“Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo…” Assim se apresenta o Diabo através da pena de Machado de Assis no seu formidável conto A Igreja do Diabo. Satã, Arcano 15 do Tarot, o capeta, o cramunhão, o capiroto, o merda de galinha choca – como dizia minha avô Dona Nenê (que deus a tenha); eis a figura de maior destaque na cultura humana. Exagero? Mesmo os mais dados às crenças o citam de hora em hora e quanto mais devotos (ou fanáticos) mais assíduos em suas invocações. O nome mais comentado em toda Idade Média, que perpassa ao longo das eras através das penas dos literatos, dos compositores, dos pinceis dos artistas. Sempre renovado, desde o Pazuzu mesopotâmico que andou pintando o 7 em Nova York e virando a cabeça da Linda Blair; desde Arimã, gêmeo nefastíssimo do Ahura Mazda de Zoroastro. Asmodeus, Astarot, Azazel, Baphomet. Belial, Belzebu, Belphegor, Demogorgon, Íblis – para os árabes, Lúcifer, Legião – uma galera de chifrudos, Mephistofeles – compadre do Doutor Fausto, Moloch, Orobas, Samael, Súcubos e Íncubos, Brasinha (quem se lembra dele das HQs?), Xesbeth e Zulu-bango (pra completar a ordem semi alfabética). No mundo popularesco, o tinhoso, o rabudo, o coisa ruim, o tranca ruas, espírito de porco (único espírito no qual acredito), Marvi Talarica, Tio do Churrasco (sério!), Tutu de Gaianases, Inês Brasil (tá na pesquisa que fiz); Azelelé, Estácio de Padoka, Mãe de Pantanha, Rabo de Seta. No cordel “A chegada de Lampião no inferno” do cordelista José Pachêco temos três nomes sugestivos: Pilão Virado, Tromba Suja e Boca Insossa. Sem esquecer o Diabolus in música, na verdade o trítono proscrito dos ideais teóricos pitagóricos medievais e contrapontísticos posteriores, chamando-se diabolus o elemento de cisão entre dois extremos – no caso, a oitava. Ufa, é demônio demais para uma página só, embora todos juntos jamais conseguiriam sobrepujar em asco e iniquidade qualquer dos nossos políticos. Ah, faltou o nome de certo ex-presidente, mas todos sabem. A figura diabólica, a princípio bela no angélico Lúcifer, depois esculhambada pelos cristãos (estes também diabos terríveis), que para proscreverem o culto ao doce Pã, nos primórdios da Igreja, trataram de emprestar-lhe os chifres, cascos e rabo de bode. O Diabo se encontra em profusão tal nas artes ao longo da história que seria impossível nesta singela postagem amealhar tantas citações; imaginemos que ele aparece até mesmo numa versão de Doutor Fausto nos programas do Chapolim Colorado, tendo por Fausto o Professor Girafales e por Margarida a Dona Clorinda. Demonologia é coisa seríssima, enfim. No presente caso, dos mais famosos dos bastidores da música, temos o celebérrimo encontro de Giuseppe Tartini (1692-1770) com o Príncipe das Trevas (não o Drácula, mas o Diabo mesmo, em pessoa). Tartini nos conta sobre este fascinante episódio:
“Uma noite sonhei que tinha feito um pacto com o diabo, o qual se dispôs a me obedecer, em troca de minha alma. Meu novo servo antecipava meus desejos e os satisfazia. Tive a ideia de entregar-lhe meu violino para ver se ele sabia tocá-lo. Qual não foi meu espanto ao ouvir uma Sonata tão bela e insuperável, executada com tanta arte. Senti-me extasiado, transportado, encantado; a respiração falhou-me e despertei. Tomando meu violino, tentei reproduzir os sons que ouvira, mas foi tudo em vão. Pus-me então a compor uma peça – Il Trillo del Diavolo – que, embora seja a melhor que jamais escrevi, é muito inferior à que ouvi no sonho”.
Claro que naqueles tempos não se podia andar por aí falando que se trocou figurinhas com o Cão sem problemas, assim, Tartini primeiro se confidenciou com o amigo astrônomo francês Jerôme Lalande. O diabo teria chegado a desafiá-lo: “Esta nem você é capaz de tocar! He He He”. Ok, a risada foi ideia minha, mas não imagino de outra forma. A coisa não ficou por aí, dois anos depois o capeta retornou trazendo o resto da peça e Tartini completou a obra, que atipicamente para seu momento histórico em matéria de sonatas para violino, traz quatro seções; também, sutilmente e ousadamente faz soar o trítono acima mencionado. Esta narrativa atravessou os tempos e dizem que até mesmo a patalógica Madame Blavatsky a citou em seus abstrusos escritos esotéricos. Se alguém teria de carregar por alter ego a figura do Tinhoso seria o próprio Tartini – um prato cheio para os analista junguianos. Dizem até que o grande Alexandre Dumas teria nele se inspirado para criar seus heróis capa espada, pois que Tartini teve uma vida aventuresca, entre românticos raptos noturnos, duelos nas sombras, esgrimindo tão bem seu florete quanto o arco do seu violino. Um casamento secreto e uma perseguição que o levou a disfarçar-se de frade em Assis. Tartini nasceu em Pirano, que era um povoado de Veneza, porém uma recente mudança de fronteiras fez com que a cidade passasse a ser considerada eslovena e isso gerou uma rusga entre os países que passaram a disputar-lhe a nacionalidade, esquecendo-se de que o planeta é o mesmo e que a música, que é de todos, é o que importa de fato. Tendo as suas tropelias perdoadas por um cardeal, o compositor foi para Pádua, onde reencontrou sua esposa e lá permaneceu até que o seu velho companheiro de virtuosismos oníricos viesse carrega-lo deste mundo. Ali se dedicou à composição, ao ensino de sua arte e à escrita de tratados.
Mas não é somente Tartini que seria o diabo em pessoa ao seu instrumento. Numa esquina do futuro outro endiabrado violinista esperava para executar com inusitada perfeição a obra diabólica: Roberto Michelucci. Soberbo artista, que foi durante anos solista no hierático I Musici; assim como Felix Ayo, Salvatore Accardo, Pina Carmirelli e outros. Conheci Tartini no vinil da Editora Abril, da série Mestres da Música, capa verde! Este disco trazia a deliciosa Sonata em Fá maior de opus 1 número 12, e um concerto para violoncelo também belíssimo. O violinista era Franco Gulli. Fiquei pasmo com o frescor daquela música, a riqueza melódica, a generosidade de um compositor que não sonega beleza em nome de ideias estéticas vigentes ou teóricas – uma das desgraças da música. Tartini é um compositor fronteiriço, não somente entre Itália e Eslovênia, mas entre o barroco e o clássico. Traz a leveza e a galanteria, mas não perdera ainda o sentido retórico e profundo do barroco. Rico em melodias surpreendentes e expressivas, pura beleza que na época só pude comparar com o magnífico Padre Ruivo, embora com audíveis diferenças. Uma música que para ser devidamente executada e compreendida exige um total comprometimento, entendimento e intensidade por parte do solista; e é precisamente isso que temos no formidável Roberto Michelucci. Além da sonata mefistofélica, o disco traz outra linda obra do mesmo gênero, a patética (no melhor sentido) Sonata Didone Abbandonata, evocação dos lamentos da princesa Dido, largada pelo ingrato Enéas (nada a ver com o Prona), literalmente a ver navios. As duas outras obras não ficam para trás como a pobre Dido. São também soberbas e de grande beleza. Até onde sei este disco não saiu em CD, e me parece que a explicação para isso só obteríamos junto ao amigo chifrudo de Tartini. Mas seja como for, por obra e graça seja de Deus ou do presente comensal, aqui temos Tartini por Michelucci. Um espetáculo que encantaria céus e infernos, sem dúvida.
Giuseppe Tartini – 4 Sonate per Violino
1 Sonata em Sol menor – Il trillo del Diavolo – Larghetto Affettuoso, Allegro, Andante e Presto.
2 Sonata em Sol menor – Didone Abbandonata – Affettuoso, Presto, Allegro.
3 Sonata em Lá menor – Andante Cantabile, Allegro, Allegro Assai.
4 Sonata em Lá maior – Largo, Allegro, Presto.
Roberto Michelucci – Violino
Marijke Smit Sibinga – Cravo
Franz Walter – Cello
Wellbach
Senhor Wellbach
“Tartini, antes e depois da possessão demoníaca”
Você é muito legal e engraçado.!!
Muito obrigado, porque no “mundo”
de música clássica, é muito pouco
o bom humor.-
Saludos.!!
Rs, Obrigado! na verdade há bom humor na música sim, os intérprete é que se levam excessivamente a sério e acabam sendo ridículos rss. Com todos aqueles fraques e gravatas e sisudez dos maestros rs. Mozart, Bach, sobretudo Beethoven e Rossini, eram muito bem humorados, se a gente reparar bem . Abrs.
Texto de craque, parabens!
Obrigado!
Baita texto! Obrigado!
Avicenna
Grato, nosso compadre mestre! Muita saúde e paz! Abrs.
Ótimo texto.
Obrigado!
GRATO!
Entre comensais da morte e Demogorgon, a verdadeira projeçao Lumiérica é mais velha que o mundo, nos apresentando o tinhoso abtes de ser tinhoso, apenas como anjo de luz! O antigo texto diz “Querubim ungido” estrela que regia as demais. A arte notadamente inhumana, trazida as entranhas terrenas, talvez através de uma chuva de meteóros Alah Seya de Pégasus! É claro que tamanha arte, outrora no Quadrivium venerada, não se perderia. Emprestada aos homens, mesmo em sua pequenez produz deleites como maná. Profana ou Divina, como acredito quem nem YHWH ou o bzb reclamarão direitos autorais, já baixei! Ótimo texto mestre!
Grato Denis! pois é, veja vc o que é Fake News! coisa do diabo! opa! rss
Ótimo texto!