Johannes Brahms (1833-1897) – Concerto para piano no. 1 – Glenn Gould – Leonard Bernstein

gouldbrUm dos mais célebres concertos da história da Filarmônica de Nova York (e que o encarte chama de “infame”) foi o que aconteceu na noite de 6 de abril de 1962, cuja gravação agora lhes apresento.

Os músicos envolvidos eram estrelas da gravadora Columbia e surfavam em sucessos estrondosos: o regente Leonard Bernstein, nas ondas de “West Side Story”, que chegara ao cinema no ano anterior; e o pianista canadense Glenn Gould, ainda no maremoto causado por sua gravação de estreia das Variações Goldberg, sete anos antes, embora já granjeasse a reputação de excentricidade que só cresceria no decorrer dos vinte anos que lhe restariam de vida.

Bernstein e Gould já tinham colaborado algumas vezes, tanto em palcos quanto em estúdios, sem maiores dificuldades. Durante os ensaios do Concerto de Brahms, entretanto, ficou claro que as concepções de ambos para a obra eram radicalmente diferentes. Gould, célebre pelas liberdades que tomava em relação às partituras (em especial nos andamentos, articulação e dinâmica – i.e., quase tudo, exceto as notas!), escolhera uma abordagem lenta e ruminativa, enfatizando o contraponto. Bernstein, mais afeito a obedecer as indicações do compositor, acedeu. Não obstante, com a orquestra a postos, entrou sozinho no palco e, subindo ao pódio, sentiu obrigado a eximir-se da responsabilidade em relação ao que se iria ouvir:

Não se apavorem, o Sr. Gould está aqui [risadas da plateia – Gould era famoso pelos cancelamentos de última hora, e de tal forma que a orquestra já preparara a Sinfonia no. 1 de Brahms para o caso dele não aparecer]. Ele aparecerá num instante. Não tenho, ahn, como vocês sabem, o hábito de falar em qualquer concerto, exceto os das quintas à noite, mas uma situação curiosa surgiu, que merece, penso eu, uma ou duas palavras. Vocês estão prestes a ouvir uma, digamos, interpretação bastante inortodoxa  do Concerto em Ré menor de Brahms, uma interpretação distintamente diferente de qualquer outra que eu já escutei, ou até mesmo, diria, sonhei, em seus andamentos notavelmente vagarosos e frequentes abandonos das indicações dinâmicas de Brahms. Não posso dizer que estou totalmente de acordo com a concepção do Sr. Gould, e isso traz a interessante pergunta: ‘por que a estou regendo?’. Eu estou regendo porque o Sr. Gould é um artista tão capaz e sério que eu tenho que levar a sério tudo aquilo que ele concebe em boa fé, e sua concepção é interessante o bastante para eu achar que vocês também a devem ouvir.

Mas a velha pergunta permanece: ‘num concerto, quem é o chefe: o solista ou o regente?’. A resposta, claro, é às vezes um, às vezes o outro, dependendo das pessoas envolvidas. Mas quase sempre os dois conseguem se entender por persuasão, charme ou mesmo ameaças para chegarem a uma interpretação coerente. Só uma vez antes na vida eu tive que me submeter à concepção totalmente nova e incompatível de um solista, e isso foi da última vez que acompanhei o Sr. Gould [gargalhadas da plateia]. Mas dessa vez as discrepâncias em nossos entendimentos são tão grandes que achei que tinha que fazer esta breve ressalva. Então por que, para repetir a pergunta, estou regendo? Por que não faço um pequeno escândalo – conseguir um solista substituto, ou mandar o regente assistente conduzir? Porque estou fascinado, feliz com a oportunidade de um novo olhar sobre esta obra muito executada. Porque, ainda mais, há momentos na interpretação do Sr. Gould que emergem com frescor e convicção surpreendentes. Em terceiro lugar, porque todos nós podemos aprender algo com este extraordinário artista, que é um intérprete pensante, e finalmente porque há na música aquilo que Dimitri Mitropoulos costumava chamar de “elemento esportivo”, aquele toque de curiosidade, aventura, experimentação, e posso assegurar-lhes que tem sido uma aventura colaborar com o Sr. Gould neste Concerto de Brahms ao longo dessa semana, e é nesse espírito de aventura que nós agora o apresentamos a vocês” [minha tradução livre]

O comentário de Bernstein e a interpretação de Gould, claro, causaram um pequeno escândalo. Os críticos detonaram ambos, e a gravação da transmissão radiofônica circulou durante décadas em cópias piratas, até ser lançada oficialmente (e com qualidade de gravação pirata) pela Sony em 1998, incluindo o controverso pronunciamento de Bernstein.

Houve até quem atribuísse à controvérsia com Bernstein a decisão posterior de Gould de abandonar para sempre as apresentações ao vivo e concentrar-se em gravações de estúdio. Não é, entretanto, o que ele deixa entender na entrevista que deu a um radialista, anos depois, e que também está incluída no álbum. Não tenho como transcrever tudo o que Gould, um notório tagarela, falou, mas ele essencialmente corrobora a atitude de Bernstein e declara ter problemas com a dualidade masculino/feminino do concerto como forma musical – posição que o levaria, no restante da carreira, a preferir gravar obras para piano solo e música de câmara.

Sobre a gravação em si, já falei que a qualidade do som é medonha: tem-se a impressão de que os microfones preferiram captar a sinfonia tísica da plateia, que não para de botar os bofes para fora, ao piano de Gould, que parece tocar das coxias. Os andamentos são de fato muito lentos, mas me parece haver um gradual accelerando ao longo dos movimentos, em especial no Maestoso. O mais interessante é que as gravações posteriores de Bernstein (como aquela que ele faria com Krystian Zimerman) duram quase tanto quanto a que ele fez com Gould, o que nos faz concluir que, talvez, o solista tenha vencido o embate contra o regente.

É bem provável que vocês, acostumados a Gilels, Zimerman e Pollini, detestem a interpretação de Gould. Para mim, ela foi um gosto adquirido: eu também já a detestei, mas sua leitura heterodoxa é hoje uma de minhas favoritas.

Johannes BRAHMS (1833-1897)

Concerto para piano e orquestra no. 1 em Ré menor,  Op. 15

01 – Introdução de Leonard Bernstein
02 – Concerto Op. 15 – Maestoso
03 – Concerto Op. 15 – Adagio
04 – Concerto Op. 15 – Rondo – Allegro non troppo
05 – Trecho de entrevista de Glenn Gould ao radialista James Fassett (1967)

Glenn Gould, piano
New York Philarmonic
Leonard Bernstein, regência

Gravado no Carnegie Hall, Nova York, em 6 de abril de 1962.

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Gould e seu melhor amigo (que certamente não se chamava Lenny)
Gould e seu melhor amigo (que certamente não se chamava Leonard)

Vassily Genrikhovich

7 comments / Add your comment below

    1. Acho que muitos leitores compartilham de sua opinião, Al: o número de downloads do Concerto de Brahms foi o mais baixo de todas as minhas postagens.
      Dei-me conta de que o que talvez mais eu aprecie nas interpretações de Gould seja o tal “elemento esportivo” citado por Bernstein, e que, ao sair de Bach, várias (ou “quase todas as?”) vezes mergulha no bizarro. Quanto a Beethoven e Mozart, mencionados por você, Gould criticava neles o que percebia como um crescendo de “hedonismo” ao longo de suas carreiras. Não tenho dúvidas de que as polêmicas interpretações que ele deu às obras de maturidade de ambos sejam atos deliberados de sabotagem.
      Volte sempre!

  1. A primeira coisa que ouvi de Gould foi o piano bem temperado e Bach. Sinto dizer, mas não sei se era a época na qual eu passava (ainda não havia conhecido Bach nem o estilo barroco com a profundidade adequada), ou se foi a própria forma que Gould tocava mesmo, mas odiei, para mim aquela foi a coisa mais sem sabor (ó, doce ironia) que eu já tinha escutado.
    Algum tempo depois resolvi dar outra chance ao pianista, até porque meu pai, iludido pela fama do homem, me dizia que ele era considerado “o melhor pianista de todos os tempos”. Bem, pensei eu, em alguma coisa ele deve ter acertado, talvez eu é que não gostasse tanto de barroco e por isso havia rejeitado sua interpretação do “piano bem temperado” e das “Goldberg sonatas” (provei a interpretação de Gould sobre essa obra também, com o mesmo resultado). Para testar da melhor forma, tentei ouvir suas gravações das sonatas de Beethoven. O resultado? Decepção profunda… não, mais do que isso, raiva por sua inabilidade completa em compreender a música e apenas sobrepor sua extravagância excessiva sobre ela. Foi ouvindo a sonata para piano nº 14, “Ao Luar” (ou Moonlight em inglês), que resolvi que não daria outra chance ao mentecapto. E o engraçado, é que certa vez ouvindo a interpretação de Valentina Litsa no youtube, resolvi olhar os comentários e havia gente dizendo que ela tocava rápido demais. hahaha, esses ainda não tinham ouvido a interpretação de Gould.

    1. Gould sempre causará polêmica, e é difícil ser-lhe indiferente. Mesmo em Bach, do qual é frequentemente citado como grande intérprete, há quem laude a clareza com que realiza a polifonia, e quem o censure pelo que consideram frigidez e falta de criatividade. No caso de Beethoven, e em especial das gravações das sonatas com apelidos (a “Patética”, a “Luar” e a “Appassionata”), que foi imposta pela CBS a um Gould que desejava explorar outros repertórios, a sabotagem, como já disse acima, foi deliberada – especialmente na “Appassionata”, que parece lunática.
      Note que esta não é uma defesa, pois – apesar de gostar de uma boa parte do legado de Gould – entendo que todas as críticas que você faz são pertinentes. Gosto dele, compreendo quem o detesta, e fico no limiar do ódio muitas vezes, hehe.
      Obrigado pela visita!

  2. Senhores,

    não seria possível ressuscitar esse cd não?
    Estou atrás das gravações do Glenn Gould…em parte por ter visto o último filme perturbador do Lars von Trier em que uma rápida sequência de Glenn Gould (muito doido, na sala de casa) ao piano aparece por diversas vezes como um leitmotiv. Uma das poucas partes do filme em que conseguimos olhar para a tela sem desviar os olhos…

    um grande abraço!

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