Igor Stravinsky (1882-1971), Sofia Gubaidúlina (1931-2025), Hermeto Pascoal (1936-2025): Transcrições – Erika Ribeiro, piano

Seguimos com as homenagens ao nosso campeão Hermeto Pascoal, o moço de Lagoa da Canoa, que fez sua passagem de volta para as estrelas no último dia 13, deixando a todos nós, ao mesmo tempo, órfãos de sua magnética presença e plenos, cheios, arrebatados pela sua forma de fazer, amar e ser música. Hermeto é um cometa que passou iluminando e encantando tudo.

O disco de hoje é um que já faz tempo que eu queria trazer para o blog, pois é um dos mais inspirados e inspiradores que saíram por essas bandas nos últimos anos. Erika Ribeiro, pianista paulista de Itararé radicada no Rio de Janeiro, onde leciona piano e música de câmara na UNIRIO, é uma artista que carrega adiante esse exercício pleno de liberdade em suas criações. Transita entre fronteiras e repertórios, entre rótulos e séculos, com uma fluidez que parece evocar os velhos mestres de taijiquan de Chenjiagou. Música é música, e isso é tudo. Se tem algo mais Hermeto que isso, desconheço.

Não deixa de haver graça no fato de que uma das definições de “hermético”, segundo o dicionário, é “difícil de entender e/ou interpretar; obscuro, ininteligível”. Se tem algo menos Hermeto que isso, desconheço.

Hermeto Pascoal é (não consigo escrever no passado, tem algo ali de circular, de infinito) música, é a música. Não é nem fácil nem difícil de entender, porque não é de entender. Música a gente ouve, música a gente é. Mas estou divagando, voltemos ao disco.

O texto da contracapa, assinado pelo craque Irineu Franco Perpétuo, abre com uma contextualização muito interessante:

“Nos dias de hoje, as transcrições são um artifício que costuma ser empregado para alargar o repertório de instrumentos que não foram contemplados pelos compositores canônicos da História da Música. Antes da difusão das tecnologias de gravação, contudo, a transcrição era uma prática muito mais disseminada, e até corriqueira no instrumento para o qual esses mesmos ‘compositores canônicos’ mais escreveram – o piano. Virtuoses do teclado transpunham sistematicamente para suas 88 teclas as árias das óperas mais célebres, as obras-primas do repertório sinfônico – ora procurando fielmente reproduzir-lhes a linguagem, ora embelezando-as com os recursos específicos da técnica pianística. Ao propor suas transcrições – retratos em branco e preto de obras escritas para outras formações –, Erika Ribeiro reconecta-nos à chamada Era de Ouro do piano, renovando uma tradição brilhante dentro dos novos parâmetros do terceiro milênio.”

E, mais adiante, sobre a peça de Hermeto:

Série de arco nasceu de uma curiosa encomenda de Jovino dos Santos Neto, pianista de seu grupo: uma obra que a irmã de Jovino pudesse utilizar em sua coreografia da série de arco de ginástica rítmica. Hermeto e Jovino viram a coreografia da ginasta, cronometraram-na, e daí surgiu a primeira versão da peça, para piano solo. Ao ser gravada, em 1982, no LP Hermeto Pascoal e grupo, a obra teve a instrumentação ampliada, para contemplar o conjunto de Hermeto. Assim, ao executá-la somente ao teclado, Erika como que restaura sua sonoridade original.”

Hermeto Pascoal por Luis Trimano, 1983

Alguns dias depois da morte de Hermeto, Erika muito gentilmente falou com exclusividade ao PQP Bach, contando um pouquinho sobre o nascimento do disco:

Este álbum, a princípio, foi pensado para ser de transcrições para piano solo, autorais, feitas por mim. Eu já estava trabalhando nas canções japonesas (“Três poesias da lírica japonesa”), nas canções russas (“Quatro canções russas”) e no “Epitáfio”, do Stravinsky. Até que um dia, conversando com os produtores do álbum, o Sylvio Fraga e o Bernardo Ramos, falamos sobre como tínhamos que ter um brasileiro no disco, até para dialogar com o Stravinsky. Aí, a gente já pensa no Villa-Lobos, que foi muito influenciado pelo Stravinsky, muito da música dele tem do Stravinsky… Mas eu queria uma coisa menos óbvia. E foi aí que a gente chegou no Hermeto Pascoal, que eu acho que tem tudo a ver com a sonoridade que a gente estava buscando no álbum.

O Hermeto, com essa coisa da música universal, realmente expande os significados da música como a gente compreende, que é muitas vezes estar dentro de algum estilo… O Hermeto realmente criou um estilo musical que pertence a todos os estilos. Então, quando a gente ouve Stravinsky, pode parecer Hermeto, mas quando a gente ouve um forró, também pode parecer… Eu acho que essa pluralidade que ele traz é o que faz com que tanta gente se identifique com a música dele. Não só com a música dele, com as composições, com as invenções musicais, mas também com a maneira dele ser música. O Hermeto personifica essa entidade musical. E eu acho que isso, para qualquer músico, é um pensamento extremamente libertador, porque atiça a nossa criatividade, a nossa intuição. Eu sou uma pessoa super intuitiva, então se eu não estiver conectada à intuição, ou à maneira de como é que eu vou criar um som ali no instrumento, ou naquela sala de concerto, ou naquele momento, as coisas perdem muito o sentido para mim.

Por isso, foi bem natural a escolha do Hermeto Pascoal para figurar neste trabalho, ao lado também da Sofia Gubaidúlina,  essa compositora fantástica. Eu sou completamente apaixonada por essa série de “Brinquedos Musicais”, uma série de 16 movimentos, super imagéticos. E tem tudo a ver com o Hermeto. A gente escolheu “Série de arco”, que também é uma peça que o Hermeto criou para uma coreografia de ginástica rítmica da irmã do pianista dele, o Jovino Santos Neto. Então foi isso,  o Hermeto foi o que universalizou o álbum, agregou muitos sentidos, muitos significados para essa música. Que eu estava e estou buscando, e continuarei buscando por muito tempo.

Erika Ribeiro na Sala Cecília Meireles, 2020

OUÇA AQUI / LISTEN HERE

Transcrições para piano de Erika Ribeiro

Igor Stravinsky (1882-1971)
Três poesias da lírica japonesa
I. Akahito
II. Masazumi
III. Tsurayuki

Quatro canções russas
I. Pato (dança de roda)
II. Solo
III. Gansos, cisnes [extraída do ciclo Três histórias para crianças (1917)]
IV. Canção de seita

Hermeto Pascoal (1936-2025)
Série de arco

Igor Stravinsky (1882-1971)
Epitáfio

Sofia Gubaidúlina (1931-2025)
Brinquedos musicais
I. Acordeão mecânico
II. Carrossel mágico
III. Trompetista na floresta
IV. Ferreiro-feiticeiro
V. Dia de abril
VI. Canção do pescador
VII. Passarinho chapim
VIII. Urso contrabaixista
IX. Pica-pau
X. Clareira do alce
XI. Trenó de neve com sineta
XII. Eco
XIII. Tamborileiro
XIV. Músicos da floresta

Erika Ribeiro, piano

O bruxo Hermeto no traço do genial Baptistão

Karlheinz

ps: Vocês conhecem a gravadora Rocinante? Conheçam a gravadora Rocinante!
pps: A linda capa é de Tomie Ohtake, mestre absoluta.

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