Guia de Gravações Comparadas P.Q.P. – Mahler Symphony no.1 in D major ‘Titan’

A Primeira Sinfonia, dita Titan, é uma das obras mais executadas de Mahler, não apenas por sua beleza intrínseca (que aliás não é exclusividade dela), mas basicamente porque é uma das mais curtas, além de ser extremamente otimista, escrita numa linguagem acessível ainda do romantismo pós-wagneriano, e sem necessidade de solistas vocais e grandes coros. Como Otto Maria Carpeaux assinalou, todas as orquestras que querem mostrar certo virtuosismo mas tem dificuldades de produzir as exigências sonoras das demais sinfonias, optam pela Primeira.

Mas além disso, é também uma sinfonia muito interessante no contexto da vida e da obra de Mahler: ela funciona como um prefácio literário ao universo mahleriano, pois há nela ecos resumidos de basicamente tudo o que se ouvirá, melodica e harmonicamente, nas sinfonias posteriores. O termo prefácio literário não é força de expressão; do ponto de vista narrativo, ela trabalha com a ideia de um personagem heróico, descrito musicalmente através de seus temas e resoluções harmônicas tipicamente mahlerianas. É a expressão psíquica de seu autor, em que sua obra, permeada por este alter-ego heróico, apresenta uma ideia-fixa (ou um leitmotif) cujo objetivo é uma expressão de um universo ideal. É patente, através desta narrativa, sua busca incessante pela redenção, uma vez reconhecida a natureza imperfeita e efêmera do ser humano. E assim, passa por todos os conflitos filosóficos da humanidade (as angústias da sociedade, o amor, a morte, a religião), temas estes presentes em todas as suas obras, e, muito a propósito, já expresso nesta sinfonia, que termina numa espécie de cantus firmus de júbilo e alegria, até então único na história da música ocidental, informando ao público a que vem este tal Gustav.

Mahler é uma das mais contundentes respostas musicais às transformações científicas e filosóficas da virada do século XX, absorvendo, ainda que inconscientemente, as ideias da recente revolução psicológica de Freud (tendo ele mesmo sido seu paciente) e, claro, das não menos revolucionárias ideias postuladas por Planck e Einstein que abalaram os pilares da ciência física.

Escrita entre 1887 e 1888, teve diferentes versões apresentadas, começando por estrear como um poema sinfônico em duas partes, donde vem seu subtítulo, Titan, por conta da inspiração literária da obra de Jean Paul. Uma revisão de 1893 a colocou na forma sinfônica tradicional com um movimento a mais, o Blumine, depois suprimido. Após as revisões feitas até a publicação tardia em 1898, a Sinfonia finalmente adquiriu a forma como hoje a conhecemos, e nunca mais foi chamada por Mahler pelo subtítulo. Mas apesar disso, a despeito da imponência do nome, este acabou sendo incorporado como recurso de marketing.

O site gustavmahler.net.free (uma dádiva para os mahlerianos) cita nada menos que 274 gravações diferentes para a Primeira Sinfonia, nem todas, claro, disponíveis no mercado. E, no que diz respeito à possibilidade de ouvir alguma delas na internet, considerando os sites de streaming, o You Tube, a Amazon e os downloads genéricos, é possível achar pelo menos 40 versões. Para que os ouvintes tenham alguma orientação, trago algumas opções que gosto bastante:

1.Bernard Haitink, Concertgebouw PHILIPS 1972

61S7jofvU6L._SL500_SX300_Esta é uma gravação clássica, já está fora do catálogo e de vez em quando é relançada em algum compêndio, como a caixa da integral da sinfonias ou, neste caso, na coleção Abril de Grandes Compositores. Esta gravação, dos anos 70, faz parte do primeiro e único ciclo completo de Haitink, pois o segundo, na década de 90, não foi completado por conta do desmonte da indústria fonográfica, em especial o da música clássica, que foi o que sofreu a maior bancarrota (ver Norman Lebrecht, “Maestros, obras-primas e loucura”). Haitink na verdade gravou esta Sinfonia várias vezes de forma isolada, entre 1962 e 2007, mas esta de 72 desponta como uma de suas mais respeitáveis leituras.
É sem dúvida uma leitura inspirada, sendo tratada de forma muito mais solene que jocosa, e por isso tem um ar bruckneriano que permeia toda a execução. O frenesi dos finais do primeiro e último movimentos, expressões legítimas de uma Mahler jovem e apaixonado, são executados como se fossem reflexões profundas e conflitantes de um Mahler tardio, como o da Sétima ou Oitava Sinfonias. Apesar disso, é um registro que prima pela pureza de timbres e contornos melódicos, deixando, não obstante a maior lentidão rítmica, uma impressão bastante singular. Haitink, sempre distinto, não deixa a peteca cair. Os trompetes desafinam nas fanfarras do finale, mas este é um detalhe menor neste conjunto. A gravação desta edição acompanha o Lieder eines fahrenden gesellen, na voz imponente de Hermann Prey. Assim como em outras gravações, este lieder é sempre bem-vindo por ter sido uma das inspirações originais para temas da Primeira Sinfonia.

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2. Kurt Masur, New York Philharmonic TELDEC 1992

mahler_symph1_masur_smallEsta foi uma das gravações que marcaram a chegada de Kurt Masur na Filarmônica de Nova York em 1991. A gravação é do ano seguinte, mas evoca o mesmo sentimento de frescor recém-casado. A escolha de Masur, pelos músicos de Nova York, se deu para tentar fazer da Filarmônica novamente uma experiência mais “requintada”, uma vez que seus antecessores, Zubin Mehta e Leonard Bernstein eram dados a concertos populares, e Pierre Boulez, muito moderno. Naquela época o público patrono se incomodou com isso. Trazendo a sobriedade do alemão especialista em Beethoven, a ideia era fazer a Filarmônica deixar de parecer uma orquestra crossover, e escolheu a 7a. de Bruckner para estrear com toda a pompa. Hoje este fato soa um pouco anacrônico, mas fazia sentido naquele contexto. De qualquer modo, é um registro primoroso, de quem sabe o que está fazendo. A firmeza rítmica se impõe como um rolo compressor, e acaba deixando a obra mais fria que o desejado. Talvez Masur estivesse tentando causar boa impressão aos americanos, e se manteve cauteloso nas escolhas das dinâmicas. De qualquer forma é uma performance das mais eloquentes, e merece ser visitada, até porque também vem com as Canções do Viandante, na voz do barítono sueco Håkan Hagegård.

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Entretanto, um pequeno parênteses para a questão da performance fria. Kurt Masur também é o responsável pela performance mais quente que conheço da Primeira Sinfonia de Mahler. Aconteceu em 2005 no Festival de Inverno de Campos do Jordão, em que Masur foi o maestro convidado, tendo ao seu lado Roberto Minczuk. Os bolsistas do festival, todos ainda amadores em fase de profissionalização, tinham pouca experiência com prática de orquestra, principalmente em se tratando de orquestras do tamanho exigido pela Primeira. Entretanto, ao invés de uma performance morna para cumprir exigências acadêmicas e agradar aos pais dos bolsistas, o que se ouviu foi uma performance das mais contundentes, que num nível de percepção sensível, transbordava a emoção e o entusiasmo daqueles músicos em tocar pela primeira vez uma obra daquela envergadura. Percebe-se, ao mesmo tempo, tanto a inexperiência e a ingenuidade quanto uma vontade sobre-humana de se superarem, coisa que acabam conseguindo com força descomunal, fazendo do finale desta gravação um dos mais emocionantes da história. Kurt Masur chorou nos aplausos, consciente do esforço que cada músico empreendeu. Esta gravação vale a pena porque é possível sentir toda essa carga emotiva no registro, coisa que muitas orquestras profissionais não conseguem. Infelizmente é um disco que está esgotado, então disponibilizo aqui também. Ele vem com outras obras executadas no mesmo festival (incluindo uma estréia de Almeida Prado), mas eu diria que a Titan é que interessa.

DOWNLOAD HERE – XXXVI Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão
CD Duplo – Arquivo FLAC 661Mb

3. Leonard Slatkin, St.Louis Symphony Orchestra TELARC 1981

mahler1slatkinEsta é a pior de todas: Slatkin é um bom regente, tenta dar um ar sóbrio e distinto ao frenético finale, mas no fim, não consegue. Boa parte do problema é a orquestra, St.Louis tem metais com uma sonoridade bem fraca, e Slatkin ainda puxa o freio de mão. Aí não dá mesmo. As fanfarras não empolgam, e parecem contidas como se precisassem fazer pouco barulho para não atrapalhar os vizinhos. Mas a gravação tem méritos: a Telarc é um selo americano que foi o absoluto pioneiro na gravação digital, sendo deles o primeiro LP lançado comercialmente que teve sua matriz gravada digitalmente, em 1978. Este know-how fez de suas gravações verdadeiras referências para o desenvolvimento de uma metodologia de gravação na era digital, e a clareza de seus registros é até hoje apreciada. Mas a recomendação é clara: só para fãs.

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4.Rafael Kubelik, Symphonie-Orchester des Bayerischen Rundfunks DG 1968

mahler_symphony1_titan_kubelik_coverHá um certo consenso sobre a superioridade desta gravação, que foi inclusive indicada, recentemente, pela revista Gramophone, como a melhor Titan de todos os tempos. Mas toda a classificação é relativa, e acredito ser impossível uma unanimidade. Claro, a gravação tem méritos indiscutíveis, mas acho um pouco de exagero tanto crédito. Kubelik é um maestro dos mais competentes, um dos grandes “monstros sagrados” (expressão que na minha época era corriqueira) da regência do século XX. De origem tcheca, tem todos os requisitos para entender esta música até o último fio de cabelo. E ele realmente a entende como poucos, fazendo principalmente do scherzo e da paródica marcha fúnebre momentos de rara e fina ironia. Mas venhamos e convenhamos, a sonoridade da tecnologia de gravação de 1968 fica um pouco a desejar, principalmente deixando evidente certa estridência dos trompetes, uma limitação que nem toda gravação desta época possui ou incomoda, mas esta possui – e incomoda. Outra: Kubelik é famoso por seu rubato, ele costuma diminuir o andamento com algum exagero antes dos clímax ou das repetições dos temas essenciais. Em alguns casos, funciona que é uma maravilha, em outros, considero o resultado cafona. Não posso dizer que achei ruim seu rallentando na retomada do tema no primeiro movimento, mas também não vou dizer que não estranhei. Confesso que não tenho opinião definitiva, mas no fim das contas não é minha gravação dos sonhos. Mas se vale a pena? puxa, se vale! E a gravação também tem o Lieder eines fahrenden gesellen, mas na voz de ninguém menos que Dietrich Fischer-Dieskau. Aí fica covardia não ouvir.

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5.Zubin Mehta, New York Philharmonic CBS 1982

mahler_symphony1_mehtaA grande zebra é esta gravação de Zubin Mehta, feita pela CBS em 1982. Uma verdadeira jóia. Outras leituras de Mehta, como a da DECCA com Israel, não chegam aos pés dessa. É uma leitura precisa, clara, entusiasmada e empolgante. Os trompetes de Nova York estão em ótima forma – melhor que na gravação de Masur – e executam as fanfarras com convicção ímpar, em que ouvem todas as notas com clareza e limpidez. O registro deixa aflorar o Mahler sonhador da juventude como poucos, coisa até rara em se tratando de Zubin Mehta, mas é preciso admitir: neste caso é quase impossível não se deixar contaminar pela empolgação da sonoridade desta gravação. Mehta, apesar de não ser um mahleriano convicto, é responsável por várias leituras memoráveis, e esta é uma delas. Não há meio termo, é uma leitura brilhante, ou se adora ou se ignora. Os puristas podem objetar que Mehta não faz o ritornello do primeiro movimento, mas devo dizer que também é um detalhe menor. Compensa todo o crime.

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Arquivo FLAC 218Mb

6.Klaus Tennstedt, London Philharmonic Orchestra EMI 1977

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Esta gravação é primorosa. Klaus Tennstedt era um mahleriano não apenas convicto, mas devoto e praticante. Norman Lebrecht explica bem esta relação meio doentia: “após um sério colapso nervoso, encontrou apoio na música de Mahler, que se tornou o leitmotiv de sua ansiosa vida”. Com efeito, o Mahler de Tennstedt é altamente intuitivo, sempre inesperado e avassalador, tirando das profundezas da alma os mais insondáveis sentimentos. Por algum motivo alheio à minha percepção (talvez pela própria personalidade trôpega de Tennstedt), ele nunca foi muito festejado do grande público, tendo sempre um time restrito de admiradores fiéis mas recatados, e normalmente suas performances escapam de uma análise pública mais abrangente. Mas devo dizer, poucas Titans tem a força desta: a impressão é de um vulcão prestes a explodir, e que efetivamente explode nos clímax adequados. Apesar de carismática, é uma interpretação bastante pessoal, em que há o perigo do ouvinte não interagir com a espontaneidade proposta. Neste caso, será uma leitura esquisita. Mas garanto: soltem-se e deixem-se levar pelos delírios do sr. Tennstedt, e estarão diante de uma performance única na história.
Obs.: A edição da Primeira que disponibilizo aqui faz parte da caixa com as 10 Sinfonias, então não estranhem o bônus do primeiro movimento da Segunda, obra que comentarei em outra ocasião.

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7.Sir Georg Solti, Chicago Symphony DECCA 1983

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Considero esta, ao lado da de Bernstein (1974) com a Wiener Philharmoniker (que infelizmente – ou felizmente – só tenho em DVD), a gravação que combina o melhor de todos os mundos: tem a sonoridade dos áureos tempos dos míticos engenheiros da DECCA, tem o equilíbrio preciso entre a espontaneidade e a fidelidade à partitura, tem o encanto do frescor juvenil do Mahler apaixonado, e tem a sobriedade de um registro convicto. Se eu fosse escolher a gravação mais equilibrada, e que satisfaz a maioria dos requisitos mahlerianos com louvor, ficaria com esta, com a possível alternativa de Bernstein. Mas para mim esta tem um trunfo a mais: as pratadas de Chicago são mais eficazes que as de Viena, e a eloquência da juvenília mahleriana fica em plena ebulição. Esta é, portanto, a escolha do Chucruten.
Bom divertimento!

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Arquivo FLAC 239Mb

CHUCRUTEN