Fala a Sociedade dos Amantes de Mahler, patrocinadora desta série de posts:
Caríssimo,
aí vão dois textos sobre Mahler.
Um deles sobre a Terceira Sinfonia, outro sobre Das Knaben Wunderhorn.
A Sociedade dos Amantes de Mahler gosta de chamar a Terceira de a “Nietzscheana”, já que um texto de Zaratustra é transformado por Mahler em música sublime. Toda a sinfonia, enfim, parece consistir numa nietzscheana celebração da existência.Abraços,
SAM.Sobre a Terceira Sinfonia:
Um crítico vienense, após a estréia em Viena da Terceira Sinfonia em ré menor, escreveu que seu compositor merecia alguns anos de cadeia. Depois disso, tem sido descrita por penas menos hostis como um desastre formal. Discordo. Não só penso que revela um avanço em poder musical sobre a Segunda, mas que, além disso, possui um traçado artístico mais equilibrado, apesar de seus seis movimentos; e penso especialmente que as dificuldades do primeiro movimento foram muito exageradas (e sua duração também: “quase 45 minutos”, diz um escritor, que deve ter ouvido algumas interpretações deveras extravagantes. Trinta e cinco minutos bastam).
Mahler, como se afirmou antes, pensou em intitular a sinfonia Pã ou mesmo A gaia ciência, inspirado pelo livro de Nietzsche, Die fröhliche Wissenchaft. Planejou sete movimentos, sendo o último a musicalização de um poema Wunderhorn: Wir geniessen die himmlischen Freuden, que depois encontrou lugar apropriado como o finale da Quarta Sinfonia. Em sua versão final, a Terceira tem seis movimentos: 1. Chega o verão. 2. O que me dizem as flores do prado. 4. O que me diz a noite. 5. O que me dizem os sinos matinais. 6. O que me diz o amor. Esses títulos são meros indicadores e nada mais que isso: a sinfonia é uma exultante celebração da vida, física e espiritual, sensual e instintiva. Enquanto a estava terminando, descreveu-a para Ana von Mildenburg como sendo “de tal magnitude que espelha o mundo inteiro – o indivíduo é, por assim dizer, um instrumento tocado pelo universo. (…) Há passagens que parecem tão misteriosas, tão sobrenaturais, que dificilmente posso reconhecê-las como obra minha.” Schoenberg, como vimos, ouviu a sinfonia como uma batalha entre o bem e o mal.
O gigantesco primeiro movimento será melhor apreciado se o ouvinte evitar a análise e se concentrar na absorção de sua atmosfera, em sua espantosa criação de uma atmosfera de energias multiformes desencadeadas. O impressionante e portentoso tema inicial para oito trompas simboliza a força da natureza, mas dá lugar imediatamente a um longo e misterioso prelúdio, outro exemplo da poderosa encenação mahleriana, com fantasmagóricos glissandos dos metais, solos declamatórios de trompete, trombones exortativos – todas as impressões digitais que o cleptomaníaco Mahler deixa em sua partitura, forçando suas conotações emocionais a se colocarem a seu serviço e se tornarem mahlerianas. Por duas vezes, como alguns flashbacks auditivos para uma imagem vívida retida da infância ou juventude, ocorrem episódios extraordinários de vulgar música de charanga. Um grande regente dessa sinfonia como era Barbirolli, pôde transmitir a qualidade alucinatória dessas explorações e situa-las no contexto da música circundante, de modo que o movimento soa vasto mas também conciso, sua coda tempestuosa a conclusão inevitável de um imenso drama.
É um triunfo de Mahler nessa sinfonia que os sucessivos movimentos internos mais breves “ajustem-se” mais confortavelmente ao esquema do que na Ressurreição. O segundo movimento, mais um no molde Blumine, é uma vez mais altamente sofisticado, até mesmo embelezado, bem longe de ser elementar. Mas o efeito calidoscópico da orquestração é suficiente em si mesmo para a maioria dos ouvidos; dificilmente Mahler pode ser responsabilizado se seu fraseado veio a se converter em chavões para uma geração subsequente por causa dos usos que lhe foram dados pelos músicos emigrados que, conhecendo Mahler melhor que a maioria das pessoas na época, nele se apoiaram tão maciçamente para partituras de filmes de Holywood nas décadas de 30 e 40. O início rústico do terceiro movimento, embora derive da canção Ablösung im Sommer do Wunderhorn, tem uma inequívoca afinidade com a música de balé da Aída. O nível de inspiração declina, apesar de muita engenhosidade, até o trio, quando a magia do pintor de estados de espírito volta a predominar para um maravilhoso solo evocativo de trompa de postilhão, a lembrança de…de quê? Uma corneta na infância, uma trompa soando na Salzkammergut? A própria Trompa Mágica da Mocidade? Pouco importa. Sua qualidade espaçosa, distante, é tão obcecante quanto o solo de clarim numa similar passagem atávica da Sinfonia Pastoral de Vaughan Williams.
Embora uma e outra tumultuosa explosão popular ocorra na repetição do scherzo, é a trompa de postilhão que permanece na mente e nos prepara para a musicalização de Nietzsche no quarto movimento: “Oh Mensch! Gib acht” – “Ó homem! Presta atenção, o que disse a meia-noite?”, a mesma canção da meia-noite de Zaratustra que também inspirou a mais primorosa música de Delius em A Mass of Life. Mahler musicou-a para contralto como uma de suas mais profundas e “anelantes” melodias como contraponto. É um dos movimentos “perdidos para o mundo” de Mahler, as palavras “Gib acht” ajustadas a fá sustenido-mi descendente, que abre o primeiro tema do primeiro movimento da Nona Sinfonia, sendo ambas as passagens em ré maior e semelhantes à frase Ewig no Abschied de A canção da terra. Há um mundo de interesse musical e psicológico a derivar das remissões, intencionais ou subconscientes, entre obras de Mahler – um jogo que qualquer ouvinte pode fazer; nessa sinfonia existem muitas e importantes remissões entre movimentos, mormente o retorno do clímax da exposição do primeiro movimento como clímax do finale.
Da escuridão desse movimento sublime, Mahler atira-nos para a luz radiante de um outro círculo do paraíso Wunderhorn, onde o “coro de querubins de olhos inocentes” (ou, para ser musicalmente mais exato, do Otello ragazzi) é ouvido – “Bimm bamm” – e os sinos repicam para a alegria do meio-dia, não a melancolia da meia-noite. (Suspeito que Britten foi influenciado por esses sons quando escreveu Noye´s Fludde e partes de Um réquiem de guerra.) O coro feminino entoa “”Es sungen drei Engel” (Três anjos entoam uma doce canção, o som eleva-se ao céu). O contralto canta o refrão que retornará no finale da Quarta Sinfonia num outro contexto. Aqui é a melodia para São Pedro, “Eu violei Teus mandamentos”; ali, para os anjos que cozem o pão, mas, de modo mais significativo, para São Pedro no céu.
Na Segunda Sinfonia o grandioso desígnio de Mahler era trabalhar um clímax no finale. Ora, um finale dessa escala teria sido ridiculamente despropositado na Terceira, mas se fazia necessário um substancial movimento de fecho. Mahler nos oferece seu primeiro adágio sinfônico em grande escala, o mais perto que ele chegaria de uma plenitude bruckeriana de harmonia e calma espiritual (talvez tivesse sido escrito como tributo a seu velho amigo e incentivador, quem sabe?). Ele confidenciou a Anna von Mildenburg:
O tema desse movimento é “Pai, vê essas minhas feridas! Não permita que se perca uma só de tuas criaturas”. Eu quase poderia chamar o movimento de “O que Deus me diz”. E verdadeiramente, no sentido de que Deus só pode ser entendido como amor. E assim a minha obra (…) começa com a natureza inanimada e ascende para o amor a Deus.
Os adágios de Beethoven e de Elgar acodem ao espírito quando se escuta esse movimento, no qual as duas melodias em que ele se baseia estão submetidas, como infinito recurso, à doutrina de Mahler de contínuo desenvolvimento e variação – verdadeira “melodia perpétua”. Entretanto, há uma crise – Mahler não pode deixar o mundo para trás, por mais arduamente que o tente; a dissonância na seção central é um poderoso lembrete para os ouvintes de hoje de que Mahler estava distante um pouco mais de uma década da Nona e da Décima Sinfonias. Na coda, o ré maior é atingido numa apoteose que talvez seja retoricamente bombástica demais, extensa demais, para ser convincente. Entretanto, depois que isso ficou dito, a impressão esmagadora que subsiste é a de uma obra-prima – a qual parece ficar cada vez mais curta e mais simples quanto mais é ouvida. Apesar de todo seu tamanho e escala, é uma obra intimista.
(KENNEDY, Michael. Mahler. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 106-109).
Sobre os Lieder de Das Knaben Wunderhorn:
A Segunda, a Terceira e a Quarta Sinfonias são usualmente classificadas como as Sinfonias Wunderhorn por causa de seus vínculos com a musicalização por Mahler de poemas de Das Knaben Wunderhorn. Isso poderia aplicar-se igualmente à Primeira Sinfonia, porquanto as letras de Das klagende Lied e do ciclo Gesellen são pastichos de Mahler dos poemas Wunderhorn, provando como estavam profundamente incrustados em sua mente o estilo e o espírito da antologia.
As primeiras musicalizações de Mahler de poemas Wunderhorn foram para voz e piano, embora obviamente concebidas para acompanhamento orquestral, e foram escritas no final da década de 1880. Doze mais, originalmente intituladas Humoresken, datam de 1892 a 1901. Alternam entre uma encantadora delicadeza de conto de fadas e uma soturna ironia, realização e interpretação opressivas, como que de pesadelo, da atmosfera de estridência militar e de mistério noturnal. São notáveis pela sensibilidade fremente da resposta do compositor ao texto de cada poema e, uma vez mais, pela beleza e adequação do som com que essa resposta se conjuga. As pedras angulares do estilo de Mahler são a referência remissiva, variação e desenvolvimento, e até em obras de tão pequena escala quanto as canções, a constante mudança efetuada confere-lhes uma amplitude além da ordinária. Mesmo numa canção tão manifestamente simples e “inocente” (embora sedutora) quanto Rheinlegendchen, é notável a gama de tonalidade além do familiar tom nominal de lá menor. Em Das irdische Leben, o desenvolvimento por meio de contrastes maior-menor confere à canção sua profundidade psicológica. A exploração de contrastes por Mahler, seu gênio para as justaposições selvátivas podem ser ouvidos em seu mais alto grau em canções Wunderhorn no formato de dueto, como Der Schildwache Nachtlied.
As mais primorosas e significativas das canções são as que podem ser chamadas “noturnos militares”, em que toques de trompete, ritmos de marcha e tambores são transformados em microcosmos sinfônicos, canções como as obras-primas Nicht Widersehen, Revelge, Der Tamboursg´sell e, a maior de todas, Wo die schönen Trompeten blasen. Essas canções estão, quanto ao estado de espírito, no outro extremo da não menos magistral expressão de frescor pastoral em Ich ging mit Lust durch einen grünen Wald. (…) Diga-se de passagem que as canções Wunderhorn são mais efetivas quando se executa uma seleção de quatro ou cinco. Elas não foram compostas como uma entidade e executá-las todas juntas expõe com demasiada clareza a superioridade de três ou quatro delas em relação às demais.
Em cada uma das três sinfonias seguintes, Mahler usou uma canção Wunderhorn como clímax emocional. E em cada uma delas deu uma enorme passo à frente: cresceu como homem e como artista de sinfonia para sinfonia, quase canção para canção. Embora, em alguns aspectos, a Primeira Sinfonia seja uma obra mais bem organizada do que a Segunda, contendo mais música “avançada” no final, a pura audácia da escala da Segunda mostra como os poderes de Mahler estavam crescendo. As Sinfonias Wunderhorn constituem um tríptico religioso, representando a busca de Mahler de uma crença firme e de uma resposta às suas indagações sobre o mistério da existência.
(KENNEDY, Michael. Mahler. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 100-101).
Mahler: Sinfonia Nº 3 e os 8 Lieder aus Der Knaben Wunderhorn
CD2:
Symphony Nº 3 in D minor
1. Kräftig entschieden (Strong and decisive) [D minor to F major]
2. Tempo di Menuetto (In the tempo of a minuet) [A major]
3. Comodo (Scherzando) (Comfortably, like a scherzo) [C minor to C major]
4. Sehr langsam—Misterioso (Very slowly, mysteriously)
5. Lustig im Tempo und keck im Ausdruck (Cheerful in tempo and bold in expression) [F major]
CD3
6. Langsam—Ruhevoll—Empfunden (Slowly, tranquil, deeply felt) [D major]
Birgit Remmert, contralto
Ladies of the City Of Birmingham Symphony Chorus
City Of Birmingham Youth Chorus
City Of Birmingham Symphony Orchestra
Simon Rattle
8 Lieder aus Der Knaben Wunderhorn
7. Der Schildwache Nachtlied (Canção noturna do sentinela);
8. Verlorne Müh’ (Esforço perdido);
9. Wer hat dies Liedlein erdacht? (Quem inventou esta cançãozinha?);
10. Wo die schönen Trompeten blasen (Lá onde soam os belos trompetes);
11. Revelge (Toque de levantar);
12. Der Tamboursg’sell (O jovem do tambor);
13. Des Antonius von Paduas Fischpredigt (O sermão de St. Antônio de Pádua aos peixes);
14. Ablösung im Sommer
Simon Keenlyside, barítono
City Of Birmingham Symphony Orchestra
Simon Rattle
PQP
Faltou apontar o terceiro movimento desta sinfonia, intitulado “O Que me Dizem os Animais da Floresta”.
Os textos desse livro são fantásticos. Quanto à Terceira Sinfonia, ela é extremamente ambiciosa e bela, mas tem uns momentos em que Mahler deixa a peteca cair. Agora, eu não canso nunca do primeiro movimento; há um mundo inteiro ali, logo de cara.
Prezado Apologista,
Concordo, acho o 1º movimento da 3ª uma das melhores coisas que Mahler compôs. Agora, não sei por que, cada movimento parece um composição completamente diferente. Não consigo ver coesão na obra toda.
Eu li um texto em um outro fórum que participo e achei superinteressante. O fato está na biografia do Bruno Walter, mais ou menos assim:
“Bruno Walter estava na janela ou na varanda do chalé que o Mahler comprou com muito sacrifício nos Alpes. Tinha acabado de chegar e contemplava a paisagem. O Mahler não parava de falar e voltou pra dentro da casa – falando e falando. Walter, arrebatado pela paisagem, não percebeu. Mahler voltou e deu-lhe um esporro: “o quê que você ta olhando aí? Deixa isso pra lá, já pus tudo na minha III Sinfonia”. ”
Um abraço!
Essa biografia de Mahler é uma grande biografia.
Mas falando sobre Ratle, parece que esse cara só rege bem Mahler!
Só?
Sim!
Isso não é verdadeiro. Há uma integral das sinfonias de Brahms por Rattle que é muito boa, embora eu prefira a versão de Abbado.
Ludwig, incrível esse fato da biografia do Bruno Walter. Não era mesmo Mahler um gênio megalomaníaco?
Sobre o texto de Kennedy, uma correção, já apontada pelo Apologista. Falta realmente, na enumeração dos movimentos, a designação dada por Mahler ao terceiro movimento – 3. O que me dizem os animais da floresta.
Só pra confirmar.
É verdade meu caro (ou caros?).
Só Freud mesmo para encarar uma fera destas!!! 🙂
Engraçado sempre tive dificuldades para entender esta sinfonia. Para mim ao lado da 5ª de Bruckner uma das mais dificeis peças do repertório sinfônico.
Entretanto, um colega sugeriu que eu escutasse uma versão do Kubelik e com a Orquestra da Rádio da Baviera. Cara (ou caras?), que interpretação. A 3ª passou a ocupar um espaço no meu coração apesar de toda a sua complexidade. O 1º movimento dela para mim é arrepiante.
Acho que aqui neste Blog não tem esta versão. Fica a sugestão.
Abraços.
ja disse aqui em outro post e repito! o ultimo movimento dessa sinfonia merece destaque! sem desmerecer o resto dela e gostei dessa versao do Rattle.
o meu comentário resume se numa frase: adoro mahler.
aproveito para vos pedir um esclarecimento: ouvi há uns anos na aula magna da universidade de lisboa, uma das sinfonias de mahler e ainda hoje retenho no ouvido um solo de trompa de postilhão que me deixou sem fôlego.o solo era fora do palco.
não me lembro qual das sinfonias se trata, mas da pesquisa que tenho feito a 3ª fala realmente num solo de postilhão, comprei a, e, desilusão aqule solo, à distância não existe nesta minha versão.
ORQUESTRA SINFONICA DE BERLIM. CLAUDIO ABADO. DA DEUTSCHE GRAMMOPHON.será que me podem dar algum esclarecimento? GRATA
alô, pqp. esta versão é altissimamente recomendada por aí… nao achei em nenhum outro lugar da internet. que grande reupload de se fazer!
abraços