.: intermezzo :. Besame Mucho: Dominick Farinacci

Nos ecos do trompete de Al Hirt, trazido, para meu enaltecimento e honraria pelo compadre mestre Avicena, trago um maravilhoso trompetista menos conhecido em nossas paragens. O formidável Dominick Farinacci, americano de Cleveland – Ohio; nascido em 3 de março de 1983, ou seja, na ponta do ramo de uma nova e brilhante geração de trompetistas. Também compositor e band-leader, Dominick foi um dentre apenas 18 classificados em todo mundo pela Julliard School num programa especial de bolsas para quatro anos de formação. Teve sua carreira impulsionada por Wynton Marsalis, seguindo-se então uma sucessão de êxitos e prêmios. Segundo nos conta Dominick, sua preferência de menino teria sido tornar-se baterista. Para nossa sorte ele não demonstrou talento nesse instrumento e o maestro de sua escola declarou que precisavam na verdade de trompetistas. Os êxitos de Dominick não turvaram sua modéstia. Digo isso por razões que explicarei a seguir. Particularmente falando, posso me orgulhar, como trompetista, de partilhar com ele duas coisas em comum: o trompete e o fato de termos sido inspirados por Louis Armstrong – como aconteceu com inúmeros outros músicos ligados ao Jazz no decurso do século XX. Explico o meu caso. Quem se lembra das velhas TVs Telefunken, aquelas em preto e branco, valvuladas, que passávamos os parcos canais naqueles botões para direita e para esquerda, trock-trock… pois é. Foi numa delas, na casa da minha avó em Caruaru – Pe, que em 1971 vi notícias sobre o falecimento de Satchmo, ou Pops, ou ainda Papa Louis. Aqueles sons e aquela figura incrível, com sua voz indescritível, me tomaram para sempre. Somente anos depois, devido a certa carência de informações no meu contexto, pude conhecer mais sobre ele, todavia, o gosto pelo instrumento permaneceu e acabei virando trompetista. Com Dominick, segundo ele mesmo, se deu algo similar. Suas inspirações foram Louis Armstrong e Harry James. Sei que em 1983, quando a cegonha o trouxe ao mundo, eu estava mergulhado no disco Hello Dolly e nos fascículos da ótima e misericordiosa série Gigantes do Jazz da Editora Abril. Especialmente no primeiro disco, de Louis, que ouvi até o vinil ficar branco. Não vem ao caso mas… vou contar que é divertido: Fascinado pelo jazz de New Orleans, em minha fantasia de moleque de 13, 14 anos, a cidade em que eu então vivia – no interior de Sergipe – era a própria New Orleans. Reuni uns colegas, clarineta, trombone, percussão, tuba; mostrava as gravações pra eles e tentávamos macaquear o que ouvíamos com resultados desastrosos mas empolgantes. Assim foi fundada a “Jass Band Itabaiana City” (SSs propositais, conforme as primeiras bandas do gênero). Todos tinham nomes de guerra: Lord Cotonete (eu), Kid Sacabuxa (o trombonista Roberto Millet), Zero (o clarinetista Aroldo Santos), Touro Sentado à bateria (meu pai Uéliton Mendes RIP) e por fim Salário Mínimo (meu irmão mais novo Saulo Mendes ao cavaquinho). Então fazíamos funerais de New Orleans pelas ruas, com uma grande caixa de papelão como um caixão de defuntos, que a molecada ajudava a carregar. Era um espanto. As pessoas não tinham ideia do que diabo era aquilo, espantávamos os cavalos na feira, choviam batatas sobre nós… é isso, contei. Adiante.

Falando então do que pontuei acima, a modéstia do artista. É encantador quando a um grande talento se soma a virtude da humildade. A música é muito reveladora, em diversos aspectos. Particularmente falando, abomino virtuosismo gratuito. Ou a habilidade serve à música, como no caso de Liszt, ou que o sujeito vá tocar suas mil notas por segundo numa corda bamba, com uma melancia na cabeça e um macaco hidrófobo dentro das calças. Francamente. Um trompetista renomado que me causa certa aversão é o magnífico cubano Arturo Sandoval, especialmente quando não está em seu habitat musical natural: os estilos de sua ilha natal. Ao jazz Arturo se empenha obsessivamente em demonstrar que é o pisto mais rápido do Oeste e que toca para além das estratosferas agudas como nenhum outro – sempre perderá para Jon Faddis e Maynard Ferguson. É algo deveras irritante. Faço essa extrema comparação para pontuar a sobriedade do estilo de Dominick. Fraseador formidável, mais afeito ao gênio de Chet Baker a ao comedimento cool de Miles Davis, sem ser glacial. Um maravilhoso melodista, que busca em suas improvisações o discurso eloquente, porém expressivo. Já realizou bom número de álbuns e continua a todo vapor em sua carreira, todavia não precisa expor nos seus encartes os dotes físicos, como andou fazendo o Chris Botti – possivelmente imitando as antológicas fotos de Chet Baker por William Claxton; mas também um bom trompetista.

Outro dom fundamental de Dominick é o bom gosto na escolha do seu repertório. Neste disco, a faixa título é um tema icônico das antigas, todos conhecem ‘Besame Mucho’, da pianista e compositora mexicana Consuelo Velásquez (1916-2005), peça de 1940; que já tive o prazer de tocar em mil e uma noites nas serestas de meus anos passados pelos interiores, sempre com prazer. De música bonita a gente não cansa. Consuelo disse que se inspirou em uma ária de ópera de Henrique Granados (fica o desafio pra quem quiser nos dizer qual é). Poucos sabem que até os Beatles gravaram Besame Mucho, numa fracassada sessão de gravações em 1961, porém, a faixa viria à tona em uma antologia futura. João Gilberto também gravou o tema, muito depois do suicídio do seu gato. O disco abre com ‘Ghost of A Chance’, baladíssima usual no repertório de inúmeros jazzistas, embora a suprema gravação seja de Clifford Brown em um dos zênites do jazz. A segunda faixa foi um ‘desconcerto’ quando ouvi pela primeira vez. Em que esquina de NY Dominick teria se batido com Herivelto Martins?! A antológica canção brasileira ‘Caminhemos’. Belíssimo tema aqui tratado com belo arranjo e maravilhosa interpretação. A quinta faixa também é do fundo do baú e também do repertório do Al Hirt no filme Candelabro Italiano – ‘Al Di La’. Em seguida, Piazzolla, o intenso ‘Libertango’. Na faixa 8 um clássico do repertório Bebop, o melódico tema Nostalgia, do soberbo trompetista Fats Navarro. Na décima faixa outra baladíssima, a sinatriana ‘You go to my head’.

Não sei se Dominick reclamaria disso, mas o disco tinha apenas 11 faixas e acrescentei mais três. O fiz, a princípio, porque são temas que ele interpreta maravilhosamente; também porque havia pensado em somente duas faixas e isso daria um número azarento, assim acrescentei mais uma e ficaram 14 faixas. Não são quaisquer temas. Na faixa 12, eu diria que Dominick dá um ‘ciao’ – seu sobrenome Farinacci (que se ele não fosse um cara modesto poderia ter mudado), evidencia sua origem italiana. O tema de Nino Rota ‘Speak Softly Love’ do poderoso Chefão, que todos conhecem… Olha lá, não quero dizer que o Dominick seja afilhado de nenhum Dom Corleone (mas também nada contra, quem me dera!); seja como for, olhando para ele podemos considerar que ficaria ótimo como um talentoso e simpático ragazzo trompetista na trilogia de Coppola. A outra faixa acrescentada é o bonito tema Estate, de Bruno Martino e por fim um lindo tema imortalizado no jazz por John Coltrane: Say It.

Após estas considerações nas quais figuraram apreciações, confidências e diatribes, vamos à música, com o talentoso Dominick Farinacci.

Besame Mucho: Dominick Farinacci

1 Ghost of A Chance
2 Caminhemos
3 It’s all right with me
4 Besame Mucho
5 Al Di La
6 Libertango
7 Shmoove
8 Nostalgia
9 Jimmy two times
10 You go to my head
11 Down to the wire
12 Speak Softly Love
13 Estate
14 Say It

Dominick Farinacci, (trumpet)
Adam Birnbaum (piano)
Peter Washington (bass)
Carmen Intorre,jr. (drums)
Recorded: NYC, April 17-18,2004

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trompetista

Wellbach

7 comments / Add your comment below

  1. Esta é a discografia dele que tenho: Dominick Farinacci (2009) – Lovers, Tales And Dancers/ Dominick Farinacci – Sounds in My Life (M&I JP 2007) / Dominick Farinacci – Say It (m&i, 2003)japan/ Dominick Farinacci Manhattan Dreams/ Dominick Farinacci Besame Mucho.
    O último dele Dominick Farinacci – Short Stories (2016) foi lançado este ano.

  2. Sempre me impressiono com as postagens do Wellbach. Conhecendo sua profissão fico surpreso com o tamanho do texto das postagens, acho que ele nem deve dormir pra brindar-nos com seu texto.

  3. Prezado Wellbach
    Na veia!
    Gostei muito de sua postagem, pois gosto muito do instrumento. E também de seu texto, enriquecedor, que nos permite mergulhar um pouco na mente dos músicos, e conhecer melhor vocês, todos, que nos brindam com maravilhas sonoras, sempre.
    Grato, mais uma vez.

  4. Wellington Mendes,

    Vim hoje, pela manhã a conhecer seu espaço, chega a noite e ainda estou por aqui, afora umas rápidas saídas. Muito grato. É irresistível ler o texto que antecede ao download, por quê além de enriquecedor é permeado de bom humor. Como tenho interesse por muita coisa e você continua postando, penso que passarei os próximos dez anos frequentando.

    Congratulações. Miguel Bartilotti

  5. Que texto, prezado Wellbach!
    Fã do Chet Baker (acho que é pescoço a pescoço com Frank Sinatra para namorar), vou escutar o Farinacci e volto para dizer o que achei. E se gostar, o Benutti, arriba, já deixou pronto os demais discos do jovem.
    Obrigado pela novidade, sempre bem vindas.

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