Lá vem ele com mais um Piazzolla: eis o que todos estão dizendo. Aviso que o engano é verdadeiramente ledo! Não venho outra vez naufragar no rio de conhaque e rosas do mestre argentino. O boêmio aposentou as chuteiras (até o próximo episódio). No entanto, que me inspire Heráclito de Éfeso, não se trata aqui nem do mesmo rio nem do mesmo homem! Mas de outro muito chegado ao mestre. O fabuloso e incomparável violinista Fernando Suárez Paz, com um dos mais belos discos que podemos conhecer neste mundo – se é que haveria outro; e havendo, que valha à pena por conter a música que por aqui vicejou. Paz, fidelíssimo comparsa de grandes e maravilhosos estragos nas almas inebriadas pela beleza. Que com o seu violino e junto ao mago do bandoneón bordou com fina agulha e fio de ouro belos arabescos nos músculos cardíacos de tantos pobres coitados como este que vos fala.
O violino! Ah, o violino, este nosso tão amado e rutilante comensal! Que perpassa como um espectro, porém sem jamais ser mencionado, pela obra do bardo de Avon, William Shakespeare – Bill Shaks, para os íntimos. Dando tratos ao que me resta de memória após inúmeras circum-navegações etílicas e musicais, me recordo de que o gentilíssimo bardo se refere muitas vezes a diversos instrumentos, como violas, flautas – que por vezes trata como tubos; trombetas, tambores e alaúdes… Este último, o príncipe das cordas dedilhadas, companheiro de menestréis e romançais, advindo dos longínquos e mágicos desertos das mil e uma noites. O bardo inglês o define como ‘um instrumento belo e frágil, que funciona permanentemente à beira do colapso’. Ora, que melhor definição para o violino? Que tanto quanto o seu primo mourisco também vibra em virtude da tensão de retesadas cordas, na iminência da explosão, feridas pela crina de Pégaso! Se bem recordo está em ‘Muito Barulho para Nada’ uma inspirada observação que reflete sobre o poder da música: ‘Não é estranho que as tripas de ovelha retesadas sobre a madeira afetem a alma humana?’ Amigos, sobre isso, e conhecendo-nos como os melômanos que somos, dispenso quaisquer argumentos sobre a veracidade desta lapidar reflexão shakespeariana.
Fernando Suárez Paz (1941) nasceu em Ramos Mejía, uma província de Buenos Aires. Ingressou bastante jovem na Orquestra Sinfônica Juvenil da Rádio del Estado, mais tarde na Sinfônica Nacional e por quase vinte anos esteve entre os primeiros violinos da Orquestra Filarmônica de Buenos Aires. Tendo começado a tocar com cinco anos, quando seu pai lhe presenteou com um violino – apesar de acalentar o sonho que o rebento seguisse a medicina, como invariavelmente acontece. Não sabia ele que o violino do filho seria o que se costuma chamar de médico de almas – quando não está causando colapsos. Paz logo cedo também ingressou no universo do Tango e tocou com as mais representativas orquestras; sendo o nome mais requisitado como principal violino para as orquestras de diversos e famosos maestros que aportaram na Argentina: Lalo Schifrin, Burt Bacharach, Michael Legrand… Foi em 1978 que Paz foi convocado por Astor Piazzolla para integrar o seu Quinteto Nuevo Tango, no qual atuaria por dez anos e através do qual Paz apareceu para o mundo. Até 1988 gravariam dezoito álbuns, com diversos trabalhos em estúdio, trilhas sonoras, concertos internacionais e festivais como o de Montreux ao lado do vibrafonista Gary Burton. Em 1991 Paz foi o solista do ‘Concierto de Nácar’ de Astor, junto à Orquestra Filarmônica de Buenos Aires. Neste mesmo ano foi nomeado membro da Academia Nacional do Tango e ainda neste mesmo ano gravou este soberbo disco que aqui se apresenta. Esta é apenas uma parte da trajetória desse imenso artista que felizmente está ainda entre nós e a produzir beleza.
A ele Astor dedicou a difícil peça Escualo – tubarão, pois que Astor adorava pescar esta adorável espécie aquática. Segundo Paz, Astor a dedicara com amor, porém, a dificuldade da peça não lhe parecia nada amorosa. É uma peça bastante impressionista, na qual podemos quase que ver o animal em sua sanha voraz, coleios e ataques; algo que funciona até melhor do que aquele filmezinho famoso de décadas atrás. Outra faixa das mais impressionantes é a Fuga y Mistério, uma fuga-tango, ou vice-versa. Complexa, erudita, bela, brilhante, que me recorda o que Beethoven intentava com relação à fuga, que era dotar este gênero com algo mais, um conteúdo poético para além do engenho contrapontístico. ‘Anõs de soledad’, tema de incrível beleza vindo do celebrado disco que Astor gravou com Gerry Mulligan. ‘Invierno Portenho’, um dos mais belos momentos de sua ‘Suíte Porteña’. Todas as demais faixas são belas e arrebatadoras. Um disco raro, imperdível. Como somos felizes em saber que existe mais música entre a terra e o céu do que podemos sonhar!
Cuerdas para Piazzolla
- Decaríssimo
- Invierno Porteño
- 3 minutos com la realidade
- Final – entre Brecht et Brel
- Fuga y Mistério
- Concierto para Quinteto
- Años de Soledad
- Escualo
- Inédito
Wellbach