmico inglês A. Hutchings descreve como “atlético, combinando graça e vigor”, também é considerado o “outro” concerto da coroação, pois foi tocado por Wolfgang, junto com o nº 26, na coroação de Leopoldo II como imperador do Sacro-Império Germânico em 1790. O 20 e o 21, que o acompanham aqui, são bem diferentes e dificilmente seriam convenientes para aquela ocasião majestosa enquanto a Revolução Francesa espreitava. O Concerto nº 19 foi escrito em dezembro de 1784 e os dois seguintes, em fevereiro e março de 1785 (!).Essa sequência impressionante de concertos acompanha o período provavelmente de maior sucesso de Mozart com o público vienense.
Após as muitas viagens que Mozart fez quando criança, é quase certo que uma das razões para sua permanência em Viena a partir de 1781 foi a grande liberdade de opinião que vigorava naquela cidade. Segundo o padre que foi seu professor de direito, José II era um estudante “interessado pelas ideias novas, pelos ‘direitos humanos’ e pelo bem-estar do povo”.
Muito diferente era a situação em outros reinos: na França, por exemplo, quase todas as obras de Voltaire (1694-1778) eram proibidas, sendo publicadas na Holanda ou na Suíça e depois entrando clandestinamente em território francês.
A muitas e muitas léguas, no Brasil, a impressão de qualquer obra era quase impossível, por causa da necessidade das licenças da Inquisição e do Conselho Ultramarino em Portugal. É bom lembrar que só em 1821 se dá a extinção formal da inquisição em Portugal e no Brasil.
Após a Revolução Francesa, a liberdade geral que se vivia em Viena foi pro brejo. Nesses períodos de inquietude, os artistas são os primeiros a terem suas asinhas cortadas. Haydn, por exemplo, teve de ir pra Londres para continuar compondo suas obras orquestrais, mas lá também teve um contratempo: sua ópera L’anima del filosofo, ossia Orfeo ed Euridice (A Alma do Filósofo, ou Orfeu e Eurídice) não teve a licença do rei e só foi estreada muitos anos depois, quanto Haydn já tinha morrido.
Mas voltemos a Mozart. Nessa época, então, ele vivia o auge do seu sucesso de público e crítica: amigo de Haydn, que o respeitava enormemente, brilhando nos palcos de Viena, o que mais ele poderia querer? Talvez inventar um novo tipo de concerto para piano, após os seus dezenove anteriores, todos em tons maiores?
Isso ele fez com o Concerto nº 20, em ré menor. Na mesma tonalidade da famosa ária da Rainha da Noite, o concerto já começa com um clima misterioso e noturno que dura até o final. A popularidade deste concerto pode ser julgada pela lista de compositores que escreveram cadências para ele, provavelmente ao interpretá-lo eles mesmos ao piano:
- Ludwig van Beethoven (1770-1827), que chegou a Viena Em 1792, já com 21 anos de idade, mudou-se definitivamente para Viena em 1792 (apenas um ano após a morte, na cidade, de Mozart),
- Johann Nepomuk Hummel (1778-1837), que também era criança-prodígio, foi aluno de Mozart por dois anos e publicou um dos principais tratados sobre o pianoforte em 1828,
- Franz Xaver Mozart (1791-1844), filho de Wolfgang,
- Clara Schumann (1819-1896) e Johannes Brahms (1833-1897), que dispensam apresentações.
Será que os célebres concertos românticos em tons menores, como o de Schumann, os dois de Chopin e o de Grieg, existiriam sem o ré menor de Mozart?
O Concerto nº 21, em dó maior, é menos inovador mas também muito popular, especialmente o movimento lento.
Wolfgang Amadeus Mozart (1756 – 1791)
Concerto para piano e orquestra n. 19 em Fá maior, KV. 459
1. Allegro vivace
2. Allegretto
3. Allegro assai
Concerto para piano e orquestra n. 20 em Ré Menor, KV. 466
1. Allegro
2. Romance
3. Rondo (Allegro Assai)
Concerto para piano e orquestra n. 21 em Dó maior, KV. 467
1. Allegro maestoso
2. Andante
3. Allegro vivace assai
Academy of St. Martin in the Fields
Alfred Brendel, Piano
Sir Neville Marriner, regência
PS: link novo no Mediafire. O Mega.nz está fora do ar no Brasil.
Olá, amigos, perdão pela minha quase-ausência nos comentários. Estou em dia com os downloads embora atrasada nas gravações. Continuo curtindo as peças todas e bendizendo vocês. Abraços.
amo alfred brendel e aprecio marriner, but…realmente i.m.h. opinion, apenas e tão somente ingrid haebler e a grande mitsuko conseguiram captar todo o espírito contido nos concertos de mozart. por que digo isto?
simples: haebler e mitsuko interpretam calmamente o primeiro movimento do concerto no. 20; algo em torno de 15 minutos. já brendel e marriner resolvem a coisa em 13. o mistério, as densas brumas que há logo no primeiro andamento ficam bem esparsas. com mitsuko e haebler, é quase impossível ver um palmo na frente do nariz, de tão densas, de tão frias. prenúncio do requiem? mistério…
Bernardo,
O Concerto no. 20 realmente é muito rico nas possibilidades que oferece para os intérpretes! Nesse clima de brumas recomendo que ouça Michelangeli/Garben. Guiomar Novaes também tem uma bela gravação, mais acelerada no 1º movimento mas sem perder a ternura, pena que a orquestra não é lá essas coisas…
Mas Brendel/Marriner são para mim a melhor integral, à frente das duas grandes pianistas que você citou no conjunto da obra.