Volta e meia o resmelengo Ludwig abria uma janela em suas preocupações habituais mais prementes para impressionar-se com alguém. Na maior parte das vezes, esse alguém trajava vestidos e anáguas, pertencia à aristocracia, e estava do outro lado de um abismo amoroso intransponível para um homem de modestas origens. Noutras, Beethoven impressionava-se com algum músico que lhe instigava a produção febrilmente rápida de alguma obra para seu instrumento – como foi com os irmãos Dupont, que inspiraram as faceiras sonatas para violoncelo do Op. 5, e com o boêmio Jan Václav Stich (1746-1803), virtuose da trompa, mais conhecido pela versão italiana de seu nome, Giovanni Punto (sim: “Stich”=”ponto”. Ponto para Stich, pela marotice – e outro para mim, pelo trocadilho).
Punto foi um dos trompistas mais influentes da história, responsável por inovações técnicas que expandiram enormemente as capacidades do instrumento – mais notadamente, o uso da mão direita dentro da campana, que permitiu ao instrumentista, pela primeira vez, produzir notas fora da série harmônica. Era um personagem pitoresco, que trazia em seu currículo uma fuga espetacular da propriedade dum nobre de quem seu pai era servo, e que deu ordens expressas de arrebentar os dentes do fujão, se capturado fosse, para que nunca mais pudesse produzir música com sua boca. Rodou todo o continente, causando sensação a cada cidade em que chegava, precedido por sua imensa fama. Beethoven, procrastinador compulsivo, prometeu-lhe uma sonata com acompanhamento de piano em poucos dias, mas só resolveu iniciá-la, no que lhe era bem típico, no antepenúltimo dia. Finalizando a parte da trompa na véspera da estreia da obra em Viena, com ele próprio ao piano, improvisou a maior parte de sua, bem, parte, de modo que, quando bisaram o último movimento, a plateia ouviu uma peça substancialmente diferente da que escutara antes. A repercussão foi boa a punto (pois eu não perderia o trocadilho) de Stich convencer o quase balzaquiano ermitão a deixar seu bastião vienense e acompanhá-lo em turnê pelo continente. No concerto seguinte, em Pest, a dupla provocou a seguinte reação de um crítico:
“Quem é esse Beethovener? [sic] Não o conhecemos. O senhor Punto, claro, é muito conhecido”
A breve parceria não iria muito longe, pois o pau comeu logo depois da apresentação em Pest. Punto, injuriado, seguiu sua trajetória rocambolesca pela Europa, enquanto “Beethovener” voltou a Viena, colocou enfim a procrastinada sonata toda na pauta e a publicou em 1800 através da firma de Tranquillo Mollo (excelente nome). O frontispício destinava-a “para piano com uma trompa ou um violoncelo”, de maneira a permitir uma maior divulgação da obra, dada a escassez de trompistas capazes de tocá-la. Sabendo de sua história, acredito que os leitores-ouvintes compartilharão comigo a impressão de que o movimento lento foi algo feito realmente às pressas, como que composto nas coxias do teatro, mesmo com a tentativa velhaca de disfarçar seu laconismo com a transição decididamente brusca para o rondó final.
A presente gravação, feita com instrumentos de época, também inclui o belo trio Op. 40 de Brahms, composto em homenagem a sua recém-falecida mãe e notório pelo maravilhoso, sentido Adagio mesto, e por uma sonata do austríaco Nikolaus von Krufft, contemporâneo de Beethoven, que também teve aulas com Albrechtsberger e, provavavelmente, também foi inspirado por Punto a escrever para seu complicado instrumento. O trompista Lowell Greer usa aqui três trompas naturais diferentes, contemporâneas de cada obra, inclusive para tocar Brahms – que prescreveu uma trompa natural para seu trio, a despeito de já haver, em sua época, trompas com válvulas, que diminuíram bastante as dificuldades em tocar passagens cromáticas.
Johannes BRAHMS (1833-1897)
Trio em Mi bemol maior para trompa, violino e piano, Op. 40
1 – Andante
2 – Scherzo
3 – Adagio Mesto
4 – Finale: Allegro con brio
Lowell Greer, trompa natural
Stephanie Chase, violino
Steven Lubin, fortepiano
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Sonata em Fá maior para trompa e piano, Op. 17
Composta em 1800.
Publicada em 1801
Dedicada à baronesa Josefine von Braun
5 – Allegro moderato
6 – Poco Adagio, quasi Andante
7 – Rondo: Allegro moderato
Nikolaus Freiherr VON KRUFFT (1779-1818)
Sonata em Fá maior para trompa e piano
8 – Allegro moderato
9 – Andante espressivo
10 – Rondo: Alla Polacca
Lowell Greer, trompa natural
Steven Lubin, fortepiano
Vassily