Existem certas obras que ficam em nossas cabeças, e nunca saem. Elas se estabelecem como verdadeiros cânones, e obviamente, servem de parâmetro para outras. Sem querer entrar no mérito da escolha pessoal, afinal já se diz tudo quando se fala em escolha pessoal. Uma das obras que fazem parte deste meu cânone pessoal é o Concerto para Piano nº 2, de Brahms. O considero um dos pilares da música ocidental, ao lado das obras de meu pai espiritual, Johann Sebastian. Não temo em colocá-lo ao lado dos Concertos de Brandemburgo, ou até mesmo das Variações Goldberg.
Abaixo reproduzo o belo texto produzido por Malcolm McDonald sobre este concerto:
“(…) o caráter da obra é muito mais como uma espécie de “Überkammermusik”, uma intimidade de discurso da música de câmera composta livremente dentro do veículo orquestral. O Concerto parece estender o campo das obras de Brahms para corda e piano, especialmente os quartetos com piano: há paralelos claros entre o movimento lento e o do op. 60, e alguns, prováveis, entre o scherzo e finale e aqueles do op. 26. Acima de tudo, o papel do solista é fluido, não fixado a uma simples postura retórica: ele ou ela deve, na verdade, imperar com o máximo poder em certas articulações, mas outros momentos pedem extrema delicadeza e limpidez de toque, a reticência e a discrição do acompanhador ideal. O finale exige um indecoroso – mas jamais deselegante – senso de diversão. E o próprio início da obra requer a habilidade de ser um parceiro de precisa equivalência na criação de uma das mais românticas de todas as aberturas de concerto, em que a tranquilidade da montanha e da floresta ressoa até as notas da trompa de Oberon.
Esta ventilação preliminar do primeiro tema origina uma ardente cadência do piano na veia mais vigorosa e muscular de Brahms, em si apenas preparação de um tutti orquestral abrasador e audacioso. A estratégia lembra o Concerto em mi bemol de Beethoven (em que provavelmente se inspirou), que, na verdade, é o progenitor da obra de Brahms, mas o efeito, aqui, é completamente diferente. O movimento excepcionalmente amplo de Brahms é com toda certeza um projeto de sonata, mas sua prodigiosa quantidade de material temático, na maior parte de admirável beleza, parece crescer, organicamente, de maneira radical, ramificando-se em vasta rede tonal de idéias interligadas. O piano realmente não apenas repete ou comenta os temas do tutti, mas se empenha num diálogo de enorme extensão, pela contínua variação deles. Como na similarmente “descansada” Segunda SInfonia, a escuridão e a paixão têm seu lugar, a primeira representada por repentinos lampejos de distantes áreas tonais, (…) e a última pelos mais coléricos e poderosos dos eloquentes momentos do piano.
O scherzo em si menor que se segue é onde o concerto chega mais perto da expressão trágica, sendo uma forma sonata extremamente concisa, em contraste com a do movimento de abertura, mais expansiva. Seu primeiro motivo, principalmente no piano e nas cordas graves) é nervoso e duramente impulsionado, de estreita relação com o espectral scherzo da primeira serenata em ré maior, mas embebido agora, de um fervor impetuoso. O segundo (alto nas cordas, piano acompanhando) uma pequena e obsessiva melodia repleta de patos resignado. Estes contrastes são fixados mais firmemente por uma repetição da capo da exposição, sendo depois decompostos num irado desenvolvimento. Este se mostra à altura de um novo arremesso de tensão, com a “pequena melodia” do segundo se demonstrando tão cheia de espírito de luta quanto a primeira. A salvação está perto, na forma de um repicante e handeliano tema em ré menor que irrompe no auge da tempestade e transforma a atmosfera em outra de robusta e vigorosa hilaridade, se expandindo para criar um trio central e muito inortodoxo para o movimento. A lógica da sonata exige, no entanto, que a trabalhada música do scherzo retorne: ela o faz em uma recapitulação que continua essencialmente os processos de desenvolvimento, sendo muito da contribuição original do piano cedido à orquestra, enquanto o solista reforça a tessitura com oitavas ressoantes. Premente e volátil até o fim, mas justamente habilitado pelo trio, a evitar a tragédia verdadeira, o movimento se precipita para um término de emocionante concisão.
Brahms nunca compôs um concerto para violoncelo, embora dissesse duas vezes que o exemplo de um outro compositor (primeiro o de Volkmann, depois o de Dvorák) lhe havia mostrado como podia ser feito. O andante do op. 83 começa com um solo de violoncelo confortador e cantante que mostra como ele não precisava de instruções e nos faz lamentar que de fato não tenha efetuado a experiência. (…) O piano nunca toma esta melodia. Em vez disso, ele a rodeia e medita sobre seu fundo de cena harmônico, em figuração filigranada e de máxima plasticidade, cuidadosamente planejada para dar a impressão de improviso improspectivo, enquanto leva de fato o desenvolvimento dos motivos até o ponto de dissolução. Piano e orquestra se empenham num diálogo mais agitado, mostrando que as tensões do scherzo não se dissiparam completamente. Então o piano apresenta num episódio de extraordinária ternura em fá sustenido maior e o solo de violoncelo volta com seu tema naquela tonalidade, antes de descer delicadamente para o si bemol tônico, a fim de anunciar a repetição da forma ternária, rematando o movimento na mesma atmosfera de calma analéptica com que o começou.
O finale em allegretto grazioso é uma mistura complexa de rondó e sonata que usa sua complexidade com jocosa despreocupação. Brahms jamais compôs um movimento que fosse de recreação mais genuína, nem mais felino no estado de espírito. As proporções permanecem régias, mas o leão agora se move com uma leveza de gatinho e uma graça precisa, inconsciente, de gato. O piano espalha temas cadenciados e instantaneamente memorizáveis, com uma profusão que parece inocente diante dos nossos ouvidos: mas a grande arte se acha em toda parte, na extraordinária quantidade de sutis contrastes rítmicos, no langor “cigano” da principal melodia do primeiro episódio (ou segundo motivo), que reproduz o registro e a tonalidade da oitava Dança Húngara, no espírito e no objetivo positivamente mozartianos dos epigramas atirados entre o piano e os solistas orquestrais favorecidos, na descansada mestria da orquestra, que permite a Brahms compor tuttis excelentes e audaciosos sem uma vez requerer trompetes ou tambores. A coda em poco piú presto é uma mescla inacreditável e inteiramente convincente de volubilidade e grandeza, apondo o selo final na realização de um concerto incomparável em projeto, inteligência e sensibilidade. “Civilização” pode ser um conceito ambivalente. Em seu melhor sentido ele designa algo como o Concerto para Piano em si bemol de Brahms.” (MCDONALD, 248-251)
A interpretação é a mesma que procurei incansavelmente nos últimos vinte anos, até o dia em que uma bela alma a postou no avaxhome: Stephen Kovacevich ao piano e Colin Davis regendo a London Symphony. Repito as palavras de pqpbach, tem de se ouvir de joelhos, e agradecer aos céus pela possibilidade de apreciá-la. Trata-se de cd fora de catálogo, nem consta no site da amazon.
Johannes Brahms – Piano Concerto nº 2, in B Flat, op. 83
1 – Allegro non troppo
2 – Allegro apassionato
3 – Andante piú adagio
4 – Allegretto grazioso – un poco piú presto
Stephen Bishop Kovacevich – Piano
London Symphony Orchestra
Colin Davis – Conductor
FDP Bach
Esse concerto é indescritível. Faz parte de minha vida desde sempre. Tenho até medo de escutá-lo… O movimento lento é, como ouvi por aí, “uma aula de música” – pouco há de mais belo neste mundo.
Vou ouvir o Kovacevich com Davis, tenho enorme curiosidade. Minhas outras referências são Richter com Leinsdorf, Gilels com Jochum, Zimerman com Bernstein e o nosso querido Nelson Freire com Chailly.
Bela postagem(mais uma)FDP Bach!!!comentei agora pouco na postagem do Cd do Zimerman sobre essa gravação do Kovacevich/Davis!
É muito boa mesmo!
Villa-Lobiano, não conheço a versão do Richter, e tenho as outras que você citou. Gilels ainda é considerado imbatível neste concerto, tentarei postá-lo ainda enquanto não começarem as aulas. Mas Kovacevich ainda é meu preferido, principalmente por causa de seu primeiro movimento.
Júnior, na verdade você foi o responsável pela postagem, eu li seu comentário e resolvi prepará-la. Mas já há alguns meses eu tinha vontade de postá-lo.
Richter com Leinsdorf é meu Brahms 2 predileto – repleto daquela misteriosa “sensação de inevitabilidade” tão típica do Richter (e de que eu gosto tanto, nele e em artistas como Katchen e Kertesz, por exemplo).
Dizem que o Leinsdorf caiu de paraquedas nesta gravação – quem iria gravar com o recém-chegado Richter seria Fritz Reiner. Mas algo não deu certo, chamaram o Leinsdorf e o Reiner acabou fazendo sua gravação depois, com Emil Gilels. Mas não ficou tão boa. 😉
Ah, esqueci outra gravação de que gosto muito: Serkin com Szell.
Este é provavelmente o maior concerto ”com” piano de toda história da música e Gilels com Jochum são imbatíveis. Aqui Kovacevich ainda estava meio verde e um pouco longe do grande Mestre que gravaria a integral das Sonatas de Beethoven. Muita gente já se referiu a este concerto como ”concerto grosso” e ou ”triplo” achando que Brahms tinha o Concerto Triplo do ”papai Beethoven ”na cabeça quando realizou esta obra.
Serkin e Szell vem logo a seguir na minha ordem de importância .
Villalobiano, realmente a gravação de Richter/Leinsdorf é ‘hors concours’. Se eu me lembro bem, Reiner ficou doente pouco antes da gravação. Que eu me lembre, o Gilels/Reiner foi gravado antes do Richter/Leinsdorf.
A gravação do Gilels e do Reiner eu particularmente não gosto. O som não é grande coisa, tem momentos que o piano está desafinado, e não gosto da interpretação do Gilels.
Não conheço essa do Kovacevich, mas como seu integral de concertos de Beethoven com o Davis está bom, esse também deve estar.
Outras gravações boas, e raras: Arrau com Markevich na RIAS Berlin e van Cliburn com Kondrashin no festival de Tchaikovsky. já ouviram?
A grande gravação de Gilels é com Jochum.
Caros
esse concerto faz parte de minha vida.
dr cravinhos
Eu tenho os dois concertos do Brahms com o Arrau, regência do Bernard Haitink, e com o Daniel Barenboim, regência do Celibidache. Gosto muito da dupla Barenboim/Celibidache, o resultado ficou muito bom.
O Concerto é como você bem o diz, FDP: um dos pilares da música ocidental.
Sem máculas, envolvente, expressivo pelo que Brahms faz com a integração “Piano-Orquestra”.
De fato, ambos são tratados de forma quase inacreditável em suas respectivas e diversificadas possibilidades sonoras. Porém, simultânea e paradoxalmente, tais diversidade aparecem com uma unidade extasiante.
O equilíbrio dos conflitos e a harmonia dos reforços justificam todos os qualificativos que se deseje atribuir a esta obra genial.
Grato pela postagem.
Quanto a interpretação, bem, graças aos céus os intérpretes não se copiam e cada qual vê e sente aquilo que encontra em si mesmo.
Isto é uma benção.
Nesta interpretação, a dupla Kovacevich/Davis nos põe em contato com dois grandes músicos.
Grande músicos, capazes de instilarem o sopro da vida naquilo que Brahms criou e nos legou sob a forma de esboços gráficos.
Ao poderem assim fazer, Kovacevich/Davis foram capazes de nos proporcionar puros momentos de contemplação estética, de mudança de mundo…
…de transmutação do material para o espirito infinito…
Não é igualmente genial que eles seja capazes de fazer isto?
Parabéns FDP!
Continue a nos mostrar obras primas intepretadas com a genialidade e diversidade que sempre temos observados.
Um abração.
Edson
Aproveito para responder ao Villa.
Caro amigo: estive ausente mas, infelizmente, não de férias.
Voltei hoje.
Mas o trabalho que faço tem suas compensações.
Aliás, gosto muito do que faço.
Um grande abraço.
Edson
Exigente, tem razão! Gilels com Reiner é de 1958; Richter com Leinsdorf é de 1960. Troquei as bolas.
Arrau: tenho os dois concertos com Haitink, que acho bem pesados e enfadonhos, apesar da Concertgebouw; e o seu Brahms 1 com Giulini, um tanto melhor. E Van Cliburn, puxa… do pouco que conheço dele, não gosto. Exemplo: Sexta Sonata de Prokofiev, super pálida perto da do Richter. Mas tenho curiosidade!
Concordo que o do Arrau é pesado, mas enfadonho não hehe. A versão que eu citei é melhor que a com o Haitink, vale a pena ouvir.
O Cliburn eu citei mais porque sua técnica é ímpar e seu quarto movimento é sensacional, embora os outros três sejam mais sem graça, pálidos como a sonata.
Está disponível numa ediçao Philips de 2005.
http://www.mdt.co.uk/MDTSite/product//4757160.htm
De qq modo, mto obrigado pela postagem!
Como diz Malcolm MacDonald, “uma planície de majestade olímpica e vastidão de horizontes não menos impressionante” — ou, um paradoxo de que gosto muito, a “inocência do leão”. Obrigado, FDP Bach!
Uau, ouvi o Kovacevich!
A gravação é realmente maravilhosa. Vai entrar no meu panteão, junto com o nhô Nerso e com o Richter.
Que música, que música, que música…
Surprendo-me que ninguém dos brahmanianos citou uma gravação soberba do Segundo Concerto:
Artur Rubinstein com Charles Munch de regente da Orquestra Sinfônica de Boston.
RCA Victor – Selo Vermelho
Ouço-o há 50 anos.
Franklin Cunha
Médico
Conheço esta gravação de fama, Franklin, mas não a possuo. Tenho apenas o primeiro concerto de Brahms com o Rubinstein. Mas valeu a sugestão. Vou dar uma fuçada na rede atrás dela. Creio ter sido lançada naquela coleção magnífica com 100 cds da RCA, todas Red Seal. Até tenho alguns cds, principamente as gravações que o próprio Munch fez do Ravel e do Debussy, inclusive alguns destes cds já foram postados aqui no blog. Admiro muito esse regente e Rubinstein, bem Rubinstein na minha modesta opinião, é o maior pianista do século XX.