O dia internacional da mulher está chegando, então já começamos março com uma obra curta e grossa de Sofia Gubaidúlina (nasc. 1931), uma pedrada no bom sentido, que mostra por que ela é uma das compositoras/es mais fascinantes do fim do século XX e início do XXI, com originalidade associada a reinterpretações de tradições anteriores. Na sua Chacona para piano, composta quando ela tinha pouco mais de 30 anos, Gubaidulina já começa com acordes potentes à maneira dos melhores momentos do pianismo de Rachmaninoff. Mas é só no som exagerado que ela lembra Rach: os encadeamentos melódicos lembram um pouco Shostakovich lá pelo meio da Chacona, mas não o tempo todo. Enfim, uma obra de peso que mostra Gubaidulina pau a pau com os homens do disco, aliás melhor do que alguns deles.
O álbum, todo dedicado a nomes da antiga União Soviética, tem uma obra de outra mulher: Galina Ustvolskaya (1919-2006). Ainda não entendi bem qual é a de Ustvolskaya: tanto aqui como no seu concerto para piano na gravação de Alexei Lubimov, me senti como alguém que não entende a piada. E dos quatro compositores homens – Denisov, Schnittke, Pärt e Silvestrov – meu preferido é este último. Como já disse aqui, Silvestrov alcançou uma fama maior após os 80 anos de idade. Em 2017, quando o álbum foi gravado, ele ainda era pouco conhecido, ao menos em nossas terras tropicais.
A russa Olga Andryushchenko estudou no Conservatório de Moscou, em cuja grande sala, aliás, ela gravou este disco. Estudou com o já citado Lubimov, grande pianista que entende muito tanto dos instrumentos da época de Mozart quanto dos compositores contemporâneos do leste europeu, tendo estreado várias das obras dessa galera.
Sofia Gubaidulina:
1. Chaconne (1962)
Edison Denisov:
2-4. Three Preludes (1994)
Valentin Silvestrov:
5-6. Piano Sonata No. 1 (1972)
I. Moderato, con molta attenzione, II. Andantino
Galina Ustvolskaya:
7. Piano Sonata No. 6 (1947)
Arvo Pärt:
8 Für Alina (1976)
9-12. Piano Partita, Op. 2 (1958)
I. Toccatina, II. Fughetta, III. Larghetto, IV. Ostinato
Alfred Schnittke:
13-16. Piano Sonata No. 3 (1992)
I. Lento, II. Allegro, III. Lento, IV. Allegro
Olga Andryushchenko, piano
Recorded at the Grand Hall of the Moscow Conservatory in July, 2017
Em um CD de 2005 já postado por PQP, temos uma gravação de referência da Sonata de Shosta para violoncelo e piano, por Martha Argerich e Micha Maisky. O que essa dupla faz na sonata é uma barbaridade! O temperamento fogoso de Martha cai muito bem na obra escrita pelo jovem Shosta em 1934, pra não falar da fluência de Micha – educado em Leningrado e depois aluno de Rostropovich em Moscou – na linguagem do compositor.
Mas hoje temos um outro álbum mais recente, com dois músicos franceses que trazem várias sutilezas, detalhes que passaram quase despercebidos naquela outra interpretação. Por exemplo o canto do violoncelo e o acompanhamento suave do piano no movimento lento (largo) belíssimo que Vitaud e Laferrière conduzem em um andamento mais calmo e sonhador que a outra dupla citada. No 2º e no 4º movimento, temos aquele piano staccato, meio moto perpetuo meio marcha, tão característico de Shosta. Poucos anos depois, ele cairia em desgraça junto ao regime soviético por causa de obras como a ópera Lady Macbeth e o balé O Parafuso (1931), este último encenado apenas um dia e logo banido por seu enredo subversivo: um trabalhador que queria sabotar o maquinário da fábrica com um parafuso. O balé O riacho límpido (1935) – no qual camponeses casados flertavam com bailarinas – também foi proibido e o autor do libretto foi preso e fuzilado. O jovem Shostakovich deu sorte e escapou por um fio.
O repertório escolhido pela dupla francesa tem também a sonata para violoncelo e piano de Rachmaninoff, composta quando este também tinha menos de 30 anos. Cheia de melancolia romântica e melodias notáveis, essa sonata – assim como os Trios Elegíacos de Rach – me agrada mais do que os exageros orquestrais dos concertos para piano. Digamos assim: um piano e um violoncelo açucarados são glicose em uma medida razoável, enquanto uma orquestra inteira assim já é demais para minha saúde. Podem me xingar nos comentários.
E entre as duas grandes sonatas temos o conjunto de variações de Denisov sobre um singelo tema de Schubert, tema do Impromptu D.935 nº 2, que só neste ano de 2022 já apareceu aqui no PQPBach nas gravações de Chukovskaya, Lupu e Sokolov. Usem a lupa no canto superior direito para comparar… Também à direita e mais abaixo, o nome de Edison Denisov faz sua estreia aqui. Denisov era mal visto pelo regime soviético assim como seus colegas de geração Schnittke e Gubaidulina. Ou seja: estava em boa companhia, a uma distância segura dos lambe-botas de sempre. Todo ditador tem seus puxa-sacos: me desculpem vocês a digressão, é porque hoje vi o retorno daquele senhor dono de um canal de TV brasileiro, um que sempre sorriu e bateu palma pra ditador, e me lembrei que meus avós – um tiquinho mais velhos que a geração desse puxa-saco brasileiro, de Denisov e de Gubaidulina – sempre desprezaram eSSe senhor. “Muitos se deixaram engambelar por oportunismo” (L.F. Verissimo sobre 64), mas me perdoem novamente por esses longos parênteses, talvez eles tenham a função de explicar que nenhum desses compositores aqui representados deve ser confundido com o regime russo, seja o antigo ou o novo. Este disco não tem nada a ver com essas minhas últimas frases amargas, o Shosta/Rach/Denisov da dupla francesa é puro lirismo e sensibilidade: como um bom vinho rosé, é sutil e complexo sem ser pesado.
Dmitri Shostakovich (1906-1975)
Cello Sonata in d minor, op.40
1 I. Allegro non troppo 11’51
2 II. Allegro 3’13
3 III. Largo 8’04
4 IV. Allegro 4’05 Edison Denisov (1929-1996)
5 Variations on a theme by Schubert 13’36 Sergei Rachmaninoff (1873-1943)
Cello Sonata in g minor, op.19
6 I. Lento. Allegro moderato 13’53
7 II. Allegro scherzando 6’27
8 III. Andante 5’41
9 IV. Allegro mosso 10’35
Victor Julien-Laferrière, cello
Jonas Vitaud, piano
PS: Em um contexto de joga-pedra-na-geni-russa, Alain Lompech escreveu essas palavras abaixo na revista Classica de Abril/22, aqui mal traduzidas:
Não nos esqueçamos do seguinte: o compositor Dmitri Shostakovich (1919-1975) foi muito mal visto na década de 1970. Ele foi tratado como o compositor oficial do regime soviético. Quando foi lançado “Testemunho: Memórias de Shostakovich, observações recolhidas por Simon Volkov” (1980), alguns comentaristas afirmaram que se tratava de uma falsificação.
Do lado comunista, furiosos com um conteúdo que se sabia correto, assim como no campo dos jornalistas e críticos de música ocidentais que não aceitavam descobrir uma realidade muito diferente das conclusões que eles tiravam absurdamente de uma música que simplesmente não obedecia aos cânones obrigatórios da Segunda Escola de Viena. Nessas páginas, descobrimos um homem petrificado pelo arbítrio e que pensava em apenas uma coisa: compor.