Como prometido, aí está o cd do Alexandre Tharaud interpretando obras do compositor e cineasta argentino Mauricio Kagel (radicado na Alemanha desde que tinha vinte e poucos anos). Não que eu seja um connaisseur do compositor, mas já dei uma boa garimpada na discografia dele, e nada me agrada tanto quanto este álbum. Toda possível jovialidade e e todo bom humor que se esperam de Kagel estão aqui e, creiam, não é só encenação (o que, tristemente, me parece acontecer com alguma frequência), mas resultam em uma música atraente e instigante. O período das obras aqui apresentadas pega bem uma época de transição, saindo da fase serial do início de carreira (que pega os anos 1950 e início da década de 1960) para uma fase abertamente pós-moderna (seja lá o que isso signifique), que se sedimentou no chamado teatro musical, no qual o compositor volta a lançar mão da tonalidade, numa obra de sonoridade mais adocicada, mas colorida com elementos aleatórios, recursos eletrônicos e uma encenação cômica, num resultado que nem de longe parece indicar um retrocesso da vanguarda, bem ao contrário.
Além de postar o cd aqui, coloquei um vídeo do Youtube com seu filme mais famoso, Ludwig van (1969), para quem quiser dar uma olhadela, muito embora eu não me anime muito com ele. A obra apresentada no cd com o mesmo nome, em compensação, é bem mais interessante.
E sobre o cd em si, por preguiça, traduzo (grosseiramente) um texto da BBC Music Magazine:
Que compositor vivo nomearia uma peça segundo o termo médico para unha encravada (Unguis incarnatus est), lembrando-nos maliciosamente que a expressão ‘incarnatus est’ também ocorre na missa em latim; e então, na mesma peça, cita fragmentos distorcidos de Nuages gris de Liszt enquanto pede ao pianista para fazer um calculado e indiscreto barulho com seu metafórico ‘Unguis incarnatus’, explicitamente com o pedal? Somente um: Mauricio Kagel, o bufão na corte solene da vanguarda. Seria inadequado chamar de perspicazes essas divertidas subversões da Grande Tradição Ocidental, elas são demasiadamente sinistras e violentas para isso. Alexandre Tharaud se lança nessa brincadeira com gosto, e ele também traz uma incrível variedade de toques para a própria música. Nem toda a música é escura: há momentos de beleza tranquila e iluminada em Rrrrrrr… (baseado em mecanismos musicais iniciados pela letra R, caso isso interesse). E nos fragmentos semi-lembrados de Beethoven em Ludwig van parece até que o compositor baixou, o que é bem captado pelo excelente conjunto, que inclui o maravilhoso barítono francês François Le Roux. E a gravação é fabulosamente detalhada sem ser clínica. O CD é uma introdução atraente, senão de arrepiar, para um compositor extremamente influente.
Ivan Hewett
Mauricio Kagel (1931-2008)
Mauricio Kagel – Alexandre Tharaud
1. Pieces for Organ (from ‘Rrrrrrr…’): Ragtime – Waltz
2. Pieces for Organ (from ‘Rrrrrrr…’): Rondeña (piano à quatre mains)
3. Pieces for Organ (from ‘Rrrrrrr…’): Rosalie
4. Pieces for Organ (from ‘Rrrrrrr…’): Rossignols enrhumés (piano préparé)
5. Pieces for Organ (from ‘Rrrrrrr…’): Râga
6. Ludwig van, film score: I
7. Ludwig van, film score: II
8. Ludwig van, film score: III
9. Ludwig van, film score: IV
10. Ludwig van, film score: V
11. Ludwig van, film score: VI
12. Ludwig van, film score: VII
13. Ludwig van, film score: VIII
14. Ludwig van, film score: IX
15. Der Eid des Hippokrates (‘Hippocrates’ oath’), for piano, 3 hands
16. Unguis Incarnatus Est, for piano & any bass sustaining instrument
17. Mm51, for piano
itadakimasu