Não podemos ser felizes. Não é possível a felicidade num ambiente hostil. E enquanto estivermos vivos, acabaremos cedendo, mais cedo ou mais tarde, aos ataques inusitados, às angustiantes sensações e o depressivo tédio. Então pra quê se enganar com a vida, se morrer é a melhor opção contra a infelicidade? Resposta simples, o homem é medroso, prefere sofrer, pois se acostuma com o sofrimento. Já na morte, o homem não sabe o que encontrará. Para os ateus é óbvio, tutto è finito. E para qualquer religioso de verdade, a morte o melhor caminho, a única saída para felicidade, por isso não podemos negar que os grandes homens de fé da atualidade são os suicidas.
Depois dessa introdução revigorante, gostaria de salientar certos pontos na música de Pierre Boulez que me fizeram pensar sobre esse assunto. O desconhecido é o que o homem mais teme. Não é surpresa, portanto, descobrir que a música do francês é tão pouco atrativa para o ouvinte temente. Ela foge completamente da percepção natural de um ser humano, que na maioria das vezes é acostumado à linearidade da vida, a um destino certo e um final de glória no reino divino. Mas este mesmo ser doutrinado, que sabe o certo e errado, cai na armadilha de sua própria natureza complexa e fascinante. Por mais que ele tente, a sua mediocridade não será bastante para mudar isso. Só a mediocridade máxima levará o homem à felicidade plena.
Bastam segundos de Sur Incises para percebermos que estamos perdidos. No belo livro “A música desperta o tempo” de Daniel Barenboim, há uma passagem sobre a importância da memória auditiva. Quando ouvimos música, “o ouvido lembra-se do que já percebeu e, por meio disso, volta ao passado ou pode até ter consciência dele e do presente ao mesmo tempo…o ouvido cria a conexão entre o presente e o passado e envia sinais ao cérebro quanto ao que esperar do futuro”. Algo absolutamente impossível na música de Boulez. Assim como na pintura abstrata, onde o espaço parece não ter início ou fim, na música de Boulez, a idéia de passado e futuro é inexistente. Ou seja, uma dificuldade incrível para o homem moderno que tem sempre como guia o tempo. Eis o paradoxo, a música moderna não foi feita para o homem moderno.
O sofrimento escurece os objetivos que levam à felicidade. E nesse caminho tortuoso, o som do ponteiro do relógio é ensurdecedor. Já com Boulez, aprendemos que a questão do sofrimento e felicidade é irrelevante, assim como o bendito tempo. O homem é catapultado ao espaço onde não há pontos de referências. A música de Boulez é música de contemplação.
Faixas:
1. Sur Incises (1996/1998) pour trois pianos, trois harp, trois percussion-claviers – Moment I
2. Sur Incises (1996/1998) pour trois pianos, trois harp, trois percussion-claviers – Moment II
3 – 6. Messagequisse (1976/77) pour violoncelle solo et six violoncelles
7 – 15. Anthèmes 2 (1997)
Performed by Jean-Guihen Queyras, Ensemble InterContemporain
Conducted by Pierre Boulez
CDF
Este tipo de postagem sempre enobrece este blog, em minha humilde opinião. É música para poucos, mas pela quantidade de visitantes desta página, é preciso crer que alguém amará esta música ou, ao menos saberá compreende-la. Bela postagem, caro CDF. Belo texto também. Boulez é um erudito muito hermético. Tanto em seus textos quanto em suas peças musicais é extremamente difícil compreender sua intenção. Mas, por isso, mesmo, é empolgante tentar. Sempre me empolgo com postagens assim.
Não sou nenhum especialista em músicas deste estilo, mas algo me faz ouvir, e novamente ouvir. Não porque tenha achado lindo, mas sim pelo grande curiosidade em tentar entender ou encontrar alguma coisa. Por vezes ouço prestando atenção em cada instrumento e em cada nota, tentando encontrar alguma forma, por vezes ouço apenas deixando a música passar, sem me exigir uma atenção rigorosa a detalhes formais. E é engraçado. Sempre tenho a sençação de que vou encontrar algo que me fará querer tocar o CD novamente.
Muito obrigado pela postagem e congratulações pelo excelente texto.
Belíssimo texto, CDF. Eu, que não sou muito afeito às ultra-modernidades, fiquei com vontade de descobrir Boulez.
Se não me engano, essa obra foi apresentada pelo própio Boulez no documentário “Uma Aula com Pierre Boulez” (passou recentemente na TV Escola) na qual ele explica que a obra foi composta somente para piano e foi feita para execução num concurso. Entretanto, mais tarde, modificou-a para a formação que vemos no CD. Ele explicou sobre os arcodes que se repetem de tempos em tempos na obra, nas experiências com a persepção sonora, etc. Contudo desliguei a TV no meio do documantário, pois já era 10h30 da noite (estava com sono) e a música moderna não me apetece tanto quanto a clássica e a romântica. Pois a obra -como explicou o própio Boulez- era só um “desafio virtuosístico para um concurso” e mais tarde transformada nua música experimental (trabalhando com a persepção sonora, com as ondas sonoras, persepções rítmicas, etc.) que me parece um tanto vazia. Mas essa é só minha opinião e acredito que se possa achar muito mais simbolismo e emoção nessa obra do que eu encontro.
Aprendi na época que o Villa-Lobos (com Getulio Vargas) implantou o ensino obrigatório de musica nas escolas que musica é melodia,harmonia e ritmo.
Esta obra possui melodia? harmonia? ritmo?
Ou é uma expressão de arte como as pinturas do americano Pollock? como o urinol do Duchamp? como uma pintura de Andy Warhol?
Como você ouve,interpreta e digere estes ruidos?
Como musica ou expressão de arte?
Quanto ao lirismo do texto de apresentação da obra (CDF), não seria melhor resolver estas indagações e introspecções com um bom livro? Em busca do tempo perdido de Marcel Proust por exemplo?
Esqueci again…
Nota: 0,28 (de zero à cinco)
OBS: zero: 4`33″ do Cage
cinco: Sagração da Primavera-Stravinski
Bom, sempre polêmicas são as expressões de artistas que desafiam a elementariedade dos fatos com um acinte existencial sobre o vazio ou a sua existência enquanto matéria quântica, de cunho plástico, auditivo ou visual. Foi assim com Henry Moore, ao esticar suas esculturas celebrando o vazio, Duchamp, ao engarrafar o “ar de paris”, A peça “Art” de Yasmina Reza, na literatura com Sartre Sobre “o Ser e o nada”, Malevich – Pintor e projetista russo (23/2/1878-15/5/1935). Reconhecido como um dos precursores da arte abstrata geométrica. Tatline dirige em 18 uma reconstituição da conquista do Palácio de Inverno ao som de uma sinfonia de sirenes de fábricas, comandada por Maiakovski. Kim KI Duk – Cineasta coreano que filma casa vazia.Enfim diante de todos esses exemplos, consideo a obra referida acima como uma expressão de arte musical, com melodia e harmonia conceitual.
Caro PQP ,
Antes de mais gostaria de felicitá-lo pelo fantástico blog. Estou simplesmente sem palavras relativamente à variedade de música de extrema qualidade que é postada aqui. Gostaria era de pedir se alguém poderia postar o “Martelo Sem Mestre” uma das excelentes obras que tenho muitas saudades de ouvir.
Cumprimentos!
Amei o texto!! Perfeito. Música é muito mais que apenas referências passadistas (vide a postagem do Medtner – bonitinho, mas serve pra quê exatamente? Emoções?). Mas eu tento, tento, e o link para baixar não dá certo… Por que será? Muito tráfego?
Meu nobre Cdf, entendo que as pessoas têm gostos variados, e, que,às vezes, passamos a apreciar algo que antes não nos apetecia…E, se não fosse assim, seria muito chato viver. Não sei se o texto é atual, tampouco se esse honrado filho de Bach conserva o niilismo contido no post, mas não concordo que o homem religioso seja medroso e suicida. Se assim o fosse, o seu pai não teria composto tantas belas peças que influenciam até hoje a arte musical.
Muito grato, por mais uma oportunidade musical e filosófica.
Pensamentos do meu amigo Schopenhauer:
1- Morte,gênio inspirador,a musa da filosofia.Sem a qual difícilmente se teria filosofado.
2-A vida e a morte,o nascer e morrer,é o maior jogo de dados que conhecemos.
3- A vida é uma guerra sem quartel,e a morte nos encontra com as armas na mão.
4- Nossa vida é um episódio que perturba,sem nenhuma utilidade,a serenidade do nada.
Mesmo assim viva a música clássica e o jazz. Abraço do Dirceu.
Esse CD é ótimo! Grandes obras de Boulez!
Realmente, o ano de 2016 não começou bem para a música. Não bastasse nosso querido Gilberto Mendes, em menos de uma semana também perdemos, no dia 6 de janeiro, o grande Boulez ! Falar o que ?
Do regente ? Do teórico ? Do compositor ? Melhor mesmo é ouvi-los, todos ao seu tempo.
Espero parar um tempo de dar essas notícias ruins ao PQP Bach.
Boulez está morto ! Vida longa a Boulez !