IM-PER-DÍ-VEL !!!
Desde a sua inauguração, em 2006, o PQP Bach perdeu 3 pessoas que aqui postavam. Alguns de nós nem se conhecem pessoalmente. Nos unimos através da rede e conversamos como grandes amigos. Eu não sei mais a ordem exata, mas creio que o primeiro foi Ammiratore, o segundo, Avicenna e o terceiro, Ranulfus. Avicenna veio a falecer com mais de 70 anos e após longa doença. Ammiratore perdeu a luta para a covid e a ignorância daquele governo lamentável. Sua morte foi especialmente dolorida para todos nós, muito dolorida mesmo. Mas, sei lá, o passamento de Ranulfus me atingiu mais fortemente. Tínhamos a mesma idade — nascemos com diferença de dois meses –, os mesmos gostos, incrivelmente tínhamos os mesmos CDs e vinis, ele parecia ter lido tudo o que li, só que tinha uma cultura muito maior, obtida sei lá onde. Tinha viajado muito mais — morara na Inglaterra, discutia línguas eslavas — e nos ensinava muito sobre literatura e música. Como eu, ele também não tinha muita grana, não. Quando nos conhecemos em um restaurante paulistano — foi apenas um encontro –, tivemos aquele tipo de rara empatia instantânea. E ontem dei de cara com esta sua coletânea de gravações. Ranulfus era muito ligado à cultura afro, da qual conhecia muito. Imagino que ele gostaria que eu a repusesse aqui. É o que faço agora. (PQP)
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A primeira versão desta postagem se deu em 10/11/2010, durante os 40 dias que o monge Ranulfus viveu em Salvador, e incluía apenas a 2ª e 3ª das realizações dos Afro-Sambas apresentadas agora. Em 13/05/2011 veio a segunda versão, enriquecida com mais três realizações, inclusive a primeira de todas, cantada pelo próprio Vinicius de Moraes em 1966.
E o conjunto todo volta a cena hoje, 19/10/2013, centenário de nascimento de Vinicius de Moraes – o que, os senhores hão de convir, não é pouca razão, não é mesmo?
Por razões afetivas, o monge optou por reproduzir logo adiante o texto produzido em Salvador em 2010, antecedido apenas de umas rápidas observações sobre as três versões acrescentadas posteriormente,
… antes de mais nada, a primeira gravação, de 1966, com o próprio Vinicius de Moraes no vocal solo, e preciosos arranjos instrumentais de Guerra Peixe. Na nossa modesta opinião, Vinicius se sai surpreendentemente bem: ao contrário de Baden na versão de 1990, jamais desafina – mas para “compensar”, infelizmente o back vocal desafina sistematicamente, do começo ao fim. Pena, pois é uma versão encantadora! É bom notar que contém só 8 faixas; foi na versão de 1990 que Baden incluiu mais dois Afro-Sambas – creio que já integrantes da produção original, apenas não gravados na ocasião – mais uma impressionante introdução instrumental.
A quarta versão, lançada pela Deutsche Grammophon (!) em 2003, é a da baiana Virgínia Rodrigues, descoberta por Caetano Veloso nos anos 90. Dona de um belíssimo vozeirão negro de tessitura grave, às vezes acho que Virgínia compartilha um pouco com Mônica Salmaso aquela famosa questão da interpretação meio plana, igual demais (observação que tantas pedradas já me rendeu). Um pouco. Pois no fundo ela sabe muito mais do que é que está falando… Além disso, achei os belíssimos os arranjos instrumentais e de vozes, onde há. Detalhe: este CD atinge 12 faixas pela inclusão do samba Lapinha, que eu nunca havia visto antes relacionado aos Afro-Sambas – mas, enfim, já o seu título não é Afro-Sambas e sim “Mares Profundos”.
Já a quinta, de 2008, parte para uma formação supostamente mais “clássica”: o coro a vozes. O pessoal do Coral UNIFESP (da Universidade Federal de São Paulo) convidou nada menos que sete arranjadores, alguns que chegaram a resultados belíssimos, outros bons porém mais dentro do já convencional em termos de coralização da MPB. O trabalho é perfeito em termos de afinação, precisão… mas, engraçado, não sinto que essa música ganhe mais “classicidade” por isso. Para ser honesto, sinto que os Afro-Sambas são mais grande música que nunca justo nas duas gravações iniciais, com a participação de Baden, apesar de todos os desafinos. Ainda assim, este CD do Coral UNIFESP é um trabalho que ouço com frequência e prazer, e não deixo de recomendar que vocês baixem e ouçam!
E AGORA O TEXTO ORIGINAL DA POSTAGEM:
De repente o monge Ranulfus se encontra na muy barroca & ainda mais africana cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos. Querendo fazer uma postagem que de um modo ou de outro tivesse relação com esse fato, lembrou imediatamente dos Afro Sambas – só que… paradoxo: essas peças que fazem inevitavelmente pensar em Bahia foram compostas por um fluminense (BADEN POWELL de Aquino, 1937-2000) e um carioca (Marcus VINICIUS DE Mello MORAES, 1913-1980).
E daí? Tem a ver, sim, com o universo imaginário e estético afro-brasileiro que tem em Salvador sua capital – e sobretudo é música da grande, não tenho dúvida que da mais importante já composta no Brasil. Não segue os procedimentos construtivos do ‘clássico’ de origem europeia? Não parei para analisar e, sinceramente, pouco se me dá: seja como for, não vejo nem ouço razões para não entendê-los como um ciclo de lieder, tanto quanto os de, digamos, Schubert ou Brahms.
Os lieder em questão foram lançados em disco em 1966, com o tremendo violonista que era Baden, e na voz o poeta Vinicius, que definitivamente não era cantor. Não sei se é verdade ou folclore, mas em seus livros de história da bossa nova o jornalista Ruy Castro sacramenta a história de que em 1962 os dois se haveriam trancado em um apartamento por um três meses com várias caixas de cachaça, e saído de lá com 25 obras primas, mas cada um para uma diferente clínica de desintoxicação…
Embora várias das peças tenham se tornado standards em vozes como a de Elis Regina, o conceito do ciclo ficou esquecido por muito tempo. Três décadas depois (1995) o violonista Paulo Belinatti se juntou à recém-surgida cantora Mônica Salmaso, e fizeram a gravação de que muitos podem dizer: “essa é clássica”: virtuosismo instrumental constante, voz cristalina pairando límpida sobre isso o tempo todo… mas… sim, é uma gravação notável, porém… honestamente, não sinto que tenha alma. A voz límpida de Salmaso me parece atravessar tudo com a indiferença de uma beldade gélida e morta. Tudo igual, igual, igual.
Por outro lado o próprio Baden – que viveu a maior parte da vida na Europa, inquestionado como um mestre maior do seu instrumento – já havia feito uma segunda gravação integral em 1990, com o Quarteto em Cy e mais alguns instrumentistas. Esquisitíssima por outras razões: Baden também não era cantor. Tem momentos em que sustenta uma nota longa a quase meio tom de distância de onde deveria estar… e, no entanto, é artista até o fundo dos ossos e com essa mesma nota desafinada me faz correr lágrimas contínuas – não porque esteja doendo no ouvido, mas de beleza pura mesmo. Estado de graça. Vá-se entender!!
Em resumo: a gravação Belinatti-Salmaso é tecnicamente a melhor, mas sinto a do próprio Baden como musicalmente muito superior – seja lá o que queira dizer esse “musicalmente”. Mas talvez nem todos concordem – e por isso mesmo vão aí as duas versões. Bom proveito!
Baden Powell e Vinicius de Moraes: OS AFRO-SAMBAS – em 5 versões integrais
As listagens de faixas e fichas técnicas se encontram em suas respectivas pastas.
1. Versão original com Vinicius e Baden (1966)
com arranjos corais e instrumentais e regência de Guerra Peixe
2. Versão de Baden Powell (1990)
com Quarteto em Cy, Paulo Guimarães, Ernesto Gonçalves e outros (1990)
3. Versão de Paulo Belinatti e Mônica Salmaso (1995)
4. Versão de Virgínia Rodrigues (2003) (“Mares Profundos”)
5. Versão do Coral UNIFESP (2008)
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Ranulfus