DOWLAND
O amor é amor em mendigos e reis
Joel Frederiksen
Ensemble Phoenix München
Este disco é um tesouro repleto de pequenas gemas – linda poesia, ótima música e excelente interpretação – mas pede uma audição cuidadosa, demanda tempo para ser devidamente apreciado.
É claro, você poderá ouvi-lo uma vez e coloca-lo naquela pasta de discos interessantes, seguindo em frente para outras aventuras sonoras. Mas, se você dispuser de um pouco mais de tempo, poderá deleitar-se devidamente e abrir uma porta ou uma janela para um universo cultural bastante rico.
Digo isto pois John Dowland é um compositor cuja música pode ser facilmente rotulada de dolente, melancólica, cheia de sofrência… Realmente, tem isso, faz parte do pacote. Mas vai bem além disso. Não por acaso o seu Primeiro Livro de Canções – The First Booke of Songs – editado pela primeira vez em 1597 foi seguido de quatro edições, a última em 1613, e foi o primeiro do gênero em língua inglesa, estabelecendo um padrão altíssimo.
Outros livros do compositor seguiram e sua arte permanece como um retrato da cultura de seu tempo – ele foi contemporâneo da Rainha Elizabeth I e de Shakespeare. Há em sua música uma componente de atemporalidade que percebemos ao vê-la interpretada até pelo pop-star Sting. Afinal, canções que falam de amor – love, love, love – são sucesso de compositores ingleses até hoje.
Escolhi este álbum para ser o primeiro de uma série de postagens com obras de Dowland por achar que ele evita as principais armadilhas que se não forem afastadas na preparação de um projeto como este, acabaria resultando um disco chato – booooring!
Primeiro obstáculo – excesso de melancolia e tempo por demais moroso. A questão do tempo é fundamental. Dowland viveu no fim do século 16, começo do século 17. A passagem do tempo, a velocidade das coisas era diferente da que experimentamos hoje. Uma viagem de Londres a Paris, que seria feita apenas por pessoas distinguidas, demoraria dias. Um destes sites de perguntas estranhas me informa que cavalos bem treinados e tratados podem manter a velocidade de uns 15 quilómetros por hora, por horas. São 300 quilómetros de Paris a Calais – umas 25 horas, pois há que parar de vez em quando para trocar os pobres cavalos, refresca-los e essas coisas. Coloque mais umas 11 horas para ir de Dover a Londres. Isso sem contar a travessia do canal, a espera das conexões, a maré certa. Pois é, outros tempos, outro tempo.
Tem também a questão dos intérpretes. Como vamos ouvir canções, a voz é um fator relevante. É comum ouvir as canções de Dowland nas vozes mais altas – soprano e contra tenor. No meu caso, isso pode ser um problema. Além disso, o acompanhamento do cantor em geral é feito por um alaúde. Isso é certo, John fazia isso, mas se houver mais instrumentos, fica mais colorido e isso também é perfeitamente adequado. O cantor deste disco, Joel Frederiksen, é baixo-barítono, toca o alaúde e se faz acompanhar pelo excelente grupo Ensemble Phoenix München e a gravação é espetacular.
A escolha absolutamente criteriosa das canções e dos números instrumentais nos dá um ótimo panorama da obra de Dowland – um desfile de big hits!
A primeira canção, do terceiro livro, é um ótimo exemplo de como música e poesia vão de mãos dadas, no mais alto nível. Veja o refrão: And love is love in beggers and in kings! A canção demora curtíssimos 2’14! Se você não a ouvir de novo, não se embebedar da música, vai perder.
E Dowland conviveu com nobres e reis. A letra da segunda das canções – Can she excuse my wrongs with vertues cloak? – foi escrita pelo segundo Conde de Essex – Robert Devereaux – favorito da Rainha, nobre e corsário inglês, que acabou executado em razão de conspirações muitas. A própria Rainha é constante referência nas canções de Dowland, que esperava uma posição na corte, mas que veio apenas no fim de sua vida, quando assumiu o trono outro monarca. Dowland era católico e chegou a ser acusado de traição. Não foi condenado, mas também nunca ganhou as graças da Rainha Virgem. Na canção When Phoebus first did Daphne love, o frustrado Apolo manda: Past fifteene none, none but one should live a maid! Já deu para perceber quem seria esta uma… Veja também que na outra canção, que a segue no disco, também do Terceiro Livro, ouvimos:
Say Love if ever thou didist find,
A woman with a constant mind,
None but one,
And what should that rare mirror be,
Some Goddesse or some Queene is she,
She, she, she, and only she,
She only quenn of love and beautie.
Mesmo assim, nada de emprego…
A alternância de canções mais dolentes com outras mais animadas é muito bem-feita. A famosíssima Flow my Teares – também conhecida por Lachrimae na sua versão instrumental, é seguida por uma peça instrumental, My Lord Chamberlain his Galliard, e depois pela alegre Fine knacks for ladies, que nos transporta para uma feira ao ar livre – com frivolidades e muita animação.
Entre as peças instrumentais, chamo a atenção para The Frog Galliard, aqui interpretada por um conjunto de três alaúdes, cuja versão com letra Now o now I needs must part é uma belíssima canção do Primeiro Livro, em breve num distribuidor do PQP Bach Ars Blog mais perto de você. Até lá, veja só este avant premiere!
Os temas das canções são o amor platônico, o amor mundano, fidelidade e essas coisas. As raízes de sua música estão fortemente fincadas nas tradições madrigais que aprendeu em Paris, onde aprofundou sua predileção pelo alaúde. Para lá foi aos 17 anos a serviço de Sir Henry Brooke Cobham, embaixador junto ao Rei da França. Boa parte de sua vida, John Dowland passou longe da Inglaterra, muitos anos a serviço do Rei da Dinamarca, de onde enviou seu Segundo Livro de Canções para que sua mulher o publicasse.
Enfim, mais histórias guardo para as próximas postagens. Enquanto isto, aproveite este disco e se familiarize com esta música que permanece tão acima do tempo como as emoções que retratam e as perguntas que fazem.
John Dowland (1563 – 1626)
- The lowest trees have tops
- The Woods So Wild / Can She Excuse My Wrongs
- Deare, if you change
- Tarleton’s Riserrectione
- Sleep, wayward thoughts
- All ye, whom Love or Fortune hath betray’d
- Away with these self-loving lads
- Flow my teares (Lacrimæ)
- My Lord Chamberlaine his Galliard
- Fine knacks for ladies
- When Phoebus First Did Daphne love
- Say love if ever thou didst find
- A Fancy
- Lady, if you so spite me
- In darkness let me dwell
- If That a Sinner’s Sighs
- From silent night
- Praeludium
- Frog Galliard
- Shall I strive with wordes to move?
- Tell me, true Love
Joel Frederiksen, baixo e alaúde (9, 19)
Ziv Braha, alaúde (1, 14, 15 e 19)
Ryosuke Sakamoto, alaúde (4, 9, 13, 18, 19)
Domen Marincic, viola da gamba (2)
Alexandra Polin, viola da gamba (15)
Ensemble Phoenix Munich
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FLAC | 298 MB
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MP3 | 320 KBPS | 151 MB
Veja um exemplo da eterna sabedoria que está escondida nestas letras: Que tolos são os que não sabem que o amor não aprecia qualquer lei que não seja a sua própria…
Aproveite!
René Denon