Entre todos patronos de Beethoven, nenhum lhe foi mais querido que o arquiduque Rudolph, filho caçula do imperador. Apesar dumas poucas rusgas, a relação entre o compositor e a única pessoa a quem ensinou a sério composição foi de admiração mútua e, a despeito de todo desespero financeiro do primeiro e da fortuna do segundo, muito genuína. A correspondência entre ambos foi abundante e calorosa, e Beethoven retribuiu a generosa devoção do arquiduque com um rol de composições que, provavelmente, o tornam o dedicatário mais privilegiado da história. Contando somente as obras mais importantes, Rudolph recebeu as dedicatórias dos concertos nos. 4 e 5 para piano, da Grande Fuga para quarteto de cordas, das sonatas para piano “Lebewohl”, “Hammerklavier” e Op. 111, da Missa Solemnis e, por último mas não menos importante, o maravilhoso trio que hoje conhecemos como “Arquiduque”.
Não lhes consigo falar criticamente dessa obra que tanto amo. Desde seu primeiro gesto – o majestoso tema de abertura – ela sempre me captura para uma audição embevecida. Reconheço que o movimento que mais aprecio, e sem dúvidas o cerne da obra, é o Andante cantabile, com suas belíssimas variações. Tudo, no entanto, soa-me genial – o scherzo logo após o nobre movimento inicial, por exemplo, e a engenhosa construção do finale e suas ousadias tonais em preparação para uma mui efetiva coda. Esse trio é a joia da coroa do período intermediário da carreira de Beethoven, depois da qual ele só poderia mesmo voltar-se para uma arte muito diferente, mais radical, e visionária.
Não sou muito afeito a pintar as dores físicas de Beethoven, por acreditar que sua admirável história de superação de adversidades muitas vezes é amplificada a ponto de insinuar que devêssemos escutar suas obras com piedade, e não como frutos de um dos maiores gênios criadores que já existiram. Ainda assim, algumas histórias realmente me comovem, e uma delas é a da estreia do Op. 97. Ela ocorreu em 11 de abril de 1814, no hotel no hotel vienense “Zum römischen Kaiser”, na presença da nobreza e da intelligentsia locais. Beethoven fez questão de estrear sua obra ao piano, fazendo-se acompanhar dos amigos com o violinista Ignaz Schuppanzigh e o violoncelista Josef Linke. Sua surdez já era óbvia para todas as pessoas próximas, mas sua legendária teimosia fê-lo crer que quase nada escutar não lhe seria impedimento para tocar em público o instrumento de que fora o maior virtuose da Europa. O resultado, atesta-o Ludwig Spohr, violinista e compositor, presente na estreia:
Não foi uma boa execução. Em primeiro lugar, o piano estava totalmente desafinado, o que pouco preocupou Beethoven, porque ele não o conseguia ouvir. Em segundo lugar, por causa de sua surdez, quase nada restou do virtuosismo do artista que antes fora tão admirado. Nas passagens fortes, o pobre surdo batia nas teclas até as cordas tilintarem, e no piano ele tocava tão baixinho que grupos inteiros de notas eram omitidos, de modo que a música era ininteligível. Fiquei profundamente triste com um destino tão cruel. É uma grande desgraça ser surdo, mas como pode um músico suportar isso sem ceder ao desespero? De agora em diante, a melancolia contínua de Beethoven não era mais um enigma para mim.
E não seria mesmo, para mais ninguém. Alguns meses depois, num recital durante o Congresso de Viena, Beethoven tocaria pela última vez em público. Ao despedir-se dos palcos, enquanto via seus estipêndios minguarem, pois muitos de seus patronos não mais priorizavam sua música numa Europa devastada pelas guerras napoleônicas, passou a depender completamente da composição – e das complicadas negociações com editores – para seu sempre incerto sustento. Pior ainda, mergulhava num mundo de profundo silêncio, entrecortado tão só por zumbidos, onde só havia o som que conseguisse imaginar.
Para trazer-lhes o “Arquiduque”, escolhi a primorosa gravação do Florestan Trio, com o som sempre excelente da Hyperion. Como fiquei com pena de mutilar a série dos trios de Beethoven que eles registraram antes de infelizmente encerrarem suas atividades, resolvi trazê-la em toda sua gloriosa integridade, para que possam uma vez testemunhar a extraordinária evolução artística do jovem compositor do Op. 1 até o consumado mestre do Op. 97.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Trio em Si bemol maior para piano, violino e violoncelo, Op. 97, “Arquiduque”
Composto entre 1810-11, revisado em 1814
Publicado em 1816
Dedicado ao arquiduque Rudolph da Áustria
1 – Allegro moderato
2 – Scherzo: Allegro
3 – Andante cantabile ma però con moto – Poco più adagio – attacca:
4 – Allegro moderato – Presto
Allegretto para piano, violino e violoncelo em Mi bemol maior, WoO Unv. 9 (Hess 48) (1790?)
5 – Allegretto
Variações em Sol maior sobre a ária “Ich bin der Schneider Kakadu” da ópera “Die Schwestern von Prag” de Wenzel Müller, para piano, violino e violoncelo, Op. 121a
Compostas em 1803, revisadas em 1816
Publicadas em 1824
6 – Introduzione
7 – Thema
8 – Variation I
9 – Variation II
10 – Variation III
11 – Variation IV
12 – Variation V
13 – Variation VI
14 – Variation VII
15 – Variation VIII
16 – Variation IX
17 – Variation 10
18 – Allegretto
Dois trios para piano, violino e violoncelo, Op. 70
Compostos em 1808
Publicados em 1809
Dedicados à condessa Anna Maria von Erdődy
No. 1 em Ré maior, “Fantasma”
1 – Allegro vivace e con brio
2 – Largo assai ed espressivo
3 – Presto
No. 2 em Mi bemol maior
4 – Poco sostenuto – Allegro, ma non troppo
5 – Allegretto
6 – Allegretto ma non troppo
7 – Finale. Allegro
Allegretto para piano, violino e violoncelo em Si bemol maior, WoO 39 (1812)
08 – Allegretto
Dos Três Trios para piano, violino e violoncelo, Op. 1:
Publicados e estreados em 1795
Dedicados ao príncipe Karl von Lichnowsky
Trio no. 1 em Mi bemol maior
1 – Allegro
2 – Adagio cantabile
3 – Scherzo. Allegro assai
4 – Finale. Presto
Trio no. 2 em Sol maior
5 – Adagio – Allegro vivace
6 – Largo con espressione
7 – Scherzo. Allegro
8 – Finale. Presto
Trio para piano, violino e violoncelo em Mi bemol maior, WoO 38 (?1791)
9 – Allegro moderato
10 – Scherzo: Allegro ma non troppo
11 – Rondo: Allegretto
Dos Três Trios para piano, violino e violoncelo, Op. 1:
Trio no. 3 em Dó menor
1 – Allegro con brio
2 – Andante cantabile con variazioni
3 – Minuetto. Quasi allegro
4 – Finale. Prestissimo
Variações em Mi bemol maior sobre um tema original, para piano, violino e violoncelo, Op. 44
Compostas em 1792
Publicadas em 1804
5 – Thema – Variationen I-XIV
Trio em Si bemol maior para violino ou clarinete, piano e violoncelo, Op. 11, “Gassenhauer”
Composto em 1797
Publicado em 1798
Dedicado a Maria Wilhelmine von Thun
6 – Allegro con brio
7 – Adagio
8 – Tema con variazioni (“Pria ch’io l’impegno”: Allegretto)
The Florestan Trio:
Susan Tomes, piano
Anthony Marwood, violino
Richard Lester, violoncelo
Vassily