Johann Sebastian Bach (1685-1750) – Suítes para Violoncelo Solo – Julius Berger

MI0001033551Depois de minha estreia neste eudaimônico blogue, ainda sob os auspícios do patrono PQP Bach, prossigo em minha bicicleta, e já sem rodinhas, a largar música por suas veredas.

Começo com uma gravação que toca em cheio as fibras deste coração ademais durão: nada menos do que o primeiro CD importado que comprei, ainda no século passado.

Para os jovens entre vós outros que não entendem nem o fascínio de um CD importado, nem muito menos como poderia ele amaciar miocárdio tão rijo, eu explico:

Naqueles medonhos tempos em que não só se votava no Collor com esperança, mas também no Afif por causa do jingle, eu comprei meu primeiro CD player, então conhecido como “toca-discos-laser”. A indústria fonográfica brasileira já investia sua sanha caça-níqueis em explorar, como é de sua praxe, os veios do lucro fácil e abundante. Como bem se sabe, aqui ao sul do Equador tais mananciais estão sempre mais próximos do telecoteco e das letras marotas do que de qualquer coisa que envolva arcos, espigões e cordas de tripa. Por conta disso, os lançamentos nacionais em música erudita restringiam-se essencialmente a um punhado de gravações remixadas em compact discs por uma empresa, cujo nome não mencionarei aqui por, assim digamos, responsabilidade jurídica. Pois aquele inominado moedor de som tinha o peculiar talento de fazer até mesmo a Filarmônica de Berlim completa, tocando a “Abertura 1812” de Tchaikovsky com coro, carrilhões e canhão, soar como a charanga do Brasil de Pelotas (nada contra) a tocar do fundo de um tarro de leite – e, cúmulo do ultraje, ainda acondicionar os tristes produtos em caixinhas meio foscas e ganhar dinheiro com isso.

Havia, lógico, alternativas à agonia e ao desespero. Lojas especializadas e ar-condicionadas ofereciam uma cornucópia de gravações importadas para quem – em dólares, de preferência – se dispusesse a pagar por elas. A mim, espinhudo estudante, que não só vivia de mesada, mas ainda por cima mesada em cruzados novos (eu lhes falei que os tempos eram medonhos!), restavam só dois expedientes: o plantão permanente ao pé do dito três-em-um, munido de minhas fitas virgens, pronto para pulsar o “REC” a cada anúncio de obra favorita, ou, como já se disse, os fanhosos lançamentos da gravadora-da-qual-não-se-diz-o-nome.

Entre minhas jornadas no purgatório de melômano de classe média, eu peregrinava aos frescos templos ladrilhados de CDs da Deutsche Grammophon e ficava lá a gastar as horas, que me sobravam mais do que o dinheiro, a sorver o ar gelado, escutar os entreveros dos ubíquos anciãos que pareciam capazes de matar ou morrer por Karajan ou Celibidache – e, ah sim, salivar muito de cobiça.

Antes que encontremos Pollyana Moça e comecemos com ela o jogo do contente, eu pego a contramão, engato a segunda e lhes conto que houve um dia em que me caíram no colo cinquenta dólares, cuja origem não revelo nem sob tortura chinesa, que me eram suficientes para não somente uma, mas sim para DUAS daquelas cobiçadas caixinhas repletas de prazer aural.

Corri, claro, feito um Dodge à minha loja preferida. Quando cheguei, o proprietário – um híbrido do Homer Simpson com o Shylock d’O Mercador de Veneza – acabara de colocar uma gravação no toca-discos-laser, que é a mesma que vocês escutarão na faixa 1 do primeiro CD a seguir.

Que dizer daquilo?

Ainda hoje não saberia responder. Se daquele transe me sobrasse um neurônio sequer para uma palavra, ele me gritaria “SUBLIME”. E, enquanto meus sentidos viravam suco, um violoncelo – instrumento que eu tolamente acreditara ser monódico – tecia, em semicolcheias, engenhosas ilusões de harmonia e movimento.

Nem percebi o dinheiro trocando de mãos. Para Shylock Simpson, aquele foi tão só o tilintar de mais um punhado de dobrões. Para mim, jovem melômano, eram as chaves para um devoto amor que eu nunca mais deixaria.

E mais não lhes digo acerca da música, pois se eu lhe pudesse descrever a beleza em palavras, ela não precisaria, enfim, ser música.

JOHANN SEBASTIAN BACH (1685-1750)

SEIS SUÍTES PARA VIOLONCELO SOLO, BWV 1007-1012

CD 01

SUÍTE NO. 1 EM SOL MAIOR, BWV 1007

01 – Prélude
02 – Allemande
03 – Courante
04 – Sarabande
05 – Menuet I & II
06 – Gigue

SUÍTE NO. 4 EM MI BEMOL MAIOR, BWV 1010

07 – Prélude
08 – Allemande
09 – Courante
10 – Sarabande
11 – Bourrée I & II
12 – Gigue

SUÍTE NO. 5 EM DÓ MENOR, BWV 1011

13 – Prélude
14 – Allemande
15 – Courante
16 – Sarabande
17 – Gavotte I & II
18 – Gigue

BAIXE AQUI — DOWNLOAD HERE

CD 02

SUÍTE NO. 2 EM RÉ MENOR, BWV 1008
01 – Prélude
02 – Allemande
03 – Courrante
04 – Sarabande
05 – Menuet I & II
06 – Gigue

SUÍTE NO. 3 EM DÓ MAIOR, BWV 1009

07 – Prélude
08 – Allemande
09 – Courante
10 – Sarabande
11 – Bourrée I & II
12 – Gigue

SUÍTE NO.6 EM RÉ MAIOR, BWV 1012

13 – Prélude
14 – Allemande
15 – Courante
16 – Sarabande
17 – Gavotte I & II
18 – Gigue

BAIXE AQUI — DOWNLOAD HERE

JULIUS BERGER, violoncelo de cinco cordas (Jan Pieter Rambouts, Amsterdam, 1700)

Julius Berger, todo faceirão
Julius Berger, todo faceirão

Vassily

25 comments / Add your comment below

  1. Maravilha de contextualização relativa ao ambiente fonográfico da época da compra. Sou mais velho — venho do vinil — mas vivi tudinho isso aí.

  2. Magnífico texto, lembranças de um tempo não tão distante assim, em que, na mesma situação que a sua, solteiro, um rapaz do sul perdido na cidade grande, explorava as lojas de importados de São Paulo, atrás de alguma coisa que meu cruzado, cruzado novo, cruzeiro, cruzeiro novo, ou sei lá que moeda era, podia comprar. Sim, o presidente era o Sarney, e pouco depois votaram no Collor com seus futuros confiscos, casas da Dinda, PC Farias, etc.
    Posso dizer que fui mais afortunado, graças ao trabalho da Livraria Belas Artes, ali mesmo no começo da Av. Paulista, quase esquina com a R. da Consolação, e onde eu tinha acesso a selos como Olimpia, entre outros que não recordo, por um preço bem abaixo do mercado. Gravações históricas, que custavam uma fortuna em lojas especializadas.
    Mais uma baita postagem de nosso novo colega.

    1. Agradeço pela distinção que me fazes, FDP Bach. Como deves saber, minha Dogville natal sempre foi e sempre será provinciana, por mais que já a aflijam as pestes próprias às megalópoles. Antes de entrarmos na cyberesfera, São Paulo era o infalível centro de onde mandávamos vir as gravações que faltavam nos bolichos locais (i.e., quase todas), desde que as encontrássemos primeiro nos calhamaçudos catálogos que, claro, eram impressos no velho e analógico papel.

    1. … em que éramos felizes e resmungávamos tanto, não é não? Durante anos esperei pela oportunidade de escrever-lhes o memorial, curtinho que fosse. Tem coisas que o só o PQP Bach faz por você.
      Obrigado pela visita!

  3. disco ok, mas sobretudo obrigado pela sua prosa cheia de ironia corrosiva (que eu aprecio muito) e sentimento, francamente deliciosa. Queremos mais.

    1. Contenta-me saber, Quim, que minha prosa foi do seu agrado. Espero melhorar os discos que postar, para que não me expulsem deste blogue de música e – desgraça suprema – eu tenha que me exilar num blogue de crônicas. Volte sempre!

  4. Que delicia de texto, eu que ainda nos meus 20 anos, há pelo 3 anos, passo por odisseias para encontrar compositores e obras da musica erudita que não encontro tão facilmente como é baixar a nova música da Jennifer Lopes ou algo do tipo, claro que minhas aventuranças são muito mais cômodas, são feitas em grande parte pela internet, mas não me furto de comprar CD’s perdidos por lojas aleatórias na grande cidade, e já fiz algo semelhante quando comprei um CD importado caríssimo sendo que minha renda depende em grande parte do meu pai, mas valeu a pena, é um dos melhores CD’s que tenho e já até pensei em enviar aqui para o blog a cópia em MP3.

    1. Lucas,

      Imagina tua dura romaria digital, então, traduzida na larga peregrinação analógica de nós outros, os de barbas brancas, naqueles tempos de pouco dinheiro e preços de muitos zeros à direita.

      Quanto aos MP3, estamos abertos a negociações! 😀

      Volte sempre!

  5. … não dá prá ficar quieto com estas lembranças que voces ventilam. Quantas mesadas, quantas malas recheadas de vinis importados… e a emoção. Eu tive a sorte (ou o azar) de estar nos EUA e UK quando apareceram os CD´s, e aí foi um Deus nos acuda. Agora, compramos .mp3s .flacs .ape e já não sabemos o que fazer com a queridissima tralha que atola nossas casas… “All things must pass”. (in)felizmente ???? Abraços!!!!

    1. A emoção… e QUANTA, né?
      Morava em Praga durante a breve Primavera Cambial que gorou depois com a moratória do Itamar. Os CDs eram mais baratos que lanches. Passei semanas matutando como fazer para trazê-los sem ter que deixar um rim na Aduana, e concluí que a melhor maneira seria desprezar suas caixas, organizá-los num só cilindro compacto de meio metro de altura e, caprichando em meu olhar de paisagem, passá-los assim mesmo em minha mochila.

      Quanto à queridíssima tralha que atola nossas casas, permita-me sugerir que a compartilhe de alguma maneira. Sempre há alguma preciosidade preterida pela sanha das gravadoras em prol do lucro.

      Abraços!

  6. Obrigado pela postagem, Vassily! Bem, deixando de lado a interessante resenha, falemos da interpretação do Berger. Gosto muito das Suites para Cello de Bach e as tenho em ca de 15 gravações, entre elas com Casals, Rostropovich, Maisky (muito bom), Yo-Yo Ma, Meneses, Gastinel (excelente, minha preferida) etc. Você com certeza discorda, mas da interpretação de Berger ouso dizer que é a pior interpretação das Suites que já ouvi até hoje: péssimas articulações e fraseados sem sentido. Não querendo ser tão duro e sabendo que não pode ser verdade, mas daria pra imaginar que o cara não tem boa formação musical, mesmo sendo lá da terra do Bach. Fiquei espantado, mas mesmo assim grato por conhecer mais uma versão das Suites. Obrigado e um abração!

    1. Obrigado pela visita, Barto!

      Você foi muito gentil em chamar de “resenha” um texto meu que passou, impunemente, ao largo dos méritos musicais da gravação que pretendia apresentar. Não o fiz, claro, por acaso: concordamos mais do que você supõe acerca da interpretação de Julius Berger.

      Deixando de lado o valor sentimental que ela tem para mim, e que abordei no meu texto, ela ficou muitos anos parada em minha estante, como atestam os longos micélios de mofo que tive que remover dos discos para poder ripá-los. Não senti falta dela. Gosto muito do som de Berger, mas a articulação e o fraseado – especialmente na Suíte em Mi bemol, de longe a pior – são de fato muito problemáticos. Isso não é um problema exclusivo, porque, como deves saber, o manuscrito de Bach não sobreviveu a nossos dias, e a melhor fonte de que dispomos é uma cópia feita por Anna Magdalena, cheia de inconsistências nas ligaduras e na acentuação, e que ficam mais evidentes quando a comparamos com a versão para alaúde da Suíte no. 5, disponível em autógrafo.

      Com o passar dos anos, assim como você, fui colecionando interpretações dessas Suítes que tanto amo, chegando hoje a talvez umas trinta, e com a melhora dos meus termos de comparação os problemas da gravação de Berger ficaram ainda mais óbvios. Minhas preferidas são, em geral, aquelas que “pulsam” (como a de Gastinel) e que valorizam o caráter de dança da maior parte dos movimentos. Acho a clássica gravação de Casals nos anos 30, em que pese a importância fundamental do catalão na “redescoberta” dessas obras, nada menos que medonha. Mesmo aquela do meu ídolo Rostropovich não me cativou: talvez ele próprio soubesse disso, devido à sua notória reticência em gravá-las, o que só acabou fazendo no final da vida. Citaste a interpretação de Maisky, que eu também adoro: seu timbre pode não ser tão opulento, mas as articulações e o fraseado são muito melhores, e lhe sobra aquilo que, na falta de expressão melhor, chamarei de “musicalidade”, e que o ouvinte só consegue captar com alguma experiência.

      Volte sempre!

    2. Dois últimos comentários que me ocorreram:

      1) Que bom que a gente fica mais experiente, e não só como ouvinte, não é? Frequentemente encontro ouvintes neófitos que se agarram com as unhas à primeira interpretação que apreciam, e passam a detestar todas as outras porque, claro, consideram sua interpretação preferida o único gabarito possível e, óbvio, todas as outras parecerão “erradas” se comparadas a ela. Isso é especialmente notável, por exemplo, na seita que adora o pianista Lang Lang, talvez seduzida pela sua técnica realmente assombrosa e por seus bravados no palco. Claro que eles são livres para amá-lo e para idolatrá-lo, se assim o quiserem, mas daí para quererem dizer que Lang Lang é o único caminho possível para a Beleza é bem outra coisa. Se por um lado é muito difícil conversar com gente assim, por outro fico feliz de ter podido, ao longo dos anos, ganhar experiência e conhecer, por exemplo, as Suítes para violoncelo muito melhor do que Berger sozinho me permitiria.

      2) A julgar pelos downloads, uma boa parte dos usuários concorda conosco quanto à interpretação de Berger: a diferença no número de downloads entre o primeiro e o segundo disco é de quase 30%. Acredito que, ao escutarem o primeiro, estejam perdendo o entusiasmo em baixar o segundo.

      1. Vassily, obrigado pela carinhosa resposta!
        Concordo com tudo que disse. Também não consegui me empolgar com Rostropovich. Havia esquecido de citar a gravação de Jean-Guilen Queyras como altamente sensível e musical. Também gosto muito da gravação de Patricia McCarty na viola. Ela é muito musical e não se preocupa com “correria” (se não me engano a gravação também já foi postada no PQP). Além destas, considero muito boas as interpretações de Jaap Ter Linden, Truls Mørk e de Janos Starker. Mas a rainha mesmo é pra mim a de Anne Gastinel (que musicalidade!) . Em segundo lugar vem a de Queyras, não sei se concorda. Grande abraço!

  7. Entraste de sola no PQPBach, meu caro!
    Bem-vindo à confraria!
    Com textos assim maravilhosos e essa qualidade musical, vejo que teremos um reforço e tanto no blog daqui pra frente. Vida longa, meu caro!

    Um grande abraço.

  8. Relendo este texto quatro anos depois de sua estréia, nem consigo externar minha alegria em tê-lo de volta ao seio do PQPBach, Vassily.

  9. Que texto bacana Vassily ! Dei muita risada das lembranças daquela época, eu também ficava de ouvido colado na Rádio, principalmente nas séries de Mozart ou Liszt que o pianista Gilberto Tinetti apresentava, ai punha para gravar e em algumas vezes no finzinho dos concertos a fita acabava, era um desespero.. rsrsr. Um abração !

      1. Até hoje…. as 14:00 ele está lá, já não é a mesma voz, mas a simpatia é a mesma ! Baixei o aplicativo no celular e de vez em quando ouço o “bom velhinho”.

  10. Queridos Vassily, PQP e demais PQPeanos,
    Não tinha visto essa postagem em 2015, mas fiquei contente em conhecer a versão do Berger e rir com as agruras de quem gostava de música nos anos 80 e 90. Eu era de família pobre, no interior do estado do RJ, e na cidade só havia uma loja que vendia vinis (e depois CDs) de música clássica. Era lá que eu ia “namorar” os discos, sem comprar nenhum, e economizava cada tostão para comprar fitas cassete para gravar as músicas da rádio MEC e de um programa na extinta JB FM.
    Quem passou por essa fase sabe bem o prazer que é em garimpar lojas e sebos de discos para achar uma raridade. Sabemos o quanto custou para alimentar esse prazer e essa alegria que temos em ouvir música. Por isso, entendo de verdade, e admiro MUITO o quanto vocês se empenham em compartilhar de graça o que custou (e custa) tanto tempo e dinheiro para conseguir.
    Se vale alguma coisa, saibam que amo as postagens e me divirto com os textos.
    Obrigado!

  11. Tenho 22 anos, mas, de algum modo, compartilho da admiração e gratidão manifestadas no comentário de Paulo Jr. Disseram já que Internet é um mar de bobagem etc., nesse caso, eis aqui um exemplo de — digamos — notável exceção.

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