Olivier Messiaen foi um continuador dos caminhos trilhados por Claude Debussy, que morreu em 1918 e, como em tantos outros casos, tornou-se muito mais conhecido e respeitado logo após sua morte, quando Messiaen era um estudante em formação. Debussy escrevia que as mais belas descobertas musicais eram as impressões que nos trazem “o barulho do mar, a curva de um horizonte, o vento nas folhas, o grito de um pássaro” (Monsieur Croche et autres écrits, 1901-1914). Católico e amante dos pássaros, Messiaen dedicou boa parte de sua música a Deus e suas criações divinas. Aqui apresentamos uma de suas mais importantes obras: Des Canyons aux étoiles… (Dos cânions às estrelas), música em doze movimentos inspirada nos cânions em Utah, EUA. Há representações musicais das imensas rochas em tons alaranjados, do céu estrelado e de vários pássaros. Realmente um mundo absurdamente criativo esse que Messiaen imaginou.
Coloco esta obra como um complemento instrumental da Paixão Segundo Mateus, pois ressalta que não apenas as pessoas podem ser divinas, mas a própria natureza rochosa, o deserto, os pássaros, as estrelas numa noite escura sem poluição luminosa… Essa religiosidade e reverência à criação são ingredientes tão tocantes e profundos que abalam as convicções de um ateu melômano… bem, pelo menos durante a audição dessa música tão sincera. Talvez eu arrisque uma pergunta polêmica: A música religiosa pode ser sentida e apreciada em sua totalidade por um ouvinte ateu? Philippe Herreweghe disse que fez duas gravações da Paixão Segundo São Mateus: a primeira, quando era um “believer” (já postada aqui) e a segunda (aqui), quando virou ateu. Ele disse que “é possível que tão contrastantes fases em minha vida tenham atingido essas interpretações”. Alguém arrisca dizer qual a melhor? Já um amigo ateu me confessou ouvir Bach da mesma maneira que Bruckner ouvia Wagner, sem entender o texto. No caso de “Des Canyons aux étoiles…”, não há menção explícita do seu catolicismo, por isso, ouvintes de outras crenças vão se sentir em terreno seguro e os ateus podem trocar Deus por Natureza. Os cânions, se vocês não se lembram, são ribanceiras ou falésias esculpidas por rios na escala de tempo geológica, ou seja, de milhões de anos. Essas grandes estruturas e o céu estrelado nos remetem a escalas de tempo e espaço muito diferentes das nossas micro-preocupações usuais…
Bryce Canyon com neve (Fonte: Wikimedia commons)
Mas ao contrário do que possa parecer essa introdução meio nonsense, a música que ouviremos é moderníssima, muitas vezes brutal, com sonoridades estranhas, sons produzidos por ventos. Pode ser confundidao com um concerto para piano gigantesco, mas para Messiaen, a forma “concerto para piano” em três movimentos e com demonstrações de técnica e bravura era coisa do passado e era necessário inovar: aqui, como em obras anteriores (Turangalîla-Symphonie, Réveil des Oiseaux, Oiseaux exotiques), o piano faz intervenções solistas, sobretudo no campo agudo e muitas vezes representando o canto dos pássaros.
A orquestração também é inovadora, com apenas 13 cordas (6 violinos, 3 violas, 3 cellos, 1 contrabaixo) e muitos sopros e percussões. Nesse sentido, de entender que as formas de orquestração, de ritmo e de estrutura da música ocidental precisavam progredir, Messiaen era bastante moderno, e por isso era respeitado pelos vanguardistas das gerações seguintes como Boulez, Stockhausen, Murail, Almeida Prado… Todos esses, em algum momento, foram seus alunos. Mas ao contrário de atonais mais radicais como Boulez ou Schoenberg, Messiaen não proibia os acordes mais comuns em sua música: acordes maiores ou menores aparecem aqui ou ali, com uma função decorativa. Ao contrário da ideia de progressão harmônica em que as dissonâncias se resolvem em consonâncias, para Messiaen tanto os acordes dissonantes como os consonantes interessam pelos timbres, cores, atmosferas que eles trazem, ou seja: nenhum tipo de som ou intervalo é proibido, mas é evitado o procedimento – típico na tradição europeia e levado à perfeição por exemplo por Beethoven – de se usar os intervalos para alternar tensão (busca por resolução) e relaxamento (resolução tonal).
Já ouviram um coral de pássaros ou de sapos? Essa música não se estrutura em acordes consonantes ou dissonantes. Messiaen foi ao mesmo tempo um inovador moderníssimo e o dono um ouvido muito atento a sons do vento e outros tão antigos quanto os canyons de Utah. Dizia ele sobre os pássaros: “Eles cantaram muito antes de nós. E inventaram a improvisação coletiva, pois cada pássaro, junto com os outros, faz um concerto geral”.
Olivier Messiaen (1908-1992): Des canyons aux étoiles… (1974)
As gravações de Messiaen por Chung têm sempre o som mais leve, etéreo, flutuando
Part 1:
1. Le Désert (The desert)
2. Les orioles (The orioles)
3. Ce qui est écrit sur les étoiles (What is written in the stars)
4. Le Cossyphe d’Heuglin (The white-browed robin-chat)
5. Cedar Breaks et le don de crainte (Cedar Breaks and the gift of awe)
Part 2:
6. Appel interstellaire (Interstellar call)
7. Bryce Canyon et les rochers rouge-orange (Bryce Canyon and the red-orange rocks)
Mockingbird, ou sabiá-do-norte (Mimus polyglottos), solista do 9º movimento e parente do sabiá-da-praia da América do Sul
Part 3:
8. Les Ressuscités et le chant de l’étoile Aldebaran (The resurrected and the song of the star Aldebaran)
9. Le Moqueur polyglotte (The mockingbird)
10. La Grive des bois (The wood thrush)
11. Omao, leiothrix, elepaio, shama (Omao, leiothrix, ʻelepaio, shama)
12. Zion Park et la cité céleste (Zion Park and the celestial city)
Roger Muraro (piano); Francis Petit (xylorimba); Renaud Muzzolini (glockenspiel); Jean-Jacques Justafré (horn)
Orchestre Philharmonique de Radio France, Myung-Whun Chung (conductor)
Recording: Paris, Maison de Radio France, Salle Olivier Messiaen, July 2001
Se o nome Arturo Benedetti Michelangeli (1920-1995) não significa nada para você, tudo mudará a partir do momento em que você baixar esta maravilha trazida por F.D.P. Bach. São dois CDs com os Prelúdios Completos – primeiro e segundo livros -, mais as Images I e II e o Children’s Corner, também completos.
O pianista Arturo Benedetti Michelangeli tinha algo de João Gilberto. Absolutamente maníaco, só tocava em seu Steinway e viajava sempre com o mesmo afinador. Compreesivelmente, cada turnê era um suplício para seus acompanhantes. Quando não podia levar seu piano, fazia tantas exigências que até os japoneses perderam a paciência com ele. Mas há o outro lado: foi o primeiro pianista que impressionou este humilde P.Q.P. pela sonoridade perfeita. Era uma sonata de Schubert e fiquei paralisado pela qualidade da interpretação e pelo som do pianista, que parecia ter planejado cada nota. Arturo era tão perfeccionista que, mesmo tendo vivido 75 anos, nunca teve um repertório imenso. Como João Gilberto, trilhava por muito tempo as mesmas obras até deixá-las per-fei-ti-nhas.
Embriague-se com Michelangeli.
Claude Debussy (1862-1918) – Prelúdios livros I e II, Children`s Corner, Images livros I e II
CD 1
1. Préludes (Livre I): Danseuses de Delphes
2. Préludes (Livre I): Voiles
3. Préludes (Livre I): Le Vent dans la plaine
4. Préludes (Livre I): ‘Les sons et les parfums tournent dans l’air du soir’
5. Préludes (Livre I): Les collines d’Anacapri
6. Préludes (Livre I): Des pas sur la neige
7. Préludes (Livre I): Ce qu’a vu le vent d’ouest
8. Préludes (Livre I): La Fille aux cheveux de lin
9. Préludes (Livre I): La Sérénade interroumpue
10. Préludes (Livre I): La Cathédrale engloutie
11. Préludes (Livre I): La Danse de Pluck
12. Préludes (Livre I): Minstrels
13. Children’s Corner: Docteur Gradus ad Parnassum
14. Children’s Corner: Jimbo’s lullaby
15. Children’s Corner: Serenade for the doll
16. Children’s Corner: The snow is dancing
17. Children’s Corner: The little shepherd
18. Children’s Corner: Golliwogg’s Cake-Walk
PS: Em 2008 tivemos o comentário de Junior de Oliveira: “Ótima gravação de Michelangeli como sempre!!! eu sei que é pedir demais .mas vocês poderiam postar mais gravações desse genio da musica”
Com a lentidão habitual do nosso SAC, informamos que o pedido foi atendido aqui (Haydn), aqui (Galuppi, Bach/Busoni), aqui (Chopin) e aqui (Schumann no Vaticano). O pedido mais recente do Bernardo também foi atendido aqui (Beethoven em Viena).
PS2: Nem deu tempo de comentar os Prelúdios, essa obra prima pianística sem igual. Deixo apenas uma impressão, a ser confirmada ou negada por cada ouvinte. O livro I (1909-10) é cheio de paisagens e cores iluminadas pela luz do sol: a Catedral submersa, as colinas de Anacapri, os passos sobre a neve que são uma caminhada tranquila, bem diferente da tensão de um gelado caminhar noturno. Já o livro II (1912-13) tem muitos momentos boêmios ou irônicos ou sombrios, um clima bem mais noturno: a porta do vinho, as folhas mortas, os fogos de artifício… Assim como em uma das Images (1907) e também no seu anterior Clair de lune (1905), no 2º livro dos Prelúdios Debussy lembra-se novamente da lua, companheira dos poetas. Mais sobre os prelúdios aqui e aqui.
Por que o terno e gravata na praia, Monsieur Debussy? Ele é cheio de mistérios…
Na segunda-feira da semana passada, fui surpreendido pelo fato de que não poderia dar continuidade ao Ser da Música, espaço que eu conduzia com máxima persistência desde os idos de 2009. O espaço tinha um valor sentimental para mim. Recebi ao longo de mais de treze anos, muitas manifestações benfazejas de almas que acompanhavam discretamente as postagens feitas todos os dias. Ao todo foram mais de seis mil. Acredito que muita gente deve ter se abastecido com boas gravações. Era essa a finalidade. Fazia um esforço para ouvir tudo o que postava. Não deixei jamais de fazê-lo. Mas, tudo se foi. Como disse para os colegas do PQP Bach em tom de melancólica ironia: “O ser da música não mais será”.
O que me consola é que está tudo salvo em meu email. Diariamente, o Google enviava o que eu postava no dia anterior. E assim a vida segue. Retorno ao PQP Bach e penso que por aqui ficarei durante bastante tempo. Não tenho a intenção de recomeçar. Nunca deixei de acompanhar as postagens dos distintos colegas do espaço. Já tive uma passagem rápida por esta página nos anos de 2010 e 2011 – se a memória não falha. Quando fui interpelado pelo PQP sobre o que havia acontecido com o blog que eu conduzia e dei a fatídica notícia do seu ocaso, a primeira coisa que recebi foi um generoso convite para retornar. Então, vamos lá!
Esta postagem eu havia feito no dia 12 de maio. É o primeiro disco que aparece por aqui após esse hiato de onze anos. Escolhi-o pela força emblemática das obras. Recordo-me que, quando o escutei ainda no início do mês, fiquei impressionado com a qualidade e o repertório. O disco traz duas obras pelas quais eu tenho grande admiração. A espetacular Sinfonietta, obra cuja escrita iniciou-se em 1925, mas que teve a sua estreia em 1926. É uma das últimas obras escritas pelo compositor tcheco. É uma obra com um forte apelo marcial. Começa com uma marcante fanfarra. A outra obra é a rapsódia para orquestra, denominada Taras Bulba, baseada na novela do escritor russo Nikolai Gogol. A história é bastante curiosa e traz um conjunto de elementos culturais do leste europeu. Trata sobre cossacos, polacos e ucranianos. Janácek escreveu a obra entre os anos de 1915 e 1918. A regência do disco fica a cargo do maestro uruguaio José Serebrier à frente excelente Filarmônica Estatal Tcheca. Boa apreciação!
Léos Janácek (1854-1928) –
01. Sinfonietta, Op. 60: Fanfares
02. Sinfonietta, Op. 60: The Castle
03. Sinfonietta, Op. 60: The Queen’s Monastery
04. Sinfonietta, Op. 60: The Street
05. Sinfonietta, Op. 60: The Town
06. Lachlan Dances: Starodavny I
07. Lachlan Dances: Pozehanny – Jose Serebrier
08. Lachlan Dances: Dymak
09. Lachlan Dances: Starodavny II
10. Lachlan Dances: Celadensky
11. Lachlan Dances: Pilky
12. Taras Bulba, Rhapsody for Orchestra: The Death Of Andri
13. Taras Bulba, Rhapsody for Orchestra: The Death Of Ostap
14. Taras Bulba, Rhapsody for Orchestra: Prophecy And Death Of Taras Bulba
Atentem para a data da postagem original. É de 2011.
O maestro Yan Pascal Tortelier tem um currículo respeitável. Não havia escutado nada ainda sob a sua condução. Sou sabedor de que, após os problemas com John Neschling, em 2009, Tortelier foi contratado para ser o regente titular da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP). Tortelier é francês de nascimento. Mas já teve a oportunidade de conduzir importantes orquestras como a de Londres, São Francisco, Montréal, Paris e São Petersburgo. Vale ressaltar que o seu principal protagonismo foi à frente da orquestra da BBC de Londres. Seu trabalho na BBC lhe rendeu uma láurea (inclusive, as peças regidas neste post estão a cargo da sinfônica inglesa). A primeira impressão foi positiva. As três peças (broadcastings) que surgem nesta postagem, deixaram-me feliz. Conhecia somente o concerto para violino de Britten, compositor que se sempre provoca admiração e surpresa quando o escuto. A suíte de Bridge também provocou uma impressão de contentamento. Fato importante é que Frank Bridge foi professor de Britten, o maior compositor inglês de todos os tempos (em minha humilde opinião). Lutoslawski, por sua vez, com sua linguagem áspera, continua a ser um desafio. Não deixe de ouvir. Uma boa apreciação!
Frank Bridge (1879-1941) – The Sea-Suite For Orchestra
01. 1. Seascape (Allegro ben moderato)
02. 2. Sea-foam (Allegro vivo)
03. 3. Moonlight (Adagio ma non troppo)
04. 4. Storm (Allegro energico)
Benjamin Britten (1913-1976) – Violin concerto, op. 15
05. I. Moderato Con Moto-
06. II. Vivace-Cadenza-
07. III. Passacaglia Andante Lento (Un Poco Meno Mosso)
Dabiel Hope, violin
Witold Lutoslawski (1913-1994) – Concerto for Orchestra
08. I. Intrada: Allegro maestoso
09. II. Capriccio notturno e arioso: Vivace
10. III. Passacaglia, toccata e corale: Andante con moto
Este CD é formidável. Reúne três importantes compositores da música russa – Glinka, Roslavets e Shostakovich. Glinka é considerado como o pai da música russa. Suas composições influenciaram O Grupo dos Cinco, formado por Balakirev, Borodin, Cui, Mussorgsky e Rimsk-Korsakov. Tal grupo procurava uma produção essencialmente russa. Já Roslavets tem em sua produção musical uma importante marca – suas obras revelam um mundo sonoro denso e misterioso, que sugere influências de Debussy e Scriabin, e, até certo ponto, Schoenberg. O último dos três compositores é Shostakovich, uma das minhas paixões. A Sonata para viola e piano, Op. 147 é singular e melancólica. Não deixe de ouvir este registro que revela o âmago da produção russa. Sou apaixonado pela música russa. E eis aqui uma possibilidade de conferir este extraordinário CD com três sonatas fantásticas. Boa apreciação!
Mikhail Glinka (1804-1857): Sonata para Viola e Piano / Nikolai Roslavets (1881-1944): Sonata para viola e piano / Dmitri Shostakovich (1906-1975): Sonata para viola e piano, Op. 147 (Bashmet)
Mikhail Glinka (1804-1857) – Sonata para Viola e Piano in D menor (18:21)
1. Allegro moderato [9:59]
2. Larghetto ma non troppo [8:14]
Nikolai Roslavets (1881-1944) – Sonata para viola e piano (12:23)
3. Sonata para viola e piano [12:23]
Dmitri Shostakovich (1906-1975) – Sonata para viola e piano, Op. 147 (36:11)
4. Moderato [11:24]
5. Allegretto [6:52]
6. Adagio [17:53]
Ernesto Nazareth foi um pianista e compositor brasileiro, considerado um dos grandes nomes do “tango brasileiro” ou, simplesmente, choro. Influenciou muitos compositores, do popular ao erudito. Milhaud é um dos muitos compositores influenciados pela música de Nazareth.
Os quase dois anos de residência de Milhaud no Brasil (1917-1918) foram de extrema importância para sua música. Milhaud escreveu o seguinte sobre seu encontro com a música brasileira:
Os ritmos dessa música popular me intrigavam e me fascinavam. Havia uma suspensão imperceptível nas síncopes, uma respiração despreocupada, uma pausa leve que achei muito difícil de dominar. Comprei então uma quantidade de maxixes e de tangos; fiz um esforço para tocá-los em seus ritmos sincopados que passam de uma mão para a outra. Meus esforços foram recompensados e eu podia finalmente expressar e analisar esse “pequeno nada” tão tipicamente brasileiro. Um dos melhores compositores desse gênero musical, Nazareth, costumava tocar piano na frente da porta de um cinema na Avenida Rio Branco. Sua maneira fluida, impalpável e triste de tocar também me ajudou a conhecer melhor a alma brasileira.
Em 1918, enquanto Milhaud estava no Rio, Ernesto Nazareth tocava no Cinema Odeon, para o qual ele dedicara seu mais famoso tango. Milhaud não foi o único europeu a ouvir Nazareth e se maravilhar com suas criações. O pianista Artur Rubinstein visitou o Brasil no mesmo ano, e ficou igualmente impressionado.
Mesmo assim, quando Milhaud mencionou as fontes de Le Boeuf sur le Toit, não houve nenhuma palavra sobre Nazareth e seus tangos, usados pelo compositor francês em sua peça mais conhecida.
Fonte: Crônicas Bovinas
Uma análise detalhada sobre a obra Le Boeuf Sur Le Toit e as
melodias brasileiras usadas na música mais popular de Milhaud.
Pesquisa feita por Daniella Thompson – Extremamente interessante
Peço perdão pelo longo silêncio que já virou praxe, mas a vida anda dando suas pequenas voltas. A pior foi queimar o HD e estar sem meus LPs e CDs por alguns meses. Mas este não é o caso da compositora de hoje, que estava no meu mp3 player todo o tempo. Seu nome é Tatyana Mikheyeva (lê-se Mirreieva), cazaque, nascida em 1962 em Talgar, no sul do Cazaquistão, próximo a antiga capital Almaty, já na fronteira com a República Quirguiz. Estudou no Conservatório de Música justamente de Almaty, mas quando estive lá, o pessoal do conservatório não sabia quem era (ou fizeram pouco esforço para lembrar, já que eu disse que ela estava em Moscou agora. Parece também que já chegou a dar uma passada pelo Festival Música Nova, em Santos.
Deixando de lado o blá, blá, blá biográfico de quem nada sabe da vida da moça, sua música é muito interessante. Não que seja profundamente revolucionária. Está mais para um crossover, cheio de elementos folclóricos e improvisação jazzística, mas tendendo tudo a caminhar em direção à música clássica, embora, frequentemente, com mais soltura (que é o que me pega aqui). Boa parte das peças são cantadas, mas não é nada que lembre canto lírico. Tem tudo isso, no entanto, uma força magnífica, uma preocupação expressiva bem peculiar e uma harmonização de diversos elementos que me chamam a atenção. Basicamente, não é uma revolução, mas me soa muito singular.
Coloquei tudo que tenho dela aqui (e tudo vêm do Classical Archives). Eu, particularmente, gosto muito da “Morning Mountain Music for Voice, Piano, Cello and Small Ensemble” e me divirto muito com várias partes do Réquiem (ainda que, às vezes, ela exagere um pouquinho no sintetizador).
Boa diversão!!
Tatyana Mikheyeva (1962- )
01 – Archaic Canons for Cello, Voices, Choir and Phonograph
02 – Moonlight Woman for Flute, Alto Flute and Percussion
03 – Morning Mountain Music for Voice, Piano, Cello and Small Ensemble
04 – Music for the Pregnant for Voice and Synthesizer
05 – Music in the Dark for two Pianos, Percussion and Phonograph
06 – The Prophecy of Yahavi’ for Voice, Percussion and Sea Wave
Requiem in Memory of Dmitry Pokrovsky
07 I. Great Devastation
08 II. Trisna
09 III. Voices of Ancestors
10 IV. Krada
11 V. Lullaby of Iriy
Dmitry Cheglakov, cello (faixa 1) K. Drasavin, voz (faixa 1) T. Smyslova, regente (faixa 1, 7-11) Tatyana Mikheyeva, soprano (faixa 1, 7-11), sons eletrônicos (faixa 3), voz (faixa 4, 6) D.Pokrovsky Theater of Folk Music Chamber Ensemble (faixa 1, 7-11) D. Denisov, flauta (alta) (faixa 2) Natalia Pshenichnikova, flauta (faixa 2) V. Grishin, percussion (faixa 2) Andrey Zelensky, sintetizador (faixa 3) N. Shiryaev, baixo (elétrico) (faixa 3)
N. Vintskevich, saxofone (faixa 3) V. Kuleshov, bateria (faixa 3) M. Dubov, piano (faixa 5), M. Pekarski, piano (faixa 5) Mark Pekarsky Percussion Ensemble Chamber Ensemble (faixa 5) Bolshoi Theater Percussion Ensemble Chamber Ensemble (faixa 6) V. Grishin, regente (faixa 6) V. Pushechnikov, piano (faixa 6)
Encontrei, por acaso, ontem uma gravação que me deixou de queixo caído: não fazia ideia de que Stokowski houvesse gravado Lutosławski. Verdade que é o primeiro Lutosławski, ligado claramente à música de Bartók (de fato, mesmo depois, ele continuaria umbilicalmente ligado, mas de formas mais sinuosas, complexas, ambíguas; aqui, não, tudo é direto e cristalino, ainda que esteja longe, muito longe, de ser a obra que Bartók não escreveu), mas seja o compositor teoricamente visto como conservador (e tenho muitas ressalvas a essa percepção), seja o vanguardista de pouco depois, Lutosławski é grande, fantástico em sua capacidade de manejar a massa sonora, na compactação e na fluência de suas peças, na sua capacidade de construir climas. Pessoalmente, gosto mais desta 1ª Sinfonia do que de qualquer peça puramente orquestral de Bartók (salvo, talvez, pelo início do Mandarim Miraculoso). E nas mãos de Stokowski (numa gravação ao vivo, de 1959), a peça soa fresca, intensa, como nunca havia visto (ouvido) antes. A princípio, o primeiro impacto é a velocidade e a angulosidade da regência, mas não menos impressionante é a coesão que ela imprime, o frescor que tira aquele bolor de obra escolar que estava impregnado em nossa (tanto Antoni Wit quanto o próprio Lutosławski acabam fazendo isso em suas gravações e, do que me recordo, não conheço outras interpretações), e que ele consegue mesmo quando é menos acelerado que Wit no último movimento. Por essas e outras, minha reverência por Stokowski só cresce.
Da 5ª Sinfonia do Shostakovich não tenho muito o que dizer. Não a escutei com atenção e não é, em absoluto, uma das minhas sinfonias favoritas (seria tão melhor por ouvir o Stokowski regendo uma das quatro primeiras ou a décima!).
Ótima diversão!
Witold Lutoslawski
Sinfonia nº1 (1947), para orquestra
01 I. Allegro giusto
02 II. Poco adagio
03 III. Allegro misterioso
04 IV. Allegro vivace
Dmitri Shostakovich
Sinfonia nº5 in Ré menor, Op. 47, para orquestra
05 I. Moderato
06 II. Allegretto
07 III. Largo
08 IV. Allegro non troppo
Orquestra Filarmônica Nacional de Varsóvia (faixas 1-4) Orquestra Filarmônica Tcheca de Praga (5-8) Leopold Stokowski, regente
Já faz uns meses que o Frater Carlinus encontrou esta joia e, sabendo-a de seu especial interesse, repassou-a ao Monge Ranulfus – mas este andava ocupadíssimo com sua peregrinação da Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba para as vizinhanças do Convento da Penha, 1300 Km mais ao norte, e a joia foi ficando na estante à espera de algum impulso que a recolocasse na ordem do dia. E aí…
… eis que o impulso veio em 12 de outubro da forma da postagem do Grão Mestre PQP dos concertos para violino de Brahms e de Joachim realizados por… Rachel Barton Pine – precisamente a mesma violinista da nossa joia a desempoeirar!
Verdade que quando desta gravação nossa violinista ainda não se chamava Pinheiro: aparece na capa meramente como Rachel Barton – e sua biografia na Wikipedia não esclarece nada sobre essa mudança, apesar de contar com detalhes o acidente a que ela sobreviveu por pouco dois anos antes, quando a porta de um trem prendeu seu violino e ela foi arrastada pela alça por mais de 100 metros.
Outra curiosidade sobre a violinista é que ela é chegada num heavy metal e compartilha na net suas gravações de Metallica, Ozzy e outros tais – além de, como apontou o PQP no seu post, gostar de fazer teses ou aulas de suas gravações: vejam p.ex. sua narração de como Beethoven havia originalmente dedicado a Sonata “a Kreutzer” ao violinista negro George Bridgetower (do que já tratei aqui num post), num vídeo que introduz sua própria execução da sonata: http://www.youtube.com/watch?v=6W_hXRbqNIk
Não vou falar muito aqui do conteúdo do CD; vocês encontram bastante informação no encarte incluído na postagem (com o único senão que é estar em inglês). Menciono apenas que o segundo concerto gravado é o em Lá Maior op.5 nº 2, de 1775, do Chevalier de Saint-George, de que já temos duas outras gravações aqui no PQP Bach – e bastante informação sobre o compositor nas três postagens que fiz em junho de 2010.
Saint-George é ótimo, mas o CD reserva surpresas maiores com duas outras peças: o primeiro concerto é de um outro chevalier mulato, J.J.O. de Meude-Mompass, do qual não se sabe muito mais que ter nascido em Paris, ter sido mosqueteiro a serviço de Luís XVI e exilado com a Revolução, e ter morrido em Berlim. Seu concerto é 11 anos posterior ao de Saint-George, e embora também escrito na linguagem do classicismo francês tem um caráter bastante diferente – quase como se Saint-Georges se aproximasse mais do espírito de Mozart (sem ter sido influenciado por ele, como já explicamos num post anterior!), e Meude-Mompass um tanto mais de Haydn, prefigurando aqui e ali passos que pouco depois seriam dados por um aluno deste chamado Beethoven (por exemplo, no uso dos sopros na orquestra).
Ainda mais surpreendente me parece o autor do terceiro concerto do CD, composto também em Paris pelo cubano José Silvestre White Lafitte, ou Joseph White, então com 28 anos. Isso foi em 1864, ou seja: em pleno romantismo. O mais interessante para mim é que sete anos mais tarde White teria se tornado diretor do Conservatório Imperial (?) no Rio de Janeiro, permanecendo até 1889 – data que os redatores da Wikipedia em inglês provavelmente não sabem que para nós significa “proclamação da república”, o que sugere que White tenha sido um convidado e/ou protegido de Dom Pedro II. Seu concerto lembra bastante os de Paganini, mas me parece melhor orquestrado e menos voltado à pura exibição de virtuosismo que os de seu inspirador; pode não ser uma obra prima arrasadora, mas me cai bem, muito bem.
O mesmo não posso dizer da última obra do CD, o Romance em Sol Maior do inglês Samuel Coleridge-Taylor. Tudo bem que seja importante preservar a memória e a obra desse violinista, regente e compositor – mas infelizmente ele não foi exceção à estranha maldição que parece ter afetado a música inglesa depois de Purcell e Handel e antes de Britten: esse Romance me parece insuportavelmente banal, meloso e… desnecessário. Mas isso é para o meu gosto pessoal: certamente, como diz uma canção, “se você não quer tem quem queira”… Enfim, vai aí a lista das faixas – e bom proveito!
Concertos para Violino de compositores negros dos séculos 18 e 19
Rachel Barton [Pine], violino
Encore Chamber Orchestra regida por Daniel Hege (1997)
Chevalier J.J.O. de Meude-Mompass: Concerto n.º 4 em Ré (1786)
01 Allegro
02 Adagio
03 Rondeau: Allegreto
Chevalier de Saint-George: Concerto em Lá op. 5 n.º 2 (1775)
04 Allegro moderato
05 Largo
06 Rondeau
Joseph White: Concerto em fá sustenido menor (1864)
07 Allegro
08 Adagio ma non troppo
09 Allegro moderato
Samuel Coleridge-Taylor
10 Romance em Sol Maior (1899)
Este é um dos cds que mais tenho ouvido nos últimos dois anos, não entendo porque demorei tanto a compartilhá-lo com os amigos. Trata-se de um álbum com obras de compositores franceses compostas nos extremos do século XX, ou seja, início, com os Les Six Satie, Milhaud e Auric e final do século com Françaix e Fetler. Satie nos presenteia com seu balé Parade, música que mais tenho escutado já há um bom tempo. De Milhaud temos a polêmica e empolgante Le Boeuf Sur Le Toit, pantomima baseada em canções brasileiras. A alegre, ritmada e cheias de emoções Ouverture é uma das poucas peças de Auric que tive a oportunidade de ouvir. Completam o álbum dois compositores que eu nunca tinha ouvido falar, mas que me empolgaram bastante, Jean Françaix nos brinda com seu despretensioso e singelo, mas muito bonito Concertino para Piano e Orquestra e Paul Fetler com os Contrasts para Orquestra, obra que me surpreendeu bastante, com passagens rápidas e ritmadas, bem ao meu gosto. Enfim, um álbum que vale a pena ouvir.
Parade (Ballet Realiste On A Theme Of Jean Cocteau)
Composed By – Erik Satie
Orchestra – London Symphony Orchestra*
(14:27)
1.1 Choral – Prelude de Rideau Rouge – Prestidigitateur Chinois 5:16
1.2 Petite Fille Americaine 3:51
1.3 Acrobates 2:56
1.4 Final – Suite au “Prelude du Rideau Rouge” 2:24
2 Le Boeuf Sur le Toit (Ballet, After Jean Cocteau)
Composed By – Darius Milhaud
Orchestra – London Symphony Orchestra*
18:35
3 Ouverture
Composed By – Georges Auric
Orchestra – London Symphony Orchestra*
7:51
Concertino For Piano And Orchestra
Composed By, Piano – Jean Françaix
Orchestra – London Symphony Orchestra*
4 1. Presto Leggiero 1:51
5 2. Lent 1:44
6 3. Allegretto; Rondeau 4:15
Contrasts For Orchestra
Composed By – Paul Fetler
Orchestra – Minneapolis Symphony Orchestra
7 1. Allegro Con Forza 4:03
8 2. Adagio 5:24
9 3. Scherzo: Allegro Ma Non Troppo 3:52
10 4. Allegro Marciale – Presto 4:58
Regente: Antal Dorati, com as orquestras acima citadas.
Surpreendi-me com a alta qualidade deste CD — mais um do compositor americano Samuel Barber. O Concerto para Violoncelo é uma verdadeira joia. As passagens são belíssimas e de bom gosto. Ainda não tivera a oportunidade de conhecer esse compositor. Mas após as duas sinfonias que postei a semana passada e com mais este concerto para cello, Barber entrou positivamente em meu conceito. Vale ressaltar ainda o belo Adagio para cordas, Op.11 encontrado neste CD que ora posto. Duas palavras o traduz: belo e desolador. Parece com uma daquelas velhas melodias sobre os efeitos devastadores da guerra. Não deixe de ouvir. Uma boa apreciação!
Samuel Barber (1910-1981) – Cello Concerto, Op. 22, Medea Ballet Suite, Op. 23 e Adagio for Strings, Op. 11
Cello Concerto, Op. 22
01. Allegro moderato
02. Andante sostenuto
03. Molto allegro e appassionato
Medea Ballet Suite, Op. 23
04. Parodos
05. Choros. Medea and Jason
06. The Young Princess. Jason
07. Chroso
08. Medea
09. Kantikos Agonias
10. Exodos
Adagio for Strings, Op. 11
11. Adagio for Strings, Op. 11
Royal Scottish National Orchestra
Marin Alsop, regente
Wendy Warner, cello
Como comentei em um post anterior de música romena, às vezes a sonoridade, a ambiência da música de Lerescu me lembram muito o Stefan Niculescu dos anos 70 e 80. Verdade que tenho a sensação de que falta um quê inominável, aquele que separa a obra-prima de uma obra “apenas” muito interessante e que não se restringe simplesmente a uma falta de novidade, ou de originalidade extrema. O que posso dizer é que parece faltar o peso, a força extrema com Niculescu bizarramente nos conduz pela leveza. E mais ainda, como ele consegue abandoná-la sempre que quer, sem se tornar refém da criação. Ainda assim, as sinfonias de Lerescu são obras de enorme beleza, e tenho certeza de que devem agradar mesmo os exigentes. Há nelas um transbordar de cor e dramaticidade que me recordam também um pouco daquele grandeur do Rautavaara dos primeiros concertos para piano, da época em que este ainda não tinha diluído de vez sua música (mas as sinfonias do Lerescu, ainda assim, são melhores que o melhor Rautavaara). As três primeiras sinfonias, respectivamente de 1984, 1987 e 1994, é que realmente são o caso. A quarta, para orquestra com órgão, não me impressiona tanto. E dentre as três primeiras, tenho um carinho todo especial pela segunda, que desde os primeiros segundos já nos envolve com uma entrada brilhante e sua delicadeza um pouco infantil.
Boa diversão!
Sorin Lerescu (1953)
Sinfonias
CD 1
01 Sinfonia nº1, para orquestra (1984)
02 Sinfonia nº2, para orquestra (1987)
CD 2
01 Sinfonia nº3, para orquestra (1987)
02 Sinfonia nº4, para orquestra com órgão
Nem todo CD que a gente posta neste blog é por morrer de amores pelo repertório; existem muitas outras razões possíveis. Por exemplo, o CVL e eu (Ranulfus) postamos bastante por razões de documentação: disponibilizar coisas de determinada época ou tendência artística pras pessoas poderem saber que essas coisas existem e como são.
Aliás, o próprio Grão Mestre PQP não faz isso sempre, mas quando faz vai fundo: baste ver o Miles Davis que ele postou há dois dias, que, como ele mesmo é o primeiro a dizer, é realmente o ó do borogodó.
Mas esse NÃO é, de jeito nenhum, o caso do CD que estou postando agora! É um CD muito bom; minha ressalva é só que pessoalmente sinto mais afinidade com repertórios de outras épocas e estilos.
Então minha decisão de postar estas peças brasileiras inincontráveis de outro modo tem por um lado esse caráter documental – mas também outras razões: uma delas a própria voz, e a impecabilidade no uso dessa voz, dentro da técnica que escolheu, da soprano Marília Vargas – que apesar de minha conterrânea só conheci este ano com a estupenda postagem feita pelo CVL das cantatas da compositora seiscentista veneziana Barbara Strozzi.
Pessoalmente continuo preferindo ouvir a voz da Marília nas cantatas de Strozzi – mas também não posso deixar de reconhecer o capricho, o empenho verdadeiramente amoroso colocado por Marília e pelo musicólogo Paulo José da Costa, seu pai, na pesquisa e realização do CD, não por acaso chamado (a partir de um verso de uma das canções) “Todo amor desta terra”.
As 22 faixas procedem de 8 compositores, só 2 deles vivos, com por volta de 90 anos. Desses oito, o nascido há mais tempo (130 anos) morreu com 47, vítima da gripe espanhola: trata-se de Augusto Stresser (1871-1918), sempre mencionado como autor da primeira ópera composta no Paraná, “Sidéria”, de 1912 (houve outras?). O mais recente estaria com 77 anos, se não houvesse morrido aos 74: Henrique de Curitiba (1934-2008), que comparece com um ciclo de 6 poemas musicados, mais uma faixa independente.
No entremeio temos (retomando a ordem de antiguidade) Benedito Nicolau dos Santos (1878-1956), com uma faixa – e aí as principais estrelas da “face antiga” do disco: 5 faixas de Bento Mossurunga (1879-1970) e 4 de Alceo Bocchino (1918). Entram ainda Wolf Schaia (1922-2002) com 2 faixas, Gabriel de Paula Machado (1924) com uma, e também uma de José Penalva (1924-2002).
Canções paranaenses ou curitibanas? Dos oito compositores, cinco são curitibanos – sendo que Alceo Bocchino, com 92 anos, vive há 65 no Rio. Mossurunga nasceu em Castro (cidade cujo rio é homenageado na primeira faixa), mas viveu 25 anos no Rio e bem uns 60 em Curitiba. Paula Machado parece ter vivido dividido entre sua Ponta Grossa natal e Curitiba. E o Padre Penalva, provavelmente o compositor mais denso do grupo, é paulista de Campinas; mudou-se com 34 anos para Curitiba, onde produziu o principal de sua obra nos 44 anos seguintes.
Paranaenses ou curitibanas, minha impressão é que a sombra de uma terceira cidade recai sobre pelo menos metade das canções: a do Rio antigo. Pois pelo menos metade podem ser classificadas como modinhas tardias: criações novecentistas dentro do principal gênero “de salão” da música brasileira oitocentista – “popular” na medida em que possa ser chamada assim a música cultivada nas casas senhoriais. E na combinação soprano e piano a modinha está inteiramente em casa.
Talvez o caso mais curioso no CD seja a canção do Padre Penalva (faixa 14), compositor que estamos acostumados a ver transitando entre o dodecafonismo e os clusters vocais à la Penderecki: pois não é que comparece aqui com uma espécie de modinha alunduzada? A propósito, uma exploração bastante interessante dos belos versos de Menotti del Picchia, mas em certo sentido a menos paranaense das canções: antecede em cinco anos a instalação do autor em Curitiba.
As mais paranaenses, num sentido folclorizante, são – é chato dizer, mas necessário – as que eu menos gosto: peças que pretendem estilizar para o salão um tipo de música que têm seu berço no galpão, e que vive muito bem no galpão sem precisar fingir o que não é. (Falo de um galpão sulino, puxando para o gauchesco). Cabem nesse saco (ou pelo menos tendem a ele) as faixas 2, 6 e 9, sintomaticamente chamadas “Tristeza do Pinheiro”, “Sapecada” (nome que se dá para assar pinhão no mato numa fogueira das próprias grimpas do pinheiro/araucária) e “Gauchinha”.
Eu diria ainda que duas das canções escapam ao modinheiro e ao folclorizante no rumo do Lied romântico europeu (com perdão da redundância): as faixas 5 (“As letras”, de Wolf Schaia sobre versos de Fagundes Varella) e 15 (a forte “Canção de Inverno” de Alceo Bocchino).
Finalmente, espero não estar sendo influenciado pela generosidade com que, nos anos 70, Henrique de Curitiba recebia os estudantes mais inquietos na sua mesa na Confeitaria Iguaçu ou mesmo na sua casa, ao dizer que se há uma voz propriamente pessoal no CD, essa é a sua. Não que aí também não apareça o elemento “modinha”; só que, justamente, é apenas um elemento. Também não quero dizer que a composição de Henrique me convença sempre: a última faixa do CD, por exemplo (e a exemplo de algumas outras peças suas que conheço, não neste CD), me parece ficar no nível de uma construção artificial, uma intenção de composição que não recebeu a graça daquele sopro de vida que concede naturalidade até às coisas construídas mais artificialmente. Mas Henrique também tem outros momentos –
… como o encontro entre o filho de poloneses Zbigniew Henrique Morozowicz (“de Curitiba” é nome artístico) e a filha de ucranianos Helena Kolody (1912-2004), uma modesta professora de ciências apaixonada pelas palavras desde menina, que com os anos atingiu um minimalismo singelo tão pessoal que a tornou a inegável grande dame da poesia paranaense. De 1999, os “Seis Poemas de Helena Kolody” são a peça mais recente do CD, e me caem como um vinho branco de perfume sutil. Em sua delicada síntese de eslavo e brasileiro, romântico e moderno, estudado e intuitivo, quer-me parecer que neste ciclo nosso professor e amigo Henrique chegou lá – tanto no sentido de realização pessoal quanto no de alguma coisa que possa ser chamada de “canções paranaenses”, e não apenas “de compositores paranaenses”.
Mas eu falei que postava o CD por diversas razões, e há uma que ainda não mencionei – esta bem pessoal: é que precisamente hoje, 10 de setembro, se encerra a estada de nove meses do peregrino monge Ranulfus na cidade de Curitiba: sua próxima postagem já virá de outro canto do Brasil. Daí a vontade de marcar o momento com a divulgação deste CD, o qual talvez possa ser entendido – inclusive em sua imagem de capa reproduzida abaixo – como um sensível reflexo das múltiplas e para mim fascinantes ambiguidades deste lugar.
“Todo amor desta terra” – canções paranaenses [1900-1999] (2008)
Soprano: Marília Vargas – Piano: Ben Hur Cionek
Flauta transversal: Fabrício Ribeiro (faixa 6)
01 Ondas do Iapó – Bento Mossorunga / José Gelbeck
02 Tristeza do Pinheiro – Bento Mossorunga / Alberico Figueira
03 Virgem do Rocio – Bento Mossorunga / Alberico Figueira
04 Cantiga de Ninar – Alceo Bocchino / Glauco de Sá Britto
05 As Letras – Wolf Schaia / Fagundes Varela
06 Sapecada – Bento Mossorunga / João de Barros Cassal
07 A Marília – Alceo Bocchino / Tomás Antônio Gonzaga
08 Só tu – Wolf Schaia / Paulo Setúbal
09 Gauchinha – Alceo Bocchino / Antônio Rangel Bandeira
10 Mimosa Morena – Benedito Nicolau dos Santos / Correia Junior
11 Vem – Bento Mossorunga / José Gelbeck
12 Serenata da ópera “Sidéria” – Augusto Stresser / Jayme Ballão
13 Ismália – Gabriel de Paula Machado / Alphonsus de Guimarães
14 Saudade – José Penalva / Menotti del Picchia
15 Canção de Inverno – Alceo Bocchino / Pery Borges
. . . . . . . . .
SEIS POEMAS DE HELENA KOLODY – Henrique de Curitiba
16 Cantar
17 Cantiga de Roda
18 Voz da Noite
19 Âmago
20 Nunca e Sempre
21 Viagem Infinita
. . . . . . . . .
22 E se a lua nos contasse – Henrique de Curitiba
Ouvir é um ato que requer humildade. É imprescindível acreditar. Infelizmente nossa natureza não é assim, o que alguns chamam de senso crítico, eu chamo de idealização ou característica estética preferida. E isso, na maioria das vezes, leva a um impedimento da expressão do outro. A grande maioria de vocês sabem da dificuldade de ouvir o novo (não estou falando de um período específico da história). Aquela linguagem que é totalmente alheia ao nosso mundo tem que “forçosamente” criar uma memória musical. Pois a apreciação quase sempre vem da lembrança. Não foi a toa que boa parte das grandes obras-primas tiveram uma rejeição inicial. No meu caso, devo confessar que tenho enorme dificuldade com a música medieval e renascentista, isso porque meus ouvidos estão acostumados a uma certa dinâmica que é muito difícil abandonar. Ou talvez a sonoridade, tão próxima da arquitetura das igrejas, seja muito sacrificada numa gravação. Vou citar um exemplo bem geral: estou lendo uma biografia fantástica sobre Handel (Handel – Paul Henry Lang; Dover). Esta biografia foi lançada no início dos anos 1960, época na qual a música barroca, instrumental ou operística, era pouco executada (com exceção de Bach). Há um capítulo fantástico e quase profético sobre a estética das óperas barrocas, praticamente impossível de ser apreciada pelo século XIX e início do século XX. Pois o público valorizava um certo realismo ou tipo de ação no palco, que era inexistente e desinteressante para o ouvinte do período barroco. Tanto Handel como Rameau, por exemplo, deveriam enfatizar apenas as características psicológicas dos personagens, já que a ação (temas bíblicos, romanos ou gregos, em geral) era amplamente conhecida pelo público na época. Muitas vezes o mesmo libreto era usado por vários compositores. O que realmente importava era como o compositor arrancava lirismo e verdade daquilo. Hoje, passado algumas décadas depois do livro, o público é bem menos ortodoxo e muito mais interessado nesse período genial da música, um período além de Bach.
“E o que isso a ver com Schoenberg?” Bem, esse disco com obras corais, praticamente todos a cappela, me lembram um pouco a dificuldade que tenho com a música medieval. É difícil essa empreitada neste momento da minha vida (quanto mais cedo acostumar o ouvido, melhor), mas não vejo a música de Schoenberg mais difícil que a música de Guillaume de Machaut, por exemplo. São mundos tão distantes no tempo, mas tem tanto em comum. Pelo menos, não falta humildade nas minhas audições.
Arnold Schoenberg (1874 – 1951) – Choral Works
1. Satires (3), for chorus and instruments, Op. 28: Am Scheideweg (At the Crossroads)
2. Satires (3), for chorus and instruments, Op. 28: Vielseitigkeit (Versatility)
3. Satires (3), for chorus and instruments, Op. 28: Der neue Klassizismus (The New Classicism)
4. Pieces (4) for chorus & ensemble, Op. 27: Unentrinnbar (Inescapable)
5. Pieces (4) for chorus & ensemble, Op. 27: Du sollst nicht, du mußt (Thou Shall Not, Thou Must)
6. Pieces (4) for chorus & ensemble, Op. 27: Mond und Menschen (Moon and Mankind)
7. Pieces (4) for chorus & ensemble, Op. 27: Der Wunsch des Liebhabers (The Lover’s Wish)
8. Pieces (6) for male chorus, Op. 35: Hemmung (Restraint)
9. Pieces (6) for male chorus, Op. 35: Gesetz (The Law)
10. Pieces (6) for male chorus, Op. 35: Ausdrucksweise (Means of Expression)
11. Pieces (6) for male chorus, Op. 35: Glück (Happiness)
12. Pieces (6) for male chorus, Op. 35: Landsknechte (Yeomen)
13. Pieces (6) for male chorus, Op. 35: Verbundenheit (Obligation)
14. German Folksongs (3) for chorus, Op. 49: Es gingen zwei Gespielen gut
15. German Folksongs (3) for chorus, Op. 49: Der Mai tritt ein mit Freuden
16. German Folksongs (3) for chorus, Op. 49: Mein Herz in steten Treuen
17. Peace on Earth (Friede auf Erden), for chorus & instruments ad lib, Op. 13
18. Dreimal tausend Jahre, for chorus, Op. 50a
19. De Profundis, for chorus, Op. 50b
Faz algum tempo que queria postar obras do compositor canadense Claude Vivier, mas, quando decidi fazê-lo, notei que meus arquivos tinham baixa qualidade e estavam bem desorganizados. Foi quando achei esta caixa com quatro cds cobrindo o período criativo do autor (que não foi muito extenso, dada sua morte precoce). Algumas das minhas peças favoritas, como Orion, não estão aqui e vão ter que esperar por um novo post, mas dá para se ter uma boa noção da linguagem do autor, enquanto nos deliciamos com grandes peças, como Siddharta e Lonely Child. Para mim, é bem verdade, há uma certa dificuldade em apreciar grande parte da sua obra, que foi direcionada para o canto (coisa que não suporto bem), mas mesmo com a soprano, uma peça como Lonely Child dá arrepios na sua aparente simplicidade, em seu ar sacro e direto.
Enfim, só para deixar claros alguns pontos biográficos, Vivier nasceu em 1948 de pais desconhecidos. Foi adotado quando tinha três anos. Teve uma formação religiosa bastante intensa, mas se dirigiu cedo para a música. Suas primeiras peças importantes datam de 1968, Quarteto de cordas e Prolifération (esta terminada só no ano seguinte). Sua música vai se mudando de estilo com o passar do tempo, sobretudo com os anos de estudos com Stockhausen (1973-74) e após sua viagem para o Japão e para Bali (1976-77). E neste momento que sua obra alcança uma linguagem muito pessoal e melodiosa, ainda que próxima da música espectral francesa e cheia de referências orientais e ritualísticas. Tristemente, poucos anos depois, em 1983, ao 34 anos de idade, o compositor morreria assassinado, tendo escrito até aquele momento 48 peças.
Boa diversão!
CLAUDE VIVIER (1948-1983)
Anthology of Canadian Music, vol. 36
CD 1
01 Documentário sobre Claude Vivier preparado e lido por Maryse Reicher, jornalista (em francês)
02 Chants (1973) 21:55
CD 2
01 Proliferation (1968-69) 14:40
02 Pianoforte (1975) 9:10
03 Hymnen an die Nacht (1975) 5:30
04 Piece pour flute et piano (1975) 5:15
05 Piece pour violoncelle et piano (1975) 8:30
06 Siddhartha (1976) 27:05
CD 3
01 Lettura di Dante (1974) 25:55
02 Pulau Dewata (1977) 11:00
03 Zipangu (1980) 15:40
04 Lonely Child (1980) 19:05
CD 4
01 Shiraz (1977) 12:55
02 Paramirabo (1978) 14:30
03 Cinq chansons pour percussions (1980) 19:40
04 Prologue pour un Marco Polo (1981) 24:20
Michel Ducharne, barítono (CD 4, faixa 4)
Yves Saint-Armant, baixo (CD 4, faixa 4)
Claude Lamothe, violoncelo (CD 2, faixa 5; CD 4, faixa 2)
Lorraine Vaillancourt, regente (CD 1, faixa 2; CD 4, faixa 4)
Pierre Beluse, regnte (CD 3, faixa 2)
Serge Garant, regente (CD 3, faixas 1 e 4)
Walter Boudreau, regente (CD 2, faixa 6)
Yuli Turovsky, regente (CD 3, faixa 3)
Lise Daoust, flauta (CD 2, faixa 4; CD 4, faixa 2)
Marie Laferriere, mezzo-soprano (CD 4, faixa 4)
Jacques Lavallee, narrador (CD 4, faixa 4)
Jean Laurendeau, ondes martenot (CD 2, faixa 1)
Marie-Danielle Parent, soprano (CD 1, faixa 2; CD 3, faixa 4)
Gail Desmarais, voz (CD 1, faixa 2)
Jocelyne Fleury Coutu, voz (CD 1, faixa 2)
Christine Lemelin, voz (CD 1, faixa 2)
Diane Eberhard Bergstrom, voz (CD 1, faixa 2)
Helene Marchand (CD 1, faixa 2)
Madeleine Jalbert (CD 1, faixa 2)
David Kent, percussão (CD 4, faixa 3)
Serge Laflamme, percussão (CD 2, faixa 1)
Jean-Eudes Vaillancourt, piano (CD 2, faixa 3)
Louis-Philippe Pelletier, piano (CD 2, faixas 1, 2, 4 e 5; CD 4, faixas 1 e 2)
Lorraine Vaillancourt, soprano (CD 2, faixa 3; CD 3, faixa 1; CD 4, faixa 4)
David Doane, tenor (CD 4, faixa 4)
Denise Lupien, violino (CD 4, faixa 2)
Em memória de todos os que morreram pela negligência deliberada de um governo genocida no Brasil (2020-2021)
I. INTRODUÇÃO
A décima primeira sinfonia de Shostakovich é daquelas obras que quanto mais penetramos em seu íntimo e descobrirmos todos os seus meandros e detalhes, mais prazerosa ela se torna à nossa fruição. E os sentimentos que ela provoca são mais agudos principalmente nos espíritos revolucionários.
Escrita logo após o levante da Hungria de 1956, ela evoca e descreve alguns dos acontecimentos de 1905, o ano da primeira Revolução Russa, que fracassou, homenageando o espírito da revolução passada, e talvez sutilmente honrando os trabalhadores que se insurgiram contra a burocracia stalinista naquele momento na Hungria, que embora já não contasse com Stálin, perpetuava as mesmas práticas sob o véu de uma “abertura” e das “denúncias” de Khruschev. No fim o que mostrou a continuidade entre ambos foi justamente a repressão contra os intelectuais e trabalhadores húngaros no levante. Mas é incerto se Shostakovich quis realmente também se referir ao levante húngaro.
De toda forma, o mais importante da obra é sua capacidade de “narrar” os fatos do ano de 1905, utilizando-se de canções populares tradicionalmente ligadas ao movimento político que lutou contra a autocracia no final do século XIX e início do XX, até a Revolução de Outubro de 1917.
O conhecimento dos fatos ocorridos no anos de 1905 ajudarão a entender a obra. Desde a manifestação pacífica de trabalhadores sob a liderança de um padre, que é massacrada pelas tropas em frente ao Palácio de Inverno em janeiro, conhecida como Domingo Sangrento, passando pela revolta dos trabalhadores de toda a Rússia com o massacre, até a insurreição nas ruas com barricadas e fuzis, que também será derrotada pelas tropas do Czar no final do ano.
II. ANÁLISE
Vou utilizar como referência para a análise uma interpretação no Youtube, porque assim é possível ver os instrumentos que estão sendo utilizados para executar motivos e melodias que têm importante significado ao longo da obra. Essa gravação é boa pois utiliza de jogos de imagem articulados com a música. Recomendo ver o vídeo com o texto ao lado, o que pode ser feito dividindo a tela entre o vídeo e o texto.
1. A praça do Palácio de Inverno (Adagio)
Não se enganem pela incomum nomenclatura de “adagio” em um primeiro movimento (se comparada à tradição da forma sonata, onde geralmente o primeiro movimento é um Allegro). Tenho certeza que muitos que já escutaram várias vezes essa sinfonia se deixaram levar e descreveram esse movimento inicial como leve, distraído, calmo. Mas, na verdade, ele é cheio de tensões e conflitos latentes e sutis. A luta de classes muitas vezes é silenciosa e aparece sob outras formas não imediatamente reconhecíveis. Fica implícita em certos acontecimentos e movimentos. Raramente ela é explícita e aberta.
A sinfonia começa com uma melodia calma e lenta nas cordas, com leves toques de harpa. É importante fixar bem essa melodia pois ela retornará várias vezes e reaparecerá com uma outra forma num dos momentos mais dramáticos da obra: o silêncio após o massacre na praça em frente ao Palácio de Inverno.
Logo neste começo aos 1:04~1:21 minutos (na interpretação do vídeo acima) surge um incomum motivo nos tímpanos. Este motivo retornará muitas vezes e em variados formatos. Esse motivo pode ser visto como o conflito (de classes) silencioso sempre latente mesmo em meio à suposta calmaria. Aos 1:24~1:53 temos o primeiro motivo de um dos personagens desse conflito: as tropas czaristas, ou, o poder militar czarista, cujo caráter fica evidente pela melodia do trompete e a percussão das caixas.
Esses dois motivos retornarão a todo o momento, como se dissessem: a calmaria e a paz permanente de uma praça e um palácio ostensivamente ricos só se mantêm pela permanente presença da ostensividade militar, e pelo conflito permanente entre exploradores e explorados.
Os temas e motivos se repetem. Mas, dessa vez, o sinal militar que antes fora executado no trompete é executado em uma trompa (3:23~3:47). Os tímpanos continuam presentes a todo o momento, até que aos 5:13 ~ 6:00 surge nas flautas a pequena canção dos trabalhadores. O motivo dos tímpanos, tenso, continua a tocar, ameaçador.
Conhecida como “Слушай!” (“Escute!“), essa canção singela descreve a esperança por liberdade, apesar das barras de ferro, das baionetas, dos tiranos e de todo o silêncio. Algo pode ser escutado em meio a toda essa situação… Provavelmente foi uma canção inspirada ou mesmo criada nas prisões e nos campos de trabalho forçado dos exílios na Sibéria. Shostakovich quer, aqui, descrever a situação de opressão dos trabalhadores russos.
O tema da praça retorna, com a tensão dos tímpanos e harpas mais forte, ao que é sucedido por algo novo: nos 7:05, as caixas militares entram com o seu ritmo diferente, e a canção dos trabalhadores também muda: fica mais tensa e se espalha por naipes inteiros da orquestra, sugerindo a tensão crescente das contradições sociais causadas pelo sofrimento e miséria dos trabalhadores. Cresce a insatisfação com o regime econômico, social e político do Império Russo. Depois de passar pelos metais, violinos, violoncelos e contrabaixos, nos 7:57 a canção dos trabalhadores muda sua melodia, tornando-se mais dramática e quase épica. Ao que é precedida por um toque no fagote (8:10) e, em seguida, novamente nas cordas, mudando seu tom e melodia. Os metais dão sinais e os tímpanos continuam ativos.
Aos 8:41~9:11 acontece uma coisa muito sutil, mas que essa gravação aqui disponibilizada ajuda a perceber: os contrabaixos começam a tocar uma nova melodia. É um novo lamento de angústia e de insatisfação, apesar da presença intimidadora constante do trompete militar e dos tímpanos tensos, que tentam calar o clamor popular, tal como a polícia política czarista naquela época, a temível Okhrana.
É a melancólica canção “Ночь темна лови минуты”, mais popularmente conhecida como “Арестант” (“O prisioneiro“). Ela narra a dureza da vida nas prisões políticas do Czar.
(Uma versão para coro muito bonita, mostrando imagens de época e dos locais dos prisioneiros)
A canção “Escute!” soma-se à sua nova companheira e retorna nos violinos e violas. Aos 9:25 “O prisioneiro” é tocada numa flauta solo que vai ganhando volume. A melodia de “o prisioneiro” então se desenvolve e toma outros instrumentos, a melodia de “Escute!” passa para os contrabaixos, e os tímpanos agora soam ameaçadoramente volumosos (10:08). O resto do movimento continua com esses conflitos e tensões entre os diversos motivos e melodias, até que o tema da praça retorna (11:38) e conclui com as esporádicas aparições das caixas, tímpanos e trompetes.
Nos 14:06 um motivo curto e inédito aparece, e encerra o movimento.
2. O 9 de janeiro (Allegro)
O Segundo movimento começa com os contrabaixos quase que “correndo”, o que mostra que alguma mobilização está sendo realizada. Nas ruas? Nas fábricas? Nos quartéis? Seriam os trabalhadores ou os soldados?
Logo no início desse movimento, aos 14:46, uma melodia é tocada nas madeiras, depois passa para as cordas, violinos e violas, enquanto se mantém a correria nos violoncelos e contrabaixos. É a canção “Девятое Января” (“Nono de janeiro”). Essa, ao contrário das anteriores, e da maioria das canções subsequentes, não é uma tradicional canção folclórica de luta. Mas o sexto poema que Shostakovich musicou em seus Dez Poemas Corais Sobre Textos Revolucionários, sobre texto de Evgeny Mikhailovich Tarasov (1882-1943).
(coloquei a partir do momento em que o tema em questão aparece)
Para ilustrar o significado dessa melodia, vamos ao que diz o texto de Tarasov, sobre o qual Shostakovich fez o poema musical:
[…] Com oração nos lábios e com fé no peito, Com os retratos reais, guiados pelos ícones, Não para lutar contra o inimigo, sem pensar em mal – o povo caminhou, exausto, para derrotar o Czar com suas testas. Oh tu, nosso Czar, nosso pai! Olhe ao nosso redor: […] Morremos acorrentados e com fome… sem lugar para ir… Você é um dos nossos protetores! Você nos protege! […] Sim, a mão imperial é generosa de misericórdia: O Czar escutou seu povo com tanta importância, Que nada disse – e acenou com a mão… Sob os rebanhos de servos reais liberados das correntes, Toda a terra tremeu com um rugido, E a praça em frente ao palácio ficou coberta de corpos: o povo caiu, alimentados com bala e chumbo. […] Um milagre foi criado desse feito: Onde, guiada, choveu uma tempestade Onde o sangue do povo foi derramado numa torrente, – Ali, de cada gota de sangue e chumbo O cuidado da mãe terra deu nascimento a um lutador!
(tradução livre e amadora; trechos)
Como diz a letra, essa canção, cuja melodia está inserida na sinfonia, descreve os trabalhadores e camponeses pobres, assolados pela pobreza, pela fome, pela miséria e pela servidão, que vão pedir humildemente ao “paizinho Czar” a resolução para seus sofrimentos. Mas, diante do massacre czarista, renascem como lutadores. Mas essa melodia aparece, simplesmente, representando a “ingenuidade” dos trabalhadores. Outras canções mais à frente descreverão sua revolta.
A melodia se desenvolve espalhando-se para toda orquestra, tornando-se o tema inicial deste movimento, até que aos 16:11, o trompete toca, é um sinal militar para que as tropas fiquem em guarda. Aos 17:31 um novo motivo surge nos trombones, derivado da mesma canção acima, mas de sua parte inicial, que em sua letra diz:
Descubram suas cabeças! Neste dia triste A sombra de uma longa noite tremulou sobre o solo. A fé do escravo em seu senhor caiu, E uma nova alvorada acendeu sobre a terra-mãe… […]
A melodia, que reaparece aos 18:08, quer transmitir o sentimento de despertar dos trabalhadores. Os trombones e tubas emitem esse motivo, e em seguida o tema da marcha sofre uma leve modulação, tornando-se mais dramático e mais apelativo.
Aos 20:03 os oboés e flautas tornam tudo inesperadamente mais tenso. E os temas vão se desenvolvendo em sucessão e interseção. Um grande clímax vai sendo construído, como se a mobilização de trabalhadores que se dirigem à Praça do Palácio de Inverno fosse crescendo e tornando-se mais volumosa. Os temas desenvolvidos aqui são os mesmos de sempre, ganhando toda a orquestra e atingindo o clímax.
Tudo vai tornando-se mais silencioso e delicado, até que aos 24:04 o tema da praça retorna. Os trabalhadores chegaram à Praça, e caminham lentamente na neve espessa, entoando seus hinos de apelo e misericórdia ao Czar… Ouvimos o motivo ameaçador dos tímpanos e o sinal dos trompetes… ataques rápidos nas caixas… São tiros! Aos 25:30. Mais tiros… começa uma correria de cavalos nos contrabaixos, seguido pelas violas… O massacre começou… os pobres manifestantes tentam correr, se abrigar, mas estão sendo cercados pelos cavalos, pelos chicotes e sabres dos cossacos fortemente armados e brutais. Aos 27:59 o fuzilamento e extermínio geral começa… estampidos, marchas, tiros e mais tiros… em meio à morte generalizada, a melodia de “descubram suas cabeças” ainda soa aos 28:46, dizendo que os trabalhadores despertam, e a luta apenas começou… Por enquanto, quem vence é a força das armas repressoras representada pelas caixas e tímpanos tocando em marcha. Silêncio…
O tema da praça retorna, mas agora, com as cordas fazendo leves trinados (oscilações), como se representassem os sons de agonia da imensidão de corpos caídos sobre a vasta neve fria da praça…
O movimento se encerra com “Escute!” tocando timidamente aos 31:36.
3. Memória eterna. (Adagio)
O terceiro movimento, novamente um adagio, começa com o dedilhado nos contrabaixos, que é quase uma reflexão em um minuto de luto para aqueles que se foram. Sucede nos 34:11 a famosa canção “Вы жертвою пали в борьбе роково” (Tu caíste morto na luta!)
Esta canção é mais que uma marcha fúnebre de luto qualquer, é uma marcha fúnebre revolucionária que homenageia os lutadores caídos, prometendo mais luta. Faz homenagem a todos os lutadores que caíram buscando transformar a sociedade e ao mesmo tempo promete vingança contra os tiranos que foram responsáveis por suas mortes.
Seus versos merecem ser reproduzidos aqui na íntegra:
Tu caíste morto na luta! Com um amor desinteressado pelo seu povo Entregou sua vida e tudo que tinha por ele, como um herói! Pela vida, honra e liberdade dos operários! Tu penaste em cárceres frios e úmidos! Julgado e condenado por policiais e déspotas mercenários! Eles o arrastaram violentamente por uma estrada deserta Enquanto tu ouvias, exausto, o som de suas correntes a balançar Mas, enquanto os malditos tiranos festejam em seus luxuosos palácios Deleitando com vinho e afogando-se no rum Poderosos, corajosos e mortais, corações mentes e mãos Prenunciam sua fúria nas paredes de fábricas e quartéis: O povo se rebelará e a tirania cairá Seremos grandes, poderosos e livres Então, como irmãos, nos despedimos de ti Pois você se foi honrando o nobre caminho que seguiu!
Aos 38:24 um novo tema surge, criando uma atmosfera sombria, mas que cada vez mais vai se iluminando, como se do luto nascesse uma disposição para lutar. Quase como a cena de Encouraçado Potemkin (um filme que retrata um evento também ocorrido no ano de 1905) de Eisenstein, onde após o luto pelo marinheiro morto, os trabalhadores que visitam seu túmulo cerram os punhos e entoam hinos de luta em sua memória.
Surge então, levemente, aos 38:50 uma nova melodia nas trompas. Aos 41:14, a melodia envolve a orquestra cita um motivo da canção “Славное море, священный Байкал…” (“Grande mar, o sagrado Baikal…”) que entoa o sentimento de um ex-prisioneiro que, encontrando o mar Baikal, descobre a liberdade…
O motivo principal dessa canção é acentuado aos 41:33 pelos metais, num clímax de esperança… e logo em seguida, aos 41:55, o tema de “descubram suas cabeças” é tocado, dizendo: despertamos!
Depois de um crescendo de tensão e fúria nos contrabaixos, novamente o tema principal deste movimento retorna aos 43:08 com alusões a partes da canção, depois reinicia-se brevemente, terminando o movimento com os mesmos dedilhados com que iniciou o movimento.
4. Tormenta. (Allegro non troppo)
Беснуйтесь, тираны! (“Ódio aos tiranos!“)
É com essa canção que começa o quarto movimento, anunciado e repetido nos trombones. Seus versos descrevem a ira do povo contra os tiranos, que tratam os trabalhadores de forma selvagem e cruel. Apesar das correntes, prisões, e das feridas das botas sobre seus corpos, os espíritos destes homens são indomáveis. E que caiam aqueles que tremem diante dos tiranos! Pois os corajosos não trocam seus direitos por nada, e não temem feridas no corpo. É melhor temer a escravidão do que a morte! A terra está vermelha de sangue expelido, em todos os lugares batalham irrompem. Com fogo o levante dos trabalhadores abraçam todos os países! Vergonha e morte aos tiranos!
Esse movimento vai descrever a revolução de 1905 no Império Russo, e outros acontecimentos ligados a ela, como a revolta dos marinheiros do Encouraçado Potemkin em Odessa.
Esse movimento, tal como o primeiro, será cheio de conflitos entre os naipes de instrumentos. Mas, agora, estão explícitos. É o advento de uma revolução. Os metais, embora inicialmente entoaram “Ódio aos tiranos!”, serão os repressores na maior parte do tempo, em vários momentos, aliados às caixas e tímpanos, tentarão calar e reprimir a movimentação das cordas e madeiras. (vários momentos entre 45:47~46:05) Excetuando quando vez ou outra tocarem alguns temas ou melodias de canções, como quando aos 46:14~46:18 novamente um trompete toca o motivo de “Ódio aos tiranos!”. E aos 47:45 o tema de “Descubram suas cabeças” retorna nos trombones. É uma verdadeira luta de classes e de naipes!
Aos 48:25 os contrabaixos entram no embalo da famosa Varshavianka (canção que ganhou versões em vários países e revoluções diferentes, como a famosa A las barricadas da Revolução Espanhola), e temos uma espécie de marcha e mobilização geral. Podemos interpretar como o povo indo às ruas, tomando prédios, formando os sovietes em São Petersburgo, conselhos deliberativos de operários, que surgem pela primeira vez na história durante esta revolução. É uma canção de força surpreendente, composta justamente na conjuntura do ano de 1905, exprimindo toda a força e sentimento daquele momento histórico. Vale a pena aqui reproduzir seus versos:
Balas do inimigo voam sobre nossas cabeças Forças das trevas nos oprimem sem pudor Nessa batalha, à qual estávamos predestinados Estamos à espera de destinos desconhecidos Ainda assim erguemos, orgulhosa e corajosamente A sagrada bandeira da luta dos trabalhadores Bandeira que luta por todos os povos Por liberdade e por um mundo melhor Para essa sangrenta, sagrada e justa guerra Marchemos adiante, povo trabalhador! Os trabalhadores devem continuar passando fome? Irmãos, até quando permaneceremos em silêncio? Por acaso a terrível visão da forca pode assustar-nos, jovens camaradas? Nessa justa guerra não serão esquecidos Aqueles que honrosamente morrerem pelo nosso ideal! Seus nomes serão entoados em nossos cânticos E serão sagrados para milhões de pessoas! Para essa sagrada, sangrenta e justa guerra Marchemos adiante povo trabalhador! Nós odiamos as coroas dos tiranos E as malditas correntes que martirizam o povo! Os tronos reais estão cobertos de sangue do povo Então banharemos os reis em seu próprio sangue! Morte a todos os nossos malditos inimigos E a todos os malditos parasitas da classe trabalhadora! Vingança sim! Contra os czares e plutocratas! A hora da vitória está cada vez mais próxima! Para essa sagrada, sangrenta e justa guerra Marchemos adiante povo trabalhador!
Seguem-se novas citações de várias canções e motivos que já apareceram antes. São os trabalhadores parando fábricas, navios, trens, indo às ruas, fazendo barricadas, lutando com armas nas mãos pela sua liberdade e emancipação. Pela derrubada do Czar. Por vingança sim, como diz a Varshavianka, pelos seus companheiros brutalmente massacrados. Num clímax dos 51:19 várias canções estão sendo tocadas ao mesmo tempo, quase que polifonicamente, até que aos 51:49 toda a orquestra é embalada por uma mesma melodia triunfante.
A luta de naipes irrompe novamente. São as classes dominantes e o Império Czarista reagindo à mobilização com brutal repressão. O motivo da canção “9 de janeiro” irrompe novamente aos 52:39~53:27, tomando toda a orquestra, num misto de luto e revolta. Trompetes e caixas e tímpanos atacam, seguidas pelas trompas que tentam interromper a melodia das cordas… É a reação das tropas czaristas, lutas nas ruas, barricadas por toda São Petersburgo, milhares de trabalhadores armados, contra cossacos e exércitos imensos… Os trabalhadores revolucionários lutam bravamente, mas muitos caem… Aos 53:28 as caixas, tambores e trompas apertam, são os tiros, violência e repressão infindáveis… É a derrota dos revolucionários… A repressão das caixas e metais silencia toda a orquestra, e em seguida temos novamente o tema da praça. Melodias de luto se seguem…
Um poderoso grave irrompe nas madeiras e percussão aos 56:41. A luta dos oprimidos não acabou. A revolta contra a fome, a miséria, a tirania e a exploração continuam. Outros sopros vão se juntando, a melodia revolucionária ressurge nas trompas, primeiro, timidamente, depois ela vai se espalhando por toda a orquestra, é uma nova revolução irrompendo em toda a sociedade! Senão hoje, em 1905, amanhã, em 1917, mas sua revolta é inevitável e infindável enquanto houver opressão! São os condenados da terra se levantando mais uma vez para lutar por sua emancipação! Vão expropriar os expropriadores! Sinos soam anunciando a irrefreável ira dos trabalhadores e a justiça revolucionária! É a revolução que se aproxima! É a construção de um novo mundo! Viva a revolução mundial dos trabalhadores…
Em memória de todos os que morreram pela negligência deliberada de um governo genocida no Brasil (2020-2021). Faremos os responsáveis pagarem por seus crimes. E a justiça revolucionária prevalecerá.
Dmitri Shostakovich (1906-1975): Symphony Nº 11 in G minor, Op. 103 “The Year of 1905”
Symphony No.11, Op.103 (‘The Year 1905’) in G minor
1. I: The Palace Square (Adagio) –
2. II: The 9th of January (Allegro) –
3. III: In Memoriam (Adagio) –
4. IV: The Tocsin (Allegro non troppo)
Cresci num mundo analógico, do Super-8, VHS, Fita K7, computadores TK-90 e programação em BASIC, longe da ilusória onipresença da internet e dos dispositivos móveis. E, na busca pelo conhecimento e cultura, só restavam os livros e os discos. Nesse mundo, os LPs de música clássica eram objetos de desejos quase intangíveis, os melhores eram importados e economizava-se meses para poder dispor de algumas pérolas do repertório. Para nós, jovens ávidos pela descoberta de novas sonoridades em cada obra, a rádio era uma realidade cotidiana, mas servia apenas ao espírito aventureiro de desbravar horizontes longínquos, já que a contemplação de uma determinada obra, uma vez apreciada, estava condicionada à sua repetição eventual numa grade de programação bastante eclética.
(A Rádio Cultura FM de S. Paulo teve papel importante nessa formação, e deixo aqui meus sinceros agradecimentos a seus colaboradores – especialmente Alfredo Alves – que me ensinaram até a pronúncia dos compositores tchecos)
Mas quando ouvia uma obra interessante na rádio, e queria saber mais sobre a obra, o compositor, sua história, suas outras obras, conhecer mais, o que fazer? Como achar? Bibliografias distantes em alemão, discos a peso de ouro, caríssimas revistas importadas? Não! Haviam as coleções de bancas de jornal!
A mais antiga que conheço foi iniciativa da então Abril Cultural, um braço da Editora Abril: “Grandes Compositores da Música Universal”, lançado em 1968. Uma capa branca, com o nome do compositor em letras garrafais, foi a primeira e única coleção que tenho notícia cujo primeiro fascículo, o de lançamento, foi dedicado a Tchaikovsky. O Concerto no.1 devia ser realmente muito popular a esta época. Em seguida veio Beethoven, Chopin, e daí em diante uma ordem mais característica. As gravações disponibilizadas eram genéricas, oriundas de catálogos obscuros, com intérpretes antigos e registros monaurais, de sonoridade sofrível. Mas o que chamava muito a atenção era o encarte. Sim, o encarte era uma maravilha! Consultores como Souza Lima, Camargo Guarnieri, Edino Krieger, Isaac Karabtchevsky e Diogo Pacheco fizeram desta uma coleção inesquecível. Para leitura.
Faltava, claro, gravações de maior qualidade. Mas o público tinha sido fisgado, era questão de tempo.
Em seguida, já na década de 80, a mesma Abril Cultural, solitária pioneira no gênero, lançou a mais famosa das coleções: “Mestres da Música”. Com cada fascículo lançado quinzenalmente, ela teve 2 edições seguidas – áureos tempos -, uma primeira em 1979 com uma barra colorida emoldurando a parte superior da capa, e outra em 1983 sem as cores e o nome do compositor em maior destaque, apesar das obras e do restante da diagramação se manter. As capas tinham várias cores e atraíam muito mais atenção. Os textos, mesmo não contando com tantas colaborações ilustres como a coleção anterior, eram feitos segundo consultoria do eminente crítico J.Jota de Moraes, o que trazia uma leitura confortável e esclarecedora. As gravações eram de melhor qualidade, pelo menos já em estéreo, mas também de catálogos esquecidos nos fundos das gravadoras, mais baratos e bem genéricos. Alguns intérpretes acabaram se tornando maestros e solistas festejados, outros nunca mais se ouviu falar.
Foi a primeira vez que ouvi Claudio Abbado e Alfred Brendel, por exemplo, mas também nunca mais soube de Hanspeter Gmur, Stanislaw Skrowaczewski ou de Rolf Reinhardt – nomes obscuros até hoje. Entretanto, a coleção deve ter sido um estrondoso sucesso, pois a encontrava em casas as mais diversas em termos de gostos musicais, e mesmo pessoas que não tinham nenhum contato com música clássica possuíam pelo menos um ou dois fascículos.
Mas ainda eram gravações, de forma geral, antigas e de catálogo duvidoso. Na verdade isso não importava muito, pois para esse tipo de coleção, o público era leigo e sua principal tarefa seria a de introduzir ao interessado o mundo da música clássica. E isso ela fez muito bem.
Mas conforme eu ia adentrando esse universo, essas gravações pareciam realmente insuficientes, a rádio já mostrava as primeiras gravações em CD (“gravação digital, com leitura por raio laser”, anunciava o locutor com pleno orgulho da novidade), e esse universo passou a ser mais relevante, deixando as coleções apenas com o mérito do texto, novamente.
Nesse ínterim, no intervalo das duas edições do “Mestres da Música”, chegou ao Brasil em 1983 a representação da editora espanhola Salvat, quebrando o monopólio da Abril de coleções de música clássica em bancas de jornal. A “Enciclopédia Salvat dos Grandes Compositores” foi um marco indelével na história das coleções, trazendo um texto denso, profundo – por vezes ininteligível e prolixo – mas também gravações de altíssimo nível. A editora espanhola tinha acordos com a PolyGram, e disponibilizou registros do catálogo da DG, DECCA e PHILIPS, coisa impensável neste lado do atlântico. Herbert von Karajan, Kurt Masur, Claudio Arrau, Wolfgang Sawallisch, Eugen Jochum e Bernard Haitink eram figuras comuns nos volumes, e, finalmente, comprávamos esses fascículos mais pela gravação que pelo próprio texto. Aliás, o texto também era problemático porque era contínuo, ou seja, você precisava fazer TODA a coleção – que não era pequena – para ter o texto completo. Ele começava num fascículo e terminava em outro. Mas finalmente tínhamos uma coleção de banca de jornal – isto é, acessível economicamente – com grandes registros da era de ouro da indústria fonográfica. Algumas dessas gravações são referência para mim até hoje. A cereja do bolo era o fato da coleção ser disponível em LP e K7.
Não sei exatamente se por alguma questão de concorrência invejosa ou simples lógica de mercado, logo depois, quando ainda “Mestres da Música” mal tinha acabado seus últimos fascículos, a Abril contra-atacou a Salvat com seu último trunfo de coleções de bancas: “Mestres pelos Mestres”, de 1984. Era uma coleção que mantinha um texto discreto, confortável e funcional, editado dos originais da coleção anterior, mas investia na qualidade das gravações, trazendo, pela primeira vez, o intérprete em letras garrafais, acima do próprio compositor. E agora, sim, havia um acordo da Abril com a Polygram, EMI e a CBS (para invejar a Salvat mesmo), lançando pérolas de catálogo a preços totalmente acessíveis.
Por motivos que não saberia descrever com propriedade (talvez o próprio excesso de coleções quase simultâneas, saturando o mercado), a coleção mais promissora da Abril naufragou no meio de sua empreitada, e ela nunca foi lançada na sua totalidade em bancas de jornal, tendo sido anunciado o fim da coleção no vigésimo fascículo. Tenho notícias de fontes remotas (e duvidosas) que a coleção completa foi depois disponibilizada por assinatura – apenas para interessados que já eram assinantes de outros veículos – mas não tenho certeza dessa informação.
O fato é que “Mestres pelos Mestres” foi a última das grandes coleções de bancas que consumimos com grande entusiasmo, não só para conhecer os compositores e as obras, mas também para ouvi-las com grandes intérpretes. Depois, a então renovada Nova Cultural lançou uma bem menos convidativa coleção italiana apenas em fita K-7 (“Clássica – a história dos gênios da Música”, de 1988, que eu saiba teve alcance bem mais modesto), e depois foi a vez da era do CD com o catálogo encalhado da DG no DG Collection, da também espanhola editora Altaya (mas que tinha textos incongruentes, para dizer o mínimo). O canto do cisne, me parece, foi quando a Abril ainda cavalgou nos descampados do CD nos idos de 1998-9 com uma pequena coleção chamada “Grandes Compositores”, em parceria com o grupo TIME-LIFE, acompanhando tendências internacionais. Mas aí já não havia nada além do próprio encarte do CD, sem textos mais densos e biografias mais profundas. Essa, com uma capa de design pífio, uma arte medonha e diagramação nula – apesar das excelentes gravações – , foi o desfecho de uma era de ouro das coleções de bancas.
A próxima geração que de certa forma promoveu o revival desta era de ouro no formato CD – de maneira modesta em termos comparativos gerais – foi da parceria com o jornal Folha de S.Paulo, que lançou três importantes coleções: “Coleção Folha de Música Clássica”, que retomava o formato de biografias suscintas com gravações de baixa circulação – na verdade uma reedição da coleção inglesa Royal Philharmonic Collection, mas com capas neutras bem pouco inspiradoras – e depois “Coleção Folha Mestres da Música Clássica”, essa sim que procurava unir bons textos com bons intérpretes novamente. Usando o mesmo catálogo disponível pela TIME-LIFE anteriormente, foi o mais próximo da experiência proporcionada no “Mestres pelos Mestres”, mas numa era em que a música distribuída pela internet começava a despontar, minguando a experiência da novidade. Uma terceira versava especificamente sobre Ópera (“Coleção Folha das Grandes Óperas”, também uma reciclagem em CD de uma tentativa anterior da Abril no LP) e também trazia gravações antigas de catálogo, encalhes das grandes gravadoras, algumas em registro mono – apesar de boas interpretações.
A Abril, através da equipe da Revista BRAVO!, já no fim do campeonato (e da vida) deu seu último suspiro do gênero lançando, em parceria com uma gravadora alemã chamada NAXOS, um revival da sua primeira experiência: “Grandes Compositores da Música Clássica” (a anterior de 1968 era da “música universal”). O problema era a gravação: a NAXOS se notabilizou como fenômeno de vendas num cenário francamente decadente por disponibilizar gravações baratas com intérpretes desconhecidos, alguns surpreendentemente bons, mas outros de gosto notoriamente duvidoso, em suma: uma loteria. Essa coleção tem exatamente essa característica.
Todas essas empreitadas de uma provável “nova era” das coleções foram definitivamente ofuscadas pelo avanço da tecnologia da distribuição de música pela internet, notadamente por streaming, cuja tendência foi largamente confirmada pelas imensas plataformas do Spotify, iTunes music e demais soluções no gênero. A era do CD já nasceu com seus dias contados. (para melhor explicar esse fenômeno, sugiro o ótimo livro de Norman Lebrecht, “Maestros, Obras-primas e Loucura: a vida secreta e morte vergonhosa da indústria da música clássica”)
Nesse cenário, essas coleções foram cultivadas com bem menos entusiasmos pelas novas gerações de ouvintes – a quem elas se destinavam prioritariamente. Apesar disso, sobrevive o texto de todas elas, já que introduz o leigo neste universo. Mas devo confessar: os textos da Abril da era dourada são ainda os que eu mais gosto.
Para os entusiastas e/ou saudosistas que têm a lembrança do impacto do “Mestres pelos Mestres”, compartilho aqui seus fascículos de minha época de descoberta desses clássicos, que tanto me marcaram. Gostaria de postar todos, mas infelizmente, nem todas as gravações foram lançadas em CD, algumas foram apenas em coletâneas comemorativas gigantes de alguns dos intérpretes, outras nunca foram. A Sonata de Liszt por Lazar Berman, por exemplo, nunca foi lançado em CD nem mesmo na caixa das gravações de Berman pela DG. Mas as que eu consegui reunir, aqui deixo disponibilizado para download, os fascículos escaneados e as gravações, em MP3.
Bach: Cantatas nos.11 (Oratório da Ascensão) & 44
Solistas: Edith Mathis, Anna Reynolds, Peter Schreier, Dietrich Fischer-Dieskau
Regente: Karl Richter
Coro e Orquestra Bach de Munique
Selo: DG (Gravação de 1975) Download Textos do Fascículo Download Disco MP3 320Kbps 122,1Mb
Bernard Haitink foi um maestro excepcional, de envergadura ímpar, mas ao mesmo tempo discreto e bem menos festejado que seus pares da mesma geração, como Bernstein e Karajan. Isso o colocava numa posição privilegiada, a de optar por uma escolha distinta de repertório e leituras altamente pessoais, o mais das vezes avesso ao espalhafatoso e ao verborrágico. Como muitos dos meus colegas do PQP, que neste momento se unem para homenagear um mestre comum, Haitink marcou cada um de nós com gravações que consideramos non plus ultra do repertório sinfônico mais destacado. Apesar de suas afamadas preferências por Mahler, Bruckner e Shostakovich, que estabelecem consenso de excelência dentre tanto apreciadores diletantes como críticos especializados, alguns dos melhores momentos de Haitink foram, para mim, com mestres franceses modernos, em especial Debussy e Ravel. Este último em particular ocupa lugar privilegiado na discografia haitinkiana. Ainda na era do LP, sua versão de 1973 da Rapsódia Espanhola é arrebatadora; para mim a que melhor equilibra a verve rítmica com a clareza das ideias na brilhante orquestração de Ravel. Sutilezas na pontuação das dinâmicas e da exuberante instrumentação fazem deste um registro imperdível. Um Menuet Antique, de feições mais modestas, com Haitink ganha ares de uma nobreza insondável. E que Alborada!
Uma manhã luminosa que enfatiza bem seu caráter gracioso e eloquente. Estas gravações foram lançadas na década de 70 em LPs pela PHILIPS e nenhuma foi relançada em CD, até as séries de relançamentos (PHILIPS DUO) dos anos 90. Haitink inclusive gravou novamente essas obras para lançamento exclusivo em CD, mas o brilho destas primeiras incursões é, para mim, insuperável.
Claro, ao falar de obras orquestrais mais conhecidas de Ravel, como o Boléro e Daphnis et Chloé, não podemos deixar de mencionar que temos ótimas versões paralelas. Mas nestas pequenas jóias menos divulgadas (Valses Nobles, Ma Mère l’Oye), Haitink nos revela um mundo novo, de íntima beleza, em que Ravel desponta como um colorista exímio, de sutileza ímpar. La Valse é estonteante. A orquestra do Concertgebouw em plena forma torna a experiência ainda mais única.
Palavra final: Há muitos bons intérpretes de Ravel, e há Haitink.
Ravel: Orchestral Works Bernard Haitink, Royal Concertgebouw Orchestra
CD1
1.Boléro
2.Alborada del gracioso
3.Rhapsodie espagnole
4.La Valse
5.Pavane pour une infante défunte
6.Valses nobles et sentimentales
CD2
1.Menuet antique
2.Le tombeau de Couperin
3.Ma mère l’Oye
4.Daphins et Chloé: Suite No 2
Fãs de Amaral Vieira, este CD não é de obras de vosso dileto compositor, mas é tão digno quanto. Daniel Wolff é um neorromântico que me lembra muito Jaime Zenamon e Carlos Guastavino (se vocês não conhecem esses dois estão perdendo de ter contato com obras agradabilíssimas, mas caso não gostem de românticos tardios e ultratardios então é bom não escutá-los).
Wolff não lembra Amaral Vieira nem nos estilos emulados nem no porte das obras, mas no cabedal de que dispõe para compor, tal qual vocês poderão ouvir no concerto para clarineta (quem disser que é uma obra água com açúcar, tudo bem, mas é praticamente perfeita em harmonia, melodias e orquestração, ainda que não tenha tanta inspiração nos dois últimos movimentos).
Porém, melhor ainda é quando Wolff toca violão, instrumento no qual tornou-se o primeiro doutor no Brasil. Em sua interpretação do concerto de Radamés Gnatalli não encontro ressalvas – mas deixo para os violonistas fazerem comentários adicionais ou me desmentirem.
Este é um CD que estava na fila de espera há mais de um ano – na verdade, estava desde que me juntei à família Bach.
AS (Ante scriptum).: O Gaudêncio Thiago de Mello mencionado adiante, não é o poeta, é irmão dele (Amadeu Thiago de Mello).
***
Gaudêncio Thiago de Mello: Reflections e Amadeste / Ernesto Nazareth e Daniel Wolff: A terceira face de Ernesto / Daniel Wolff (1967): Concerto para clarineta / Radamés Gnatalli (1906-1983): Concerto à Brasileira n° 4
1. Reflections (A hug for Ayla), Gaudêncio Thiago de Mello
2. A terceira face de Ernesto, Ernesto Nazareth e Daniel Wolff
3. Amadeste, Gaudêncio Thiago de Mello
Concerto à brasileira nº 4, Radamés Gnattali
4. Allegro Moderato
5. Lento
6. Ritmado
Concerto para clarinete e orquestra de cordas, Daniel Wolff
7. Allegro moderato
8. Expressivo e cantabile
9. Allegro ritmado
Daniel Wolff, violão
Gary Dranch, clarineta
Orquestra de Câmara da ULBRA
Tiago Flores, regência
Erik Satie foi um importante precursor dos movimentos musicais do século passado. Foi um vanguardista. Influenciou Ravel e Debussy com sua música de paisagens estáticas. A música para Satie era uma mobília, um móvel que se adequa ao ambiente. A vida continua em seu fluxo e a música fica lá, parada, sem que a percebamos. Os efeitos psicológicos são notáveis. Por exemplo, enquanto estou aqui em casa lendo, esperando o tempo passar, o compositor é minha companhia. Mas é como eu não estivesse ouvindo nada. As pessoas passam no corredor, próximo ao meu apartamento, os carros buzinam, grades tilintam, chaves penduricalham; crianças gritam. Mas parece que não ouço nada. As miniaturas musicais de Satie são como rios marulhentos. Não percebemos a sua “viagem”. Todavia, às vezes, o seu ronco suave se expressa e aí lhe damos atenção. Satie destinava essa intenção à sua música. Queria que os ouvintes encarassem dessa forma aquilo que escrevia. Enquanto as sinfonias e concertos constituem universos, “teses”, “discursos eloquentes”, as peças de Satie são pequenos quadros, crônicas doces, suaves, “vagabundas”, miniaturas semimortiças. Mas, como é boa essa música!
Erik Satie (1866-1925) – Les Fils des Etoiles
01. Prélude du 1er Acte – La Vocation – Thème décoratif_ La nuit de Kaldée
02 – 1er Acte – La vocation
03 – Prélude du 2e Acte – L’Initiation – Thème decoratif_ La salle basse du Grand
04 – 2e Acte – L’Initiation
05 – Prélude du 3e Acte – L’Incantation – Thème decoratif_ La terasse du palais
06 – 3e Acte – L’Incantation
Primeiramente, quero afirmar que há motivos de sobra para que você baixe e saia ouvindo esse CD imediatamente. (1) Temos a presença de Evgeny Mravinsky, um dos maiores e melhores regentes do século XX. Se a obra de Beethoven possui sisudez, seriedade, com Mravinsky essa característica chega a paroxismos. (2) A Sinfonia no. 1 é o trabalho de um Beethoven ainda jovem, mas capaz de proezas. Vemos nela todo rigor e maturidade que seria revelada na Terceira, na Quinta, na Sétima e na Nona, sendo que esta última é a vida transfigurada, a subida ao paraíso. A Sinfonia No. 1 possui belos momentos de reflexão, de seriedade e alegria. (3) Já a Terceira Sinfonia é um tratado moral, um livro cuja metafísica é o próprio mundo interior de Beethoven. A Marcha Fúnebre do segundo movimento sugere seriedade, meditação, crença no homem e toda sorte de idealismos possíveis. Tudo isso sendo construído com paisagens de silêncio. Música medíocre nos leva ao barulho, aos piores instintos; a boa música, por sua vez, nos remete ao silêncio. Convido você a baixar sua cabeça e meditar com Beethoven. Bom deleite!
Ludwig van Beethoven (1770-1827): Sinfonia No. 1, Op. 21 e Sinfonia No. 3, Op. 55 (Eroica) – Mravinsky
Sinfonia No. 1 in C major, Op. 21
01. Adagio molto: Allegro con brio
02. Andante cantabile con moto
03. Menuetto: Allegro molto e vivace
04. Adagio; Allegro molto e vivace
Sinfonia No. 3 em Mi bemol maior, Op. 55 – “Heróica”
05. Allegro con brio
06. Marcia funebre: Adagio assai
07. Scherzo: Allegro vivace
08. Finale: Allegro molto
Já se passaram dez anos desde que postei esta integral dos Concertos de Prokofiev com a direção do Neeme Järvi. Muita coisa aconteceu neste meio tempo, na época nem imaginava que estaria atualizando estes links em 2021. Também não passava pela cabeça de ninguém que sofreríamos uma pandemia nestas proporções em que estamos sofrendo atualmente. Meus cabelos ainda não tinham ficado brancos, enfim, são dez anos vivendo em uma realidade totalmente diferente.
O colega René Denon pediu estas gravações e pedi um tempo para encontrá-las, pois lembrava do impacto que senti quando as ouvi pela primeira vez. Curiosamente, encontrei-as rapidamente.
Estou devendo estes concertos desde o começo do ano, e confesso que por algum motivo acabei deixando-os de lado. Pois bem, aí estão a primeira parte dos Concertos para Piano de Prokofiev com o Neeme Järvi (lembrando que postei as sinfonias com este mesmo regente no começo do ano).
Como hoje é quinta feira e ficamos quase vinte e quatro horas fora do ar, resolvi fazer uma postagem rápida, daquelas vapt-vupt, aproveitando que o arquivo já estava no megaupload há pelo menos dez meses, aguardando pacientemente sua vez.
O solista é o excelente Boris Berman, um especialista na obra de Prokofiev.
01 – Piano Concerto No. 1 in D flat major Op. 10 – Allegro brioso
02 – Andante assai
03 – Allegro scherzando
04 – Piano Concerto No. 4 in B flat major Op. 53 – I. Vivace
05 – II. Andante
06 – III. Allegro moderato
07 – IV. Vivace
08 – Piano Concerto No. 5 in G major Op. 55 – I. Allegro con brio
09 – II. Moderato ben accentuato
10 – III. Toccata. Allegro con fuoco
11 – IV. Larghetto
12 – V. Vivo
Boris Berman – Piano
Royal Concertgebow Orchestra
Neeme Järvi – Conductor
Pois bem, senhores, concluindo esta caixa, aqui estão os dois Concertos para piano mais famosos de Prokofiev, o Segundo e o Terceiro. É difícil dizer qual deles é o meu preferido, creio que na verdade gosto dos cinco, mas esta introdução melódica do Segundo é de partir os corações mais duros.
Horácio Gutiérrez me era desconhecido até então, mas o rapaz é um assombro. É um virtuose de mão cheia que conhece muito bem seu instrumento, e não se deixa pegar nas armadilhas que Sergey colocou, e não são poucas. Os clientes da amazon foram quase unânimes em dar cinco estrelas à esta gravação, e com razão.
E porque hoje é sábado, usando uma frase muito usada no blog do nosso amigo Milton Ribeiro, vou deixá-los por aqui, e sair para aproveitar o dia.
Boa audição.
Serguei Prokofiev – Piano Concertos nº 2 in G Minor, op. 16, Piano Concerto nº3, in C Major, op. 26
01 – Piano Concerto No. 2 in G minor Op. 16 – I. Andantino – Allegro
02 – II. Scherzo. Vivace
03 – III. Intermezzo. Allegro moderato
04 – IV. Finale. Allegro tempestuoso
05 – Piano Concerto No. 3 in C major Op. 26 – I. Andante – Allegro
06 – II. Tema. Andantino – Variations 1-5 – Tema. L’istesso tempo
07 – III. Alegro ma non troppo
Horácio Gutiérrez – Piano
Royal Concertgebow Orchestra
Neeme Järvi – Conductor
Esta postagem abaixo de PQPBach foi revista e ampliada para a celebração dos 140 anos de nascimento de Béla Bartók. Acredito que em 2007, ano da postagem original, havia apenas um CD simples com algumas das gravações de Bartók por Andor Foldes pela Deutsche Grammophon. O resto estava disponível apenas no vinil. Mais recentemente a gravadora soltou, remasterizadas, todas essas gravações que hoje ocupam um CD triplo.
As obras para piano de Béla Bartók têm um pé na tradição e um pé na modernidade: o material temático é quase sempre influenciado pela música folclórica de vários povos da Europa central e oriental, enquanto a escrita pianística usa procedimentos típicos do século XX, com destaque para os clusters.
Um cluster, ou agrupamento de tons, é um acorde musical que compreende (dois ou tipicamente três ou mais) tons adjacentes, ou seja, teclas adjacentes, que podem ser tocadas com os dedos ou, em alguns casos, com socos ou mesmo cotoveladas no teclado, algo que os músicos de jazz já faziam em seus improvisos desde tempos imemoriais.Não por acaso, os precedentes são em sua maioria norte-americanos, como o pianista Scott Joplin e o compositor Charles Ives. Na Europa, Debussy usou clusters para representar os sinos da catedral em um célebre prelúdio para piano. Mas esses três usavam esse tipo de sonoridade de forma eventual. Quem batizou a técnica e usou sequências deles de forma explícita foi o norte-americano Henry Cowell, também um dos introdutores da ideia de “piano preparado”.
Béla Bartók conheceu Henry Cowell em dezembro de 1923. No ano seguinte, ele escreveu para Cowell perguntando se ele poderia utilizar tone clusters sem ofender o colega. A partir daí, ele entraria em um fértil período de escrita pianística, com algumas de suas principais obras para piano finalizadas em 1926: a Sonata, a Suíte Out of Doors e o 1º Concerto para Piano e Orquestra.
O uso mais óbvio dos clusters, por seu caráter dissonante, é em movimentos rápidos e percussivos, com o teclado sendo martelado em andamentos como Presto ou Pesante, como nos exemplos abaixo, que testemunham a influência de Cowell sobre Bartók.
Fotos: clusters na suíte Out of doors. À esquerda, clusters pesados (pesante) no começo do 1º movimento e à direita clusters lentos e misteriosos no 4º movimento – Música Noturna.
Outra forma de utilizar os clusters é com a mão esquerda tocando, delicadamente, sequências dissonantes que fazem parte da criação do clima de “Música Noturna”, título do 4º movimento da Suíte Out of Doors. Boa parte dos movimentos lentos da fase madura de Bartók também recebem esse nome de música noturna: por exemplo os movimentos centrais do 2º Concerto para Piano e do Concerto para Orquestra, sem falar em várias cenas do Mandarim Miraculoso, talvez o mais noturno de todos os balés, por lidar com o tema da prostituição, que aliás causou grande escândalo nos anos 1920.
Pano rápido e as palavras de PQP em 2007: Não vou reescrever o que já está pronto sobre este espetacular CD de um pianista que aprendeu a tocar Bartók com o próprio. Atenção: a gravação é de 1955, mas a qualidade do som parece digital.
Texto de Melvin Yap
Bartók is probably most famous for his Concerto for Orchestra and his piano and violin concertos. As a consequence, many of the works on this disc will probably be unfamiliar to most listeners out there.
This recording belongs to DG’s Dokumente series and as such, is not a recent recording. It was recorded in 1955 in monophonic sound. However, since the whole disc is a piano recital, the monophonic sound isn’t that serious a drawback.
Who was Andor Foldes anyway? From the documentation supplied with the disc, I gathered that he had quite an illustrious bevy of piano teachers. He studied the piano with Ernst von Dohnányi and first met Bartók at the age of fifteen in 1929. They later became close friends until Bartók’s death. His intimate relationship with the composer himself hints that he probably is eminently qualified to interpret Bartók’s work and this is borne out by the quality of the recital.
The Mikrokosmos are teaching pieces that range from beginners’ pieces to works of exuberant virtuosity. Foldes is never condescending and he invests these pieces with detail and meticulous precision. I believe that Foldes hardly deviates from the strict dynamics and tempo markings that Bartó The same approach can be seen in the other pieces too. Rather than playing these works coldly and mechanically, as some pianists are apt to do, Foldes strives for emotion and expression. He is technically brilliant but never allows the technical aspect of a work to overshadow its intrinsic artistic qualities. This is one of the most atmospheric recordings I’ve ever heard and it is not hard to imagine the pianist playing right before you.
There’s plenty of exciting moments in this disc, for example in the last part of the Suite Op.14. Percussive, almost overflowing in a kaleidoscope of sound but always coherent and imaginative, the playing is a delight. Nor are the slower parts especially boring. Foldes has a way of mulling over the slower bits in an interesting sort of way so that you are enlightened rather than irked.
Despite its vintage, the sound of this disc is perfectly acceptable and probably acoustically superior to many of our so-called digital recordings. This is not a disc for everybody but it should be rewarding for any serious collector of Bartók or piano music.
Béla Bartók – Peças para Piano
CD 1
1–17 For Children, Sz.42 (BB 53): Books I & II (excerpts)
18–20 Sonatina, Sz.55 (BB 69)
21–26 Mikrokosmos, Sz.107 (BB 105): Book IV (excerpts)
27–33 Mikrokosmos, Sz.107 (BB 105): Book V (excerpts)
34–44 Mikrokosmos, Sz.107 (BB 105): Book VI (excerpts)
45–50 For Children, Sz.42 (BB 53): Book III (excerpts)
51–54 For Children, Sz.42 (BB 53): Book IV (excerpts)
55–56 Two Elegies, Sz.41 (BB 49)
CD 2
1–6 Six Romanian Folk Dances, Sz.56 (BB 68)
7 Fantasy II (No. 3 of Four Piano Pieces, Sz.22, BB 27)
8–14 Seven Sketches, Sz.44 (BB 54)
15 Improvisations on Hungarian Peasant Songs, Sz.74 (BB 83)
16 Fifteen Hungarian Peasant Songs, Sz.71 (BB 79)
17–19 Sonata for Piano, Sz.80 (BB 88)
20–22 Three Rondos on Hungarian Folk Tunes, Sz.84 (BB 92)
23–24 Romanian Christmas Carols, Sz.57 (BB 67)
CD 3
1–4 Suite, Sz.62 (BB 70)
5–9 Out of Doors, Sz.81 (BB 89)
10–15 Nine Little Piano Pieces, Sz.82 (BB 90)
16–26 Ten Easy Piano Pieces, Sz.39 (BB 51)
27–29 Three Burlesques, Sz.47 (BB 55)
30 Allegro barbaro, Sz.49 (BB 63)
Esta foi a última postagem que nosso querido Ammiratore deixou agendada antes de falecer, no último 6 de abril. Hemos de completar, oportunamente, sua série da obra completa de Verdi, projeto a que se dedicava duma forma muito apaixonada. Por ora, rendemos nossa homenagem ao amigo, que também deixou imensas saudades cá conosco.
ooOoo
TREDICI – REGINA VITTORIA E “I MASNADIERI”; “BIETIFOL”
Após as primeiras representações de Macbeth, Giuseppe no auge dos seus 33 anos, volta-se ao compromisso assumido com Benjamin Lumley (aqueeele empresário inglês do Her Majesty’s Theatre, o London Theatre). Uma vez em Milão, Verdi começa a trabalhar com seu fiel aluno Emanuele Muzio, o mestre mostrava-se impaciente, havia muito o que fazer. Os dois, a esta altura, moravam no mesmo endereço. Verdi elaborava a nova ópera e Muzio começou a reduzir Macbeth para canto e piano, cada um estava ocupado em seu escritório. “I masnadieri” foi a ópera escolhida, baseado em “Die Räuber” (os ladrões) de Friedrich von Schiller com libreto do grande amigo de Verdi: Andrea Maffei (na verdade ele foi um escritor bem mais reputado que Piave ou Solera mas que não possuía praticamente qualquer experiência de Teatro), seria esta a sua décima primeira ópera. O contrato com Londres havia expirado no período em que ficou doente, então agora ele estava recuperado e pronto para propor um novo contrato, Verdi dera a boa notícia a Lumley já em dezembro de 1846. “I masnadieri “ na verdade já estava com a composição adiantada quando retomou as negociações com Lumley.
Jenny Lind (1820-1887) O Muzio não pegava
Nas trocas de cartas com o empresário ele ficou muito animado ao saber que a principal atração prevista para o espetáculo de Londres seria a sueca Jenny Lind, uma soprano leve “soprano leggero” de um virtuosismo quase lendário, desde sua infância ela era conhecida como “o rouxinol” ou “la stella del nord”. Sobre a mítica “estrela do norte” o bom contador Muzio a descreve para Barezzone e demonstra um senso crítico desenvolvido nos deixando um valioso testemunho, no qual as qualidades do canto parecem chocar-se com as físicas. A voz, áspera por natureza, curvou-se admiravelmente a todos os truques da agilidade, gorjeando e vibrando sem rival, o corpo, por outro lado, foi descrito como “o rosto um pouco feio e duro, o nariz enorme e igualmente as mãos e os pés, cor pálida”.
Benjamin Lumley (1811-1875)
Depois de acertar os detalhes do contrato com Lumley , Verdi e Muzio partiram para Londres no final de maio de 1847. O mestre estava ótimo de saúde e não se furtou do compromisso em terras longínquas. Em Londres a notoriedade do maestro havia se consolidado. Suas obras estavam sendo montadas com muito sucesso nos palcos ingleses (“Lombardi“, “Nabucco” e “Ernani” estavam sendo representados). O colunista William Weaver escreveu, em 1846, no semanário “Illustrated London News” esta descrição a respeito do mestre italiano: “Neste número, oferecemos aos nossos leitores um perfil da grande estrela da música contemporânea – Guiseppe Verdi – de cujas criações o destino da ópera agora parece depender, desde que os grandes mestres, cujas obras dominaram a cena da ópera italiana nos últimos trinta anos, Rossini, Bellini, Donizetti, deixaram de compor suas magníficas criações; um pela idade avançada e esgotamento, outro para morte prematura e o terceiro, infelizmente, para um destino ainda mais terrível: a perda da razão. Foi preciso muito zelo para explicar isso a Verdi que ele, agora, era o único representante ativo da ópera italiana, mesmo aos trinta e dois anos…. embora pareça ser bem mais maduro. As marcas de preocupação e doença, e de uma profunda reflexão, são visíveis em seu rosto. Ele vive quieto e retraído; sua mente ativa, por outro lado, está sempre ocupada. Verdi dedica muito de seu tempo aos estudos literários e musicais.”
Giuseppina Strepponi al tempo di Macbeth
No dia 3 de junho, Muzio chegou a Londres, “só e sem o Maestro que ficou em Paris”, Muzio levou o trabalho concluído, exceto a parte da orquestração (era uma prática padrão na época que a orquestração fosse concluída durante os ensaios para melhor se adequar). Outra razão para a conclusão da orquestração em Londres foi descrita por Gabiele Baldini em “A História de Giuseppe Verdi” que o compositor queria primeiro ouvir “la Lind” e modificar seu papel para se adequar exatamente ao belo canto da “la stella del nord”. No entanto, uma “fofocaiada” tinha caído nos ouvidos de Verdi: dizia-se que Lind não poderia estar presente nem estava disposta a aprender novos papéis e, portanto, Muzio foi enviado através do Canal da Mancha à frente do compositor, que esperava por uma garantia de que a soprano estava em Londres e disposta a prosseguir. De Londres, Muzio foi capaz de dar essa garantia Verdi, informando-o que Lind estava pronta e ansiosa para ir fazer o trabalho. Tudo não passava de notícias maldosas. Em Paris o músico queria ficar um pouco na privacidade e não se pode deixar de pensar que um dos motivos por ter ficado na capital francesa era também a vontade de rever e matar saudades da sua querida Strepponi, que já estava na cidade há algum tempo, faziam meses que não se viam. Afinal, namorar é muito bão né? Após a confirmação do fiel assistente Verdi continuou sua viagem, cruzando o Canal em 5 de junho.
Verdi in “London News” 1846
Nosso Emanuele escreve notícias à Barezzone deslumbrado que estava com a cidade grande, do estranho e do imenso, que se justifica já que ele estava em sua primeira grande viagem no exterior. Londres é a descoberta de uma aglomeração “tão vasta como o mar”, a descoberta da multidão, da vida mecanizada que começa a pressionar as massas do Ocidente. “Que caos Londres é! Que confusão! Paris não é nada em comparação. Gente chorando, muitos mendigos, uma espessa névoa cinza flutuando em todo céu, homens a cavalo, em carruagens, a pé, e todos gritam como se estivessem condenados. Meu caro Sr. Antonio , Milão não é nada; talvez Paris é algo comparada a Londres; mas Londres é uma cidade única no mundo !”
O público que frequenta teatros e salas de concerto parece-lhe muito competente e preciso nos seus julgamentos. “Os franceses dizem que os ingleses não entendem nada de arte; isso é um erro que os franceses espalharam … Os ingleses nunca, jamais, receberam com indiferença um “Barbeiro de Sevilha” como em Roma ou um “Guilherme Tell” como em Paris … Seu entusiasmo não é entusiasmo de convenção, eles o manifestam, como o provam, razoavelmente as atuações dos dois teatros da cidade (Covent Garden e Her Majesty’s Theatre), a um grande número de concertos, e em todo o lado encontrei um público atento e inteligente.
Luigi Lablache il primo Massimiliano
Verdi já estava em Londres qundo o baixo Lablache lhe trouxe um convite da jovem Rainha Vitória, que queria conhecê-lo pessoalmente, a soberana havia marcado uma data para ser encenada a nova ópera de Verdi, seria o dia do fechamento do parlamento, “uma das maiores solenidades diplomáticas da Inglaterra”. Numa apresentação de “Norma” naquela temporada, com Lind, deu no “Times”: “A Rainha e o Príncipe Albert compareceram; mas houve um personagem de importância muito diferente, Giuseppe Verdi, que veio montar sua nova ópera “I masnadieri” para o “Her Majesty’s Theatre”. Temos todos os motivos para acreditar que o compositor mais popular da Itália também terá um sucesso em nosso palco que será um presente para ele e uma dupla glória para a Inglaterra. A chegada de Verdi causou grande sensação em Londres; na noite passada, ele compareceu à apresentação em uma “loggia” (uma espécie de balcão reservado) do teatro bem em frente à rainha. A notícia se espalhou imediatamente por todo o teatro de que Verdi tinha vindo, e imediatamente todos os olhos, desde o mais baixo do povo até os Lordes e a própria Rainha, devoraram o pobre Verdi com seus binóculos.” Na verdade, Lumley, como estrategista muito habilidoso, conseguiu obter alguma publicidade da chegada do maestro pelo menos enquanto ele estava no salão. E Verdi freqüentemente ia aos concertos do Teatro de Sua Majestade para aprender sobre as possibilidades dos cantores, do coral, músicos e a funcionalidade do palco.
L’incontro fra Verdi e Mazzini a Londra
O Covent Garden, concorrente teatro de Lumley, no dia 19 de junho apresentou “I due Foscari“, entre o público estava o exilado Giuseppe Mazzini, para aplaudir essa peça tão humana do exílio, “o apóstolo da liberdade” da Itália, um dos mais temidos e ao mesmo tempo o mais procurado pela polícia austríaca. A Inglaterra vitoriana, apesar de seus contrastes sociais, havia recebido com liberalidade exilados políticos de várias origens (Karl Marx chegaria em agosto). Mazzini, escrevendo para sua mãe após o “Foscari”, informou-a de que tinha “visto o compositor Verdi”.
O jovem maestro, no fundo, gostava da cidade: “não é uma cidade, é um mundo” (escreveu a Emília Morosini), “e ficamos maravilhados e desanimados quando, entre tantas coisas magníficas, se conhece as Docas. Quem resiste a essa nação!” Ele se surpreendeu com a beleza das ruas, as riquezas acumuladas, os arredores e as vilas próximas à metrópole. Não muito, porém, os diversos costumes dos habitantes, e muito menos o clima, que ele definiu como “horrendo”, fumaça, nevoeiro, o cheiro de carvão que o deprimia e o impedia de apreciar as belezas de um lugar que de outra forma seria magnífico (“Oh, se houvesse o céu de Nápoles aqui, acho que seria inútil desejar o paraíso”, disse ele a Appiani). Até mesmo o alojamento, “Liliputian”, pequeno, embora confortável:”Emanuele encontrou para mim um alojamento tão pequeno que não posso mover: apesar disso é muito limpo, assim como todas as casas de Londres.”
A descrição de Muzio, prolixo, avesso a poluição, o frio e o vento, tem a precisão de um relatório barométrico. “De manhã na hora certa, isto é, antes das 7 horas, o ar está melhor; mas entre as 7 e as 8 todas as fogueiras e todas as chaminés das grandes fábricas que lá estão são acesas; e andam à volta do Tamisa uns cinquenta barcos a vapor, e depois todas as chaminés das casas soltam uma fumaça que deixa o ar muito pesado. Ontem quis observar todas as mudanças que o clima fez ao longo do dia; Observei que pela manhã, assim que o sol nasceu, um grande nevoeiro se ergueu do Tamisa; então choveu oito vezes ao longo do dia (sempre com vento) e oito vezes o sol foi visto; o Mestre ficou com dor de garganta e resfriado, como eu também paguei, e como todos os estranhos que vêm aqui o pagam, mas agora ele está bem … mas este ar úmido e pesado reage muito em seu sistema nervoso e isso o torna mais mal-humorado e melancólico do que o normal.”
Talvez para Muzio e para o Maestro o verdadeiro sol só tenha saído depois de 22 de julho, data em que a ópera subiu ao palco e causou “furor”, segundo Muzio, o fiel correspondente do … “giornale il Barezzone”, “Do preludio até o final não houve nada além de aplausos, gritos, chamados e repetições. O próprio Maestro conduzia a orquestra sentado em um banco mais alto do que todos os outros e com a batuta na mão. Ainda vazio o teatro só nós e os músicos da orquestra, ouvíamos um aplauso contínuo do lado de fora do Teatro que durou um quarto de hora. Eles ainda não haviam terminado de aplaudir quando em seus locais chegaram a comitiva da Rainha e do Príncipe Albert, sua consorte, a Rainha Mãe, e o Duque de Cambrige, tio da Rainha, o Príncipe de Gales, filho da Rainha, e todos os da família real e uma infinidade de senhores e duques, que não acabavam mais de entrar, muitos nobres. Às quatro e meia a porta do povo se abriu e as pessoas irromperam no teatro com uma fúria que eu nunca vi. Era um espetáculo novo para Londres, e Lumley soube cobrar muito bem, a entrada do teatro custou 6000 liras … após o término festejou-se muito o Maestro, foi chamado ao palco, sozinho e depois com os cantores, atiraram-se flores a ele e só se ouvia: viva Verdi, “bietifol”.
Her Majesty s Theatre per la prima dei Masnadieri la regina Vittoria con il consorte il duca di Wellington e Luigi Napoleone
Mais cauteloso e realista, Lumley, dirá que “correu bem, e sem ter causado furor, convidei um compositor italiano, de boa fama para escrever uma ópera especificamente para o meu teatro e para supervisionar pessoalmente a encenação. Eu não poderia ter feito mais para agradar os amantes da música italiana, ansiosos por ouvir novos trabalhos. Infelizmente o libreto do Sr. Andrea Maffei foi construído da forma como costuma acontecer no caso de adaptações de dramas estrangeiros para fins da ópera italiana, ruim.” Mais definiu, inexorável o julgamento de Sua Majestade, que anotou em seu próprio diário ao retornar do Teatro: “Nesta nova ópera de Verdi, inspirada em “Die Rauber”de Schiller, achei a música muito comum, nada de novo. Apreciamos os cantores, a requintada Jenny Lind, o barítono Filippo Coletti, o tenor Ítalo Gardoni, o baixo Luigi Lablache está gordo demais….”
Andrea Maffei (1798-1885)
Interessante como eram contraditórias as opiniões, sobretudo dos jornais “especializados”, os amigos do blog podem dar uma bela conferida: o libreto de Maffei recebeu elogios do “Times”, enquanto o “Morning Post” e o “Illustrated London News” trataram Verdi com expressões que o colocaram acima de Meyerbeer “e de outros compositores da escola romântica alemã”. Ao contrário da opinião de “Ateneu”, que rebaixou o mérito da ópera a ponto de julgá-la “a pior que já foi executada em nosso tempo pelo Her Majesty’s Theatre. Verdi é definitivamente rejeitado. O campo para um compositor italiano permanece aberto”.
Em todo caso, o público não teve nada além de reações positivas, até mesmo para a confissão do próprio Lumley: “O teatro estava incrivelmente cheio na noite da primeira apresentação. A ópera recebeu, apesar do fraco libreto, em todas as aparições um sucesso triunfal para o compositor e cantores, foram dirigidos as maiores homenagens do povo.” Na verdade, Lumley honra o mérito profissional de Verdi; que, aliás, trabalhou em ensaios “exaustivos”.
O Enredo
Melodramma tragico “in quattro atti”, de Giuseppe Verdi para um libreto de Andrea Maffei, baseado em “Die Räuber” de Schiller.
Estreia: Londres no Teatro Her Majesty em 22 de julho de 1847, com a condução de Verdi nas duas primeiras performances.
Um solo bonito e triste de violoncelo, escrito expressamente para o violoncelista principal, Piatti, no Her Majesty’s Theatre, constitui um breve mas eficaz prelúdio em que o tema do canto da saudade é resumido.
Local: Alemanha
Época: entre 1755 e 1757
Ato 1 Cena 01: Uma taverna na fronteira da Saxônia
A ópera começa numa taberna onde Carlo está absorvido com a leitura de Plutarco que fala dos grandes homens da Antiguidade. Durante um intervalo de seus estudos na Universidade de Dresden, Carlo, o filho mais velho e favorito do Conde Massimiliano Moor caiu entre ladrões, literalmente. Ele tornou-se um membro de uma gangue notória de salteadores que aterrorizam a comunidade local por roubo, extorsão. Em uma ária dupla formalmente convencional cuidadosamente elaborada com coro, Carlo medita sobre sua terra natal distante e sua amada Amalia (o belo andante “O mio castel paterno” da faixa 03) Carlo saiu de casa para estudar em Dresden. Ele está aguardando a resposta de uma carta que enviou a seu pai pedindo perdão pelos seus delitos recentes. O jovem é nobre de espírito, não apenas por nascimento, lamenta não ter ainda recebido o perdão do conde. Rolla e os outros ladrões chegam com a esperada resposta do Conde. Em vez de perdão, chega uma carta de seu irmão Francesco, que reafirma sua proibição de retorno à pátria paterna. A alegria de Carlo logo se transforma em tristeza, e, em seguida, em raiva, como ele descobre que a carta não é de seu pai, mas de seu irmão mais novo, Francesco, que avisa para ele não voltar para casa porque, longe de Carlo ser perdoado, o velho conde tem a intenção de puni-lo e deixá-lo longe. Os ladrões confortam Carlo e o elegem como chefe. Ele e seus amigos decidem se tornar bandidos e fazem um juramento de irmandade de sangue, na cabaleta “Nell’argilla maledetta” (faixa 05). . Assim, quando os seus companheiros o procuram para formar um bando de ladrões, ele aceita assumir o comando.
Cena 02: Uma sala no castelo de Massimiliano
Uma rápida mudança de local é efetuada para uma segunda ária dupla, a partir desse momento, a obra desmascara as maquinações de Francesco, um Caim que deseja a ruína de seu irmão e quer se apoderar do título hereditário, de quebra também quer a namorada de Carlo, Amalia. O quadro passa-se no castelo do Conde onde Francesco revoltado por ter um lugar secundário nas intenções do seu pai. Pretendendo que o irmão se mantenha afastado destruíra a carta que ele escrevera para o pai substituindo-a por uma carta falsa de sua autoria. Francesco está felicitando-se por ter interceptado a carta do seu irmão direcionada a seu pai, sabendo que Massimiliano certamente teria perdoado Carlo se ele tivesse recebido. Agora, apenas o idoso enfermo Conde fica entre Francesco e o título familiar e propriedades. Ele desenvolveu um plano para acelerar a morte de seu pai, no anguloso sostenuto Andante, “La sua lampada vitale” (faixa 07), Francesco ameaça apressar o fim da vida do pai. Ele então ordena que Massimiliano seja informado da morte de Carlo na batalha, na esperança de que o choque e a dor acabem com o velho. É assim que chama Arminio, o intendente, a quem ordena que se disfarce e que vá anunciar ao Conde a morte do filho mais velho. Em uma cabaleta vigorosa “Tremate, o miseri!” (faixa 09), ele espera ansiosamente assumir o poder.
Cena 03: Um quarto no castelo
Scene dalla prima dei Masnadieri a Londra
Depois de um prelúdio em que solos dos sopros são proeminentes, Amalia olha para o adormecido Massimiliano e pensa nas alegrias do passado em “Lo sguardo avea degli angeli” (faixa 11). A jovem lamenta a esperança perdida com a condenação de Carlo pelo pai, mas não guarda qualquer rancor do Conde, por respeito para com a sua idade e autoridade. Mas Carlo não sai dos seus pensamentos. A ária foi claramente escrita para a “prima donna” Jenny Lind é muito mais ornamentada do que o modelo verdiano usual e para acomodar os floreios e improvisos da “estrela do norte”, uma ária formalmente muito mais discursiva e linda.
Massimiliano acorda e, em um curto movimento de dueto com Amalia, “Carlo! io muoio” (faixa 13), lamenta morrer sem ver seu filho predileto. Amalia e Massimiliano choram a ausência de Carlo e bem-dizem a morte
Armirio, Massimiliano e Amalia
que os libertará das desgraças terrestres. Armínio e Francesco entram para dar a falsa notícia da morte de Carlo. Francesco apresenta Arminio, que vem sob um disfarce, e narra ao Conde a morte do filho ausente – uma mentira contada com todos os pormenores convenientes às pretensões de Francesco: antes de morrer, Carlo teria deixada escrita uma mensagem (com o seu próprio sangue) na lâmina da sua espada, libertando Amalia de todos os compromissos para com ele e aconselhando-a a casar com Francesco. Essa revelação precipita o quarteto “Sul capo mio colpevole” (faixa 15): Massimiliano está ao mesmo tempo arrependido e furioso; Amalia (acompanhada por Armínio) oferece consolo religioso, Francesco espera ansiosamente seu triunfo. É um choque de emoções poderosamente eficaz e termina quando Massimiliano, aparentemente sem vida, cai no chão, sendo dado como morto – o que deixa Francesco exultante por poder assumir finalmente a sucessão.
Ato 2 Cena 01: Um cemitério adjacente à capela do castelo Vários meses se passaram desde a cena anterior, rapidamente Francesco toma o controle e o poder no castelo. Amalia visita o túmulo de Massimiliano procurando refúgio durante o banquete dado por Francesco para celebrar a sua subida ao poder e em um simples Adagio, “Tu del mio Carlo al seno” (faixa 17), imagina Massimiliano e Carlo juntos no céu. À distância, podem ser ouvidos os sons do festivo banquete. Arminio seguiu Amalia, porque ele está atormentado pela culpa de sua parte na conspiração perversa de Francesco. Ele só tem tempo para revelar que tanto Carlo e o velho conde ainda estão vivos, Amalia se regozija com uma cabaleta jubilosa e distintamente antiquada, “Carlo vive?” (faixa 19), que mais uma vez deu ampla oportunidade para Jenny Lind demonstrar sua famosa agilidade.
Francesco entra para declarar seu amor por Amalia e eles se lançam em um dueto de confronto soprano-barítono em quatro movimentos, um tipo de situação dramática na qual Verdi quase sempre teve um sucesso magnífico. Chega então Francesco que a pede em casamento, o que ela recusa, acusando-o de ser o instigador da morte do irmão. Sua recusa desdenhosa provoca-o um ataque de fúria e ele se torna violento, Francesco revela-se tal como realmente é, dizendo que ela será sua, quer queira quer não, como escrava ou como amante.
Amalia e Francesco
Amalia finge uma mudança de coração e abraça-o para que ela possa aproveitar sua adaga e afastá-lo antes de fazer a sua fuga para a floresta nas proximidades. Mas nesta situação, pela primeira e única vez em minha desprezível opinião, o mestre erra um pouco a mão no dueto e o formato se mostra um pouco frio, rápido e disperso. O andantino “Io t’amo, Amalia” (faixa 21) se dissolve muito rapidamente em um uníssono rítmico rotineiro, e a cabaleta “Ti scosta, o malnato” (faixa 23), trata de maneira dispersa o confronto de tessituras em comparação aos muitos dos melhores trabalhos de Verdi que exploram esta situação com muito mais criatividade. Como diz nosso matemático René Denon “jogou as variantes numa fórmula padrão e deixou rolar” sei lá “…não dá para inventar muito não conheço bem o público, temos que cumprir o prazo…” algo assim. Um pena.
Cena 02: Uma clareira na floresta da Boêmia perto de Praga
Nos bosques próximos de Praga onde os bandidos estão reunidos o “Scene e Coro” (faixa 24) oferece uma amostra típica da vida dos bandidos, embora a escrita coral seja mais complexa do que Verdi normalmente havia se aventurado até então. É aí que se espalha a notícia de que Rolla, o braço direito de Carlo, fora preso e condenado à forca. Como forma de vingança, Carlo decidira saquear a cidade, Rolla, então, é resgatado por Carlo e seus seguidores, que se alegram com sua vida despreocupada. Eles deixam Carlo sozinho para lamentar seu estado de proscrito em uma bela romanza, “Di ladroni attorniato” (faixa 26). Seus companheiros voltam para relatar que estão sob ataque e todos se juntam em um coro guerreiro, todos se preparam para o combate. Carlo conseguiu incendiar grande parte da cidade, resultando em cidadãos armados que o perseguem. A cena termina com Carlo exortando sua turma de ladrões para lutar como lobos para salvar-se (o lindo fechamento da faixa 27).
Ato 3 Cena 01: Um lugar na floresta perto do castelo
Frontespizio del libretto dei Masnadieri 1847
Os ladrões cantam dos prazeres de suas atividades criminosas. Amalia que conseguiu escapar de Francesco, está na mesma floresta em que estão os bandidos, mas agora está sozinha e apavorada ao ouvir o som de bandidos nas proximidades. Ela implora misericórdia do primeiro homem que vê: milagrosamente, ele acaba sendo Carlo, e os amantes são alegremente unidos em um dueto. O primeiro movimento lírico, “Qual mare, qual terra” (faixa 29), é talvez um pouco simples, embora os efeitos vocais compensem em parte a falta da tensão de confronto usual. Amalia conta a Carlo sobre a morte de seu pai e sobre as tentativas de Francesco por sua virtude. Carlo fica horrorizado. Mas, quando Amalia o interroga, Carlo não lhe revela ter-se tornado um bandido. Eles se juntam em uma cabaleta final, “Lassu risplendere” (faixa 31), na qual Amalia tem ainda mais oportunidade de exibir seus trinados e agilidade.
Cena 02: Outra clareira na floresta da Francônia
Um refrão ainda mais alegre dos bandidos apresenta o “Finale Terzo”. Carlo luta com sua alma byroniana e até pensa em suicídio, mas decide que deve aceitar seu destino terrível e viver na solidão e miséria, vilipendiado por todas as pessoas decentes contemplando seu futuro sombrio na ária “Ben Giunto” (faixa 33) mas é interrompido por Armínio, que entra furtivamente e se aproxima de algumas ruínas de torres próximas. Ao ouvir uma voz dentro das ruínas, Carlo vai investigar, então entra na torre e, para sua surpresa, encontra, num dos calabouços, um velho esquelético que ele reconhece ser o seu pai, Massimiliano. Em uma impressionante narrativa “Un ignoto, tre lune ou saranno” (faixa 35), Massimiliano (que não reconheceu seu filho) descreve aquilo que se passou: ao receber a notícia da morte do seu filho mais velho, perdera os sentidos; quando acordara, vira-se fechado num caixão; depois, Francesco, o seu filho mais novo, que ficara furioso ao compreender que ele não morrera, mandara-o aprisionar naquela torre onde deveria acabar por morrer de fome. Felizmente Arminio o salvou e manteve escondido nas ruínas onde Carlo o encontrou. Surpreendido e indignado, Carlo dispara para o ar para chamar os seus homens, a quem faz jurar vingança contra Francesco.
Ato 4 Cena 01: Uma suíte de quartos no castelo de Massimiliano
Francesco acorda após terríveis pesadelos, com remorso. “Pareami che sorto da lauto convicto” (faixa 38) Francesco descreve uma visão assustadora da retribuição divina em um movimento que prefigura os grandes solilóquios das óperas do período intermediário de Verdi. Ele convoca o padre Moser e pede perdão por seus pecados, mas este se recusa a absolvição por seus crimes hediondos: só Deus pode conceder o perdão, responde o pastor. Impelido por sinais de que o castelo está sob ataque, Francesco corre para encontrar seu destino, jurando que vai desafiar o próprio fogo do inferno.
Cena 02: Uma clareira na floresta da Francônia
Scene finale dalla prima dei Masnadieri a Londra
Massimiliano lamenta a morte de Carlo, embora ele ainda não reconheça que o homem de pé na frente dele é seu filho favorito, Carlo não revelará sua identidade a Massimiliano, mas mesmo assim pede uma “bênção paterna”, então ele abençoa o “estranho desconhecido” por salvar sua vida. Em um dueto gentil “Come il bacio d’un padre amoroso” (faixa 41), pai e filho estão vocalmente unidos. Os bandidos regressam do assalto ao castelo. Não encontraram Francesco, e, em seu lugar, decidiram trazer Amalia, que encontraram perdida nas matas. Isso agrada Carlo que tem a intenção de mudar os seus caminhos. Carlo é forçado a admitir para Amalia, e para o seu pai, o seu papel como líder dos ladrões. Massimiliano expressa seu horror e desespero, mas Amalia declara que, apesar de tudo, ela ainda ama Carlo e quer ficar com ele no trio final “Caduto e il reprobo!” (faixa 43). Mas os companheiros ladrões de Carlo estão por perto, ele também deu o seu juramento de fidelidade ao longo da vida para seu bando de ladrões, e é impossível ignorar: em uma passagem declamatória final, ele não pode permitir que a mulher que ele ama seja arrastada para o seu mundo de degradação e vergonha, e ele não pode escapar de seu próprio mau destino está convencido de que não pode apagar a mancha do passado, nem de se redimir do clã, então resolve esse paradoxo esfaqueando e matando Amalia. Carlo abandona os bandidos e corre para a forca que o espera.
Cai o pano —————————
“I masnadieri” é um dos trabalhos mais intrigantes de Verdi. Quatro furiosos e violentos atos de tragédia. O retrato de Schiller sobre a rivalidade ciumenta de dois irmãos, o mais novo ressentido pelo fato de que o mais velho herdará a propriedade ducal do pai, e o dilema do pai cujo herdeiro legal se rebelou contra a sociedade e se juntou a uma gangue de bandidos de vida irresponsável, é forte material, cheio de ideias pré-revolucionárias (foi escrito em 1781). A figura de Francesco, o homem do crime premeditado, é terrível ele despreza seu pai como um fardo inútil que passa por sua vida e sente categoricamente a necessidade de ir contra a natureza. A inesperada vítima expiatória é a infeliz Amalia. Ela, que resistiu ao sadismo do namoro de Francesco – em uma cena cheia de contrastes – e demonstrou a mais firme coragem, assim como a mais terna feminilidade. O drama caminha desde o início com uma presunção devoradora e selvagem. Com um libreto nada superficial, ainda que desajeitado na linguagem, o músico lançou um ataque anárquico, de natureza explosiva.
Com estes ingredientes deveria ter sido um grande sucesso, fora isso tinha uma companhia estrangeira de grande prestígio dirigida por Lumley, uma elevada base romântica em Schiller (uma das fontes favoritas do compositor), um ilustre homem de letras como o libretista, um elenco de renome internacional. Além disso, Verdi e seu libretista tentaram conscientemente romper com certas tradições de longa data para tornar sua criação mais romanticamente intensa. Mas todos esses ingredientes se mostraram problemáticos. Verdi sentiu-se fora de sintonia e sem empatia com o ambiente inglês e pode não ter certeza do gosto e das exigências do público, o drama se mostrou um tanto pesado, particularmente por sua falta de oportunidades para o confronto dos personagens; Maffei, apesar de suas habilidades poéticas e disposição para experimentar, não tinha experiência de adaptações para o teatro. Acabou ficando um trabalho, no velho e bom português, como “feijão com arroz”.
Her Majesty s Theatre
Porém o lucrativo contrato para compor uma ópera para o Her Majesty’s Theatre em Londres foi um importante sinal da crescente reputação internacional de Verdi, e a ocasião permitiu que ele escrevesse para alguns dos cantores mais famosos da época. A recepção entusiástica de Londres durou pouco e a ópera se saiu muito mal na Itália. Este trabalho se juntou a Alzira no limbo das óperas de Verdi menos executadas. Não que a ópera toda seja feia, tem bons momentos (aliás o solo do prelúdio é lindo) mas o desfecho…putz, o absurdo no final aonde nosso herói esfaqueia sua amada para poupar-lhe a agonia de perdê-la para os bandidos (a quem ele jurou fidelidade eterna) é muito para engolir até no século XIX, em minha desprezível opinião, diga-se de passagem.
Giuseppe Verdi – I masnadieri Personagens e intérpretes
Lamberto Gardelli (1915-1998)
Esta gravação que vamos compartilhar com os amigos do blog é formada por um dos grandes elencos da década de 70. Para começar a diva Monserrat Caballé é sublime no único papel feminino. Como vimos (para quem teve a paciência de ler o textão) Amalia foi escrita para a sueca, Jenny Lind, e como tal o papel tem um monte de trinados e outros tantos momentos de coloratura delicada que Verdi normalmente não escrevia. Caballé tem uma voz muito leve e ágil, que parece estar de acordo com a escrita para Lind – o papel mantém os registros médios e superiores da voz soprano. Ela é particularmente surpreendente na ária de abertura, “Lo sguardo avea degli angeli” (faixa 11). Carlo Bergonzi é o tenor clássico de Verdi, sua aria de abertura, a cabaletta marcial “Nell’Agila maledetta” (faixa 05), é excelente. É muito bonito também o dueto com Raimondi no quarto ato, “Come d’un bacio d’un padre amoroso” (faixa 41).
Piero Cappuccilli (1926-2005)
Piero Cappuccilli também é o clássico barítono Verdi, trazendo muito calor italiano para o papel. Parece estranho dizer que leva “calor a um vilão”, mas Francesco Moor tem muitas músicas realmente ótimas, e a voz de Cappuccilli é muito bonita! Em minha modesta opinião ele é particularmente magnífico no dueto com Caballé no ato dois, “Io t’amo, Amalia” (faixa 21), que apesar das deficiências dramáticas, os dois fazem deste dueto um dos pontos altos. Sua ária de abertura, “La sua lampada vitale” (faixa 07) tem muita ameaça, tornando Francesco assustador. Ruggero Raimondi é um magnífico baixo, seu Massimiliano ficou nesta gravação com muita profundidade. Realmete é uma pena que não ter muitas participações do personagem dele para nos deleitar com seu canto. Há dois belos duetos, no primeiro ato com Caballé (faixas 11 e 13) e no ato quatro com Bergonzi (faixa 41), e uma curta romanza no ato três, “Un’ignoto, tre lune” (faixa 35). Esta gravação de estúdio é de alta qualidade e o maestro Gardelli conduz o pessoal da New Philharmonia com muita delicadeza. Uma gravação excelente, e os amantes da boa ópera não devem ter receio de ouvir mesmo que esta ópera seja considerada um trabalho menor, pouco conhecido, mas estamos falando da música de VERDI !!! Que subam as cortinas e se inicie o espetáculo ! Bom divertimento !!!!!
Massimiliano, Conde Moor – Ruggero Raimondi, baixo Carlo, filho mais velho de Massimiliano – Carlo Bergonzi, tenor Francesco, filho mais novo de Massimiliano – Piero Cappuccilli, barítono Amalia, sobrinha órfã de Massimiliano – Montserrat Caballé, soprano Arminio, criado do Conde – John Sandor, tenor Rolla, membro de quadrilha – William Elvin, barítono Moser, um padre – Maurizio Mazzieri, baixo
Ambrosian SIngers
New Philharmonia Orchestra
Conductor: Lamberto Gardelli
Registrazione: London, Ago 1974