¡Que viva la Reina! – Martha Argerich, 84 anos [Rendez-vous with Martha Argerich, vol. 3]

Mais um outono para a Rainha, e desta feita ela nos presenteia com gravações novas – tão novas, claro, quanto podem ser as de alguém tão avessa aos estúdios e afeita a dividir a ribalta com jovens colegas e os parceiros de sempre. Estas que ora lhes apresento foram feitas algumas semanas depois do seu octagésimo aniversário, em junho de 2021, no festival que Martha vem consolidando em Hamburgo e no qual desfruta do privilégio de selecionar a pinça o tradicional petit comité que tem garantido muito de sua longeva alegria em pisar palcos.

No que tange a Sua Majestade, o melhor que ela nos oferece nesses volumes são a leitura da sonata Op. 30 no. 3 de Beethoven, com Renaud Capuçon – seu mais frequente e afiado parceiro ao arco, nos últimos anos -, um ebuliente Segundo Concerto de Ludwig, e o belíssimo Trio de Mendelssohn, ao lado de Mischa Maisky e da über-diva Anne-Sophie Mutter. A família Margulis – Jura, Alissa e Natalia – traz um azeitadíssimo Trio “Fantasma” e um mui tocante “Canto dos Pássaros”, joia folclórica catalã posta em pauta por Pau Casals. O variado cardápio também inclui as “Canções e Danças da Morte” de Mussorgsky, com o ótimo baixo Michael Volle, e uma Sonata para dois pianos e percussão de Bartók para a qual a Rainha, que tanto a tocou com nosso Nelson Freire, convidou seu outro Nelson favorito, o compatriota Goerner. O melhor retrogosto, entretanto, não foi o que veio de dedos hermanos, e sim das diminutas mãos de Maria João em Schubert – que maravilhosos, os dois improvisos! – e da última apresentação pública de Nicholas Angelich, um brahmsiano que sempre honrou o grande hamburguense e fez da Segunda Sonata para viola e piano seu canto de cisne.

ooOoo

Uma breve nota: a partir de hoje, mudarei a maneira de compartilhar música com os leitores-ouvintes. Cansei de ver a pedra rolar tantas vezes morro abaixo. Não farei mais comentários. Que venham os tomates.

Disco 1

Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)

Sete Variações para violoncelo e piano sobre “Bei Männern, welche Liebe fühlen”, da ópera “Die Zauberflöte” de Wolfgang Amadeus Mozart, WoO 46
1 – Thema. Andante
2 – Variation I
3 – Variation II
4 – Variation III
5 – Variation IV
6 – Variation V: Si prenda il tempo un poco più vivace
7 – Variation VI. Adagio
8 – Variation VII. Allegro ma non troppo

Mischa Maisky, violoncelo
Martha Argerich,
piano

Das Três Sonatas para violino e piano, Op. 30:
Sonata no. 3 em Sol maior
9 – Allegro assai
10 – Tempo di Minuetto, ma molto moderato e grazioso
11 – Allegro vivace

Renaud Capuçon,
violino
Martha Argerich,
piano

Dos Dois Trios para piano, violino e violoncelo, Op. 70:
No. 1 em Ré maior, “Fantasma”
12 – Allegro vivace e con brio
13 – Largo assai ed espressivo
14 – Presto

Alissa Margulis, violino
Natalia Margulis, violoncelo
Jura Margulis, piano


Disco 2

Ludwig van BEETHOVEN

Concerto para piano e orquestra no. 2 em Si bemol maior, Op. 19
1 – Allegro con brio
2 – Adagio
3 – Rondo. Molto allegro

Martha Argerich, piano
Symphoniker Hamburg
Sylvain Cambreling
, regência

Jakob Ludwig Felix MENDELSSOHN-Bartholdy (1809-1847)

Trio para piano, violino e violoncelo no. 1 em Ré menor, Op. 49
4 – Molto allegro agitato
5 – Andante con moto tranquillo
6 – Scherzo: Leggiero e vivace
7 – Finale: Allegro assai appassionato

Anne-Sophie Mutter, violino
Mischa Maisky
, violoncelo
Martha Argerich
, piano

Johannes BRAHMS (1833-1897)

Das Duas Sonatas para clarinete e piano, Op. 120 (transcritas para viola e piano pelo compositor):
Sonata no. 2 em Mi bemol maior
8 – Allegro amabile
9 – Allegro appassionato
10 – Andante con moto – Allegro – Più tranquillo

Gérard Caussé, viola
Nicholas Angelich,
piano


Disco 3

Franz Peter SCHUBERT (1797-1828)

Dos Improvisos para piano, D. 935 (Op. Posth. 142):
No. 2 em Lá bemol maior
1 – Allegretto
No. 3 em Si bemol maior, “Rosamunde”
2 – Andante

Sonata para piano em Lá maior, D. 664
3 – Allegro moderato
4 – Andante
5 – Allegro

Maria João Pires, piano

Wolfgang Amadeus MOZART (1756-1791)

Sonata para piano a quatro mãos em Dó maior, K. 521
6 – Allegro
7 – Andante
8 – Allegretto

Martha Argerich e Maria João Pires, piano


Disco 4

Pau CASALS i Defilló (1876-1973)

1 – El Cant dels Ocells, para violino, violoncelo e piano

Alissa Margulis, violino
Natalia Margulis,
violoncelo
Jura Margulis,
piano

Manuel de FALLA y Matheu (1876-1946)

Suite Popular Espanhola, para violino e piano
2 – El Paño Moruno
3 – Nana
4 – Canción
5 – Polo
6 – Asturiana
7 – Jota

Tedi Papavrami, violino
Maki Okada, piano

César-Auguste-Jean-Guillaume-Hubert FRANCK (1822-1890)

Quinteto em Fá menor para dois violinos, viola, violoncelo e piano
8 – Molto moderato quasi lento – Allegro
9 – Lento, con molto sentimento
10 – Allegro non troppo ma con fuoco

Akiko Suwanai e Tedi Papavrami, violinos
Lyda Chen, viola
Alexander Kniazev, violoncelo
Evgeni Bozhanov, piano


Disco 5

Astor Pantaleón PIAZZOLLA (1921-1992)

1 – Le Grand Tango

Gidon Kremer, violino
Georgijs Osokins, piano

Leonard BERNSTEIN (1918-1990)

Danças Sinfônicas de West Side Story, para dois pianos
2 – Prologue
3 – Somewhere
4 – Scherzo
5 – Mambo
6 – Cha-cha
7 – Meeting Scen
8 – Cool Fugue
9 – Rumble Track
10 – Finale

Anton Gerzenberg e Daniel Gerzenberg, pianos

Astor PIAZZOLLA

[Las] Estaciones Porteñas,para violino, violoncelo e piano
11 – Invierno Porteño
12 – Verano Porteño
13 – Otoño Porteño
14 – Primavera Porteña

Tedi Papavrami, violino
Eugene Lifschitz, violoncelo
Alexander Gurning, piano


Disco 6

Modest Petrovich MUSSORGSKY (1839-1881)

“Canções e Danças da Morte”
1 – Kolybel’naya [“Acalanto”]
2 – Serenada [Serenata]
3 – Trepak
4 – Polkovodets [“O Marechal de Campo”]

Michael Volle, baixo-barítono
Daniel Gerzenberg, piano

Béla Viktor János BARTÓK (1881-1945)

Sonata para dois pianos e percussão, Sz 110
5 – Assai lento
6 – Lento, ma non troppo
7 – Allegro non troppo

Martha Argerich e Nelson Goerner, pianos
Alexej Gerassimez e Lukas Böhm, percussão

Arno Harutyuni BABAJANYAN (1921-1983)

Trio em Fá sustenido menor para violino, violoncelo e piano
8 – Largo – Allegro espressivo – Maestoso
9 – Andante
10 – Allegro vivace

Michael Guttman, violino
Jing Zhao, violoncelo
Elena Lisitsian, piano

Disco 7

Dmitri Dmitriyevich SHOSTAKOVICH (1906-1975)

Sonata em Ré menor para violoncelo e piano, Op. 40
1 – Allegro non troppo
2 – Allegro
3 – Largo
4 – Allegro

Mischa Maisky, violoncelo
Martha Argerich, piano

Sergei Sergeiyevich PROKOFIEV (1891-1953)

Sonata em Ré maior para flauta e piano, Op. 94
5 – Moderato
6 – Presto – poco meno mosso
7 – Andante
8 – Allegro con brio – poco meno mosso

Susanne Barner, flauta
Martha Argerich, piano

Dmitri SHOSTAKOVICH

9 – Concertino em Lá menor para dois pianos, Op. 94

Martha Argerich e Lilya Zilberstein, pianos

Mieczysław WEINBERG (1919-1996)

Doze Miniaturas para flauta e piano, Op. 29
10 – Improvisação
11 – Arietta
12 – Burlesque
13 – Capriccio
14 – Noturno
15 – Valsa
16 – Ode
17 – Duo
18 – Étude
19  – Intermezzo
20 – Pastorale

Susanne Barner, flauta
Akane Sakai, piano

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Esquecer é repetir: 110 anos do Genocídio Armênio [Sergey e Lusine Khachatryan – My Armenia]

Ainda que esta gravação, lançada no centenário do Genocídio Armênio, chegue-lhes com dez anos de atraso, não se pode dela reclamar: a hoje diminuta Armênia é terra de rica música, o repertório faz abrangente justiça ao último século e tanto de sua longa tradição, e os irmãos Khachatryan tocam com brio, brilho e evidente amor a música do pago. Tampouco se a pode chamar inoportuna, pois, quando esta postagem for ao ar, os armênios – tanto em sua terra ancestral quando em sua imensa diáspora – estarão a honrar as vítimas do monstruoso aparato de extermínio brandido pelos turcos contra seus ancestrais.

Não há família armênia que não tenha sido marcada a sangue e trauma por tão imenso crime. Os Khachatryan não foram exceção: o bisavô dos músicos, Daniel, era uma criança quando viu seus pais e irmãos serem despedaçados. Tampouco foram os compositores das obras do álbum. Do mais célebre entre eles, Khachaturian (cujo sobrenome armênio é exatamente Khachatryan, apenas transliterado de forma diferente através do russo), ouve-se a criação mais famosa, a Dança de Sabres, no arranjo ebuliente de Jascha Heifetz, e também uma grata surpresa, o Poema-Canção, repleto das angulosidades de que a música da Armênia é tão pródiga quando os semblantes estatuescos de sua gente. Já o maior entre eles, Soghomon Soghomonyan, estava entre as centenas de intelectuais armênios presos em Constantinopla em 24 de abril de 1915 e deportados, através da primeira entre inúmeras “marchas da morte” pelo inclemente deserto sírio, no que se considera o marco zero do Genocídio e levou à escolha da data para comemorar suas vítimas. Soghomonyan, mais conhecido por seu nome eclesiástico, Komitas, já teve sua história contada neste blog pelo colega Wellbach, que nunca aparece por aqui sem nos deixar algo de memorável. Sua obra como compositor e legado como pioneiro da etnomusicologia merecerão nossa revisita. Até ela, espero que a beleza acachapante de Krunk e das Sete Danças Folclóricas – dignas de Bartók, ninguém menos! – marque os leitores-ouvintes com seu toque de gênio. Acima de tudo, desejo que dediquem hoje um instante de meditação e solidariedade aos armênios e seus ancestrais, e – se não for lhes pedir muito – evocar-lhes também a denúncia e indignação colérica contra todos os genocídios, tanto os do passado quanto aqueles em curso.


KOMITAS Vardapet (1869-1935)

1 – Krunk (“A Garça”), para violino e piano (arranjo de Sergei Aslamazyan)
2 – Tsirani Tsar (“O Damasqueiro”), para violino e piano (arranjo de Avet Gabrielyan)

Sete Danças Folclóricas, para piano
3 – Manushaki
4 – Yerangi
5 – Unabi
6 – Marali
7 – Shushiki
8 – Het u Aradj
9 – Shoror

10 – Garun-a (“É Primavera”), para piano (arranjo de Robert Andreasyan)

Eduard BAGHDASARYAN (1922 -1987)

11 – Rapsódia, para violino e piano
12 – Noturno, para violino e piano

Edvard Mik’aeli MIRZOYAN (1921-2012)

13 – Introdução e Moto Perpétuo, para violino e piano

Aram KHACHATURIAN (1903-1978)

14 – Poema-canção, para violino e piano

Duas Danças do balé Gayaneh, para violino e piano
15 – Usundara (arranjo de Mikhail Fichtenholz)
16 – Suserov par (“Dança de sabres”) (arranjo de Jascha Heifetz)

Arno Harutyuni BABADJANIAN (1921-1983)

Seis Quadros, para piano solo
17 – Improvisação
18 – Dança folclórica
19 – Toccatina
20 – Intermezzo
21 – Coral
22 – Dança de Sassoun

Sergey Khachatryan, violino
Lusine Khachatryan, piano

Gravado no Stadtcasino da Basileia, Suíça, de 4 a 7 de agosto de 2014

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Esta jovem, Arshaluys Mardiganyan, tinha 14 anos quando testemunhou o massacre de sua família, foi forçada a atravessar o deserto da Síria e repetidamente torturada e violentada. Foi vendida num mercado de escravizados, fugiu de um harém e conseguiu, com apoio de refugiados armênios, chegar a Nova York. Sob o nome Aurora, publicou em 1918 suas memórias, intituladas “Armênia Devastada”, que chegaram ao cinemas, com grande repercussão e tendo a própria autora como protagonista, no ano seguinte. A incrível história de Aurora e seu filme trouxeram imensa visibilidade ao Genocídio Armênio e ajudaram a arrecadar o equivalente a 2 bilhões de dólares de hoje para o apoio às suas vítimas.

Depoimento de Aurora Mardiganyan sobre o Genocídio Armênio. Somente em idade avançada ela revelou que a violência mostrada no filme – incluindo a crucifixão de meninas – foi muito abrandada. “Os turcos não faziam suas cruzes assim. Os turcos faziam pequenas cruzes pontiagudas. Tiravam as roupas das meninas. Faziam com que elas se abaixassem e, depois de estuprá-las, as faziam sentar na madeira pontiaguda, que lhes atravessava as vaginas. Era assim que eles matavam, os turcos. Os americanos fizeram isso de uma forma mais civilizada. Eles não podem mostrar coisas tão terríveis”


Situação do reconhecimento do Genocídio Armênio mundo afora. Em verde, os países que o reconhecem oficialmente, a maioria com votações em seus parlamentos e aprovação de seus chefes de Estado (o Uruguai, em 1965, foi o primeiro a fazê-lo). Em laranja, os três países que negam explicitamente o Genocídio: a Turquia, estado sucessor do Império Otomano, onde há monumentos que insinuam que foram os armênios que cometeram genocídio sobre os turcos; o Azerbaijão, aliado incondicional da Turquia; e o Paquistão, que sequer reconhece a Armênia como nação soberana.
Situação do reconhecimento do Genocídio Armênio mundo afora. Em verde, os países que o reconhecem oficialmente, a maioria com chancelas de seus parlamentos e chefes de Estado (nosso querido hermanito Uruguai, de influente comunidade armênia, foi o primeiro a fazê-lo, em 1965). Em laranja, os três países que negam explicitamente o Genocídio: a Turquia, estado sucessor do Império Otomano, onde há monumentos que insinuam que foram os armênios que cometeram genocídio contra os turcos; o Azerbaijão, aliado incondicional da Turquia e, como ela, arqui-inimiga da Armênia; e o Paquistão, que sequer reconhece a Armênia como nação soberana.

A Iniciativa Humanitária Aurora, ONG sem fins lucrativos, recebeu o nome da heroína-emblema das vítimas do Genocídio Armênio e, suportada em grande parte pela diáspora armênia, apoia o enfrentamento de desafios humanitários mundo afora, incluindo genocídios em curso. Estimulo fortemente aqueles que de alguma forma se sensibilizaram pela causa que conheçam mais sobre a iniciativa e, se lhes for possível, lhe façam uma contribuição:

O Instituto Nacional Armênio dedica-se ao estudo, à pesquisa e a reasserção da ocorrência do Genocídio Armênio contra todas as forças que o pretendem negar. Seu sítio dispõe de abundantes fontes de estudo, em vários idiomas, disponíveis àqueles que desejarem aprofundar-se sobre o tema.

O Escritório de Prevenção de Genocídio e da Responsabilidade de Proteger é o organismo das Nações Unidas dedicado à causa autoevidente. Sabemos muito bem a quem interessa desmoralizar organismos internacionais enquanto viola todas as convenções, sejam as diplomáticas, sejam as de mínima decência. Somente o estudo crítico sobre a causa nos protege do triste fim de sermos omissos ou, pior ainda, de servirmos de massa de manipulação. Não sejam.
Placa na entrada do Museu Estatal Auschwitz-Birkenau, em Oświęcim, Polônia. A citação original de George Santayana (1863-1952) difere das duas versões mostradas na imagem: “Aqueles que não conseguem se lembrar do passado estão condenados a repeti-lo”. Para tatuar nas retinas. E já.

Vassily