É mais difícil escrever sobre música instrumental do que música com letra, é mais difícil escrever sobre música improvisada do que sobre música com estrutura bem determinada. É bastante difícil para mim falar sobre Hermeto Pascoal, também por esses motivos, além da sua carreira de camaleão nordestino de berço, carioca nos últimos anos por adoção e universal por vocação. Após o recente fim da sua longa e produtiva vida, vi um portal de notícias dizer que Hermeto deixou “um legado de 75 anos dedicado ao jazz, samba e forró” e em um primeiro momento fiquei puto: forró, samba, é assim que estão rotulando o Hermeto? Mas umas horas depois, dou o braço a torcer. É difícil escrever sobre Hermeto pela caleidoscópica mistura de sons que suas bandas fizeram, mas por outro lado talvez seja fácil: qualquer coisa que se disser vai ter um fundo de verdade. Sim, ele também fez forró.
Na verdade ele já cantou a pedra há muito tempo, em uma entrevista lá em 1972 para a revista Rolling Stone: Eu não gosto de dizer que faço um tipo de música. Porque eu faço questão de não fazer só um tipo de música. Eu quero fazer tudo: baião, rock, jazz, tudo sem uma intenção premeditada de fazer uma coisa específica. Depois ninguém vai dizer que o Hermeto tem um conjunto de baião ou de rock, todo mundo vai dizer que o Hermeto tem um conjunto de música, que para mim é o mais importante. (clique abaixo para expandir)
Então, constatando que tudo que se escreve sobre o bruxo tem boa chance de descrever em alguma medida a sua música, me atrevo a escrever sobre Hermeto Pascoal. Nos seus últimos anos ele manteve uma banda fixa com fiéis escudeiros que já tinham uma comunicação telepática com ele. Aliás, nos anos 1980 a banda também era espetacular, com destaque para o flautista e multiinstrumentista Carlos Malta, como vemos nesse disco postado mais abaixo. Mas voltemos aqui para o Hermeto já octogenário: vi dois shows desse seu último grupo. O primeiro eu vi de perto e me lembro que o solo de chaleira era o momento mais marcante para o público, aquele instante em que se impressionavam e se uniam em atenção unânime tanto os melômanos mais dedicados como o pessoal que estava por acaso naquele evento e sabia bem mais ou menos quem era o velhinho barbudo no palco. Ele tinha esse caráter do absurdo, do exótico que encanta quem normalmente não se preocupa com música instrumental. E quem se preocupa também se encantava com ele, nem preciso explicar os por quês, né?
O segundo show acabou sendo o último dele no Brasil, três meses atrás, no Circo Voador, junto aos Arcos da Lapa, no Rio de Janeiro. Show gratuito e lotadíssimo, não consegui entrar mas, colado à grade externa, foi possível ouvir tudo e ver uns 30% do palco, a parte da esquerda, sobretudo o pianista André Marques. Alguns solos, mesmo sem ver, eram óbvios: de bateria, de sax, etc. E nos momentos mais estranhos e absurdos, era evidente que o bruxo estava tocando. Deixo abaixo esse simplório vídeo que registra mais o ambiente do que a música, mas não deixa de ser histórico esse registro de nove segundos do último show da banda de Hermeto Pascoal no Rio, com gente na fila abaixo dos Arcos até o fim do show tentando entrar.
Terminado esse relato – no qual realmente não consigo botar em palavras as experiências desses dois shows de Hermeto, incompetência que espero justificada – deixo aqui um dos seus discos mais importantes, cheio de improvisos e de sons do cotidiano pois, como dizia Hermeto, “as coisas que fazem parte do meu dia a dia é que ditam meu som”. Em dois momentos do disco, trechos de locutores de futebol servem de base para a música. Aliás, para situar melhor aquele dia na Lapa: poucos minutos antes do início do show, eu chegava atrasado pela Rua Riachuelo e via, em um bar, botafoguenses pularem no momento do gol do Botafogo contra o PSG. Então os torcedores do glorioso podem guardar isso na memória: no mesmo dia dessa vitória improvável, a última aparição em um palco brasileiro desse músico, arranjador e compositor profundamente improvável, nascido em 1936 no município do agreste alagoano que dá nome ao disco.
Hermeto Pascoal e grupo: Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca (1984)
Lado A
1. Ilza na feijoada (Hermeto Pascoal)
2. Santa Catarina (Hermeto Pascoal)
3. Tiruliruli (Osmar Santos)
4. Papagaio alegre (Hermeto Pascoal)
5. Vai mais, garotinho (José Carlos Araújo) / decisão do campeonato nacional 1984
6. Monte Santo (Hermeto Pascoal e João Bá)
Lado B
1. Spock na escada (Hermeto Pascoal)
2. Mestre Radamés (Hermeto Pascoal)
3. Aquela coisa (Hermeto Pascoal)
4. Frevo Maceió (Hermeto Pascoal)
5. Desencontro certo (Hermeto Pascoal)
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– ficha técnica –
Lado A – Hermeto Pascoal (flauta – fx. 1; flautim – fx. 1; clavinete ‘solo’ – fx. 1; fala ‘Sapatão’ – fx. 1; piano – fx. 2; harmônio – fx. 3, 5, 6; flauta ‘solo’ – fx. 4; sanfona – fx. 6) | Osmar Santos (narração e canto – fx. 3 // Jogo – Corinthians x Flamengo 6.5.1984) | José Carlos Araújo (narração e canto – fx. 5 // Jogo – Vasco x Fluminense – decisão do campeonato nacional/1984) | João Bá (declamação – fx. 6) | Carlos Malta (flauta – fx. 1, 2; sax soprano ‘solo’ – fx. 1; fala Doçura – fx. 1; jogral – fx. 2; sax tenor – fx. fx. 4; flautim – fx. 4) | Jovino Santos Neto (piano rhodes – fx. 1, 2; flauta – fx. 1; fala ‘Mansinha’ – fx. 1; harmônio – fx. 2; jogral – fx. 2; piano acústico – fx. 4; piano CP-80 – fx. 4) | Iteberê Zwarg (contrabaixo – fx. 1, 4; fala ‘Cheguei’- fx. 1; tuba – fx. 2; jogral – fx. 2) | Márcio Bahia (bateria – fx. 1, 4; reco – fx. 1; fala ‘Metidinho’ – fx. 1; almofada de bilros – fx. 2; sino – fx. 2; jogral – fx. 2; jererê – fx. ) | Pernambuco (triângulo – fx. 1; fala ‘Zangadinho’ – fx. 1; almofada de bilros – fx. 2; jogral – fx. 2; redôngulo – fx. 4) | Elísio Costa (flauta – fx. 1; fala ‘Coronel Peba’ – fx. 1) | Fábio Pascoal (fala ‘Saudoso’ – fx. 1) | Marcus Vinicius (fala ‘Catuaba’ – fx. 1) | Manoel Ozias (risada – fx. 1) | Ilza Pascoal (gargalhada – fx. 1) | Papagaio Floriano (falas e assovios – fx. 4) | Lado B – Hermeto Pascoal (viola – fx. 1; flauta baixo – fx. 1; piano (tema) – fx. 1; solo de latidos com flautas – fx. 1; bombardino – fx. 2; flauta – fx. 3; pistons – fx. 4; solo de buzina – fx. 4; sax soprano – fx. 4 / apresentação dos músicos – fx. 4; cavaquinho – fx. 5) | Jovino Santos Neto (piano acústico – fx. 1; harmônio – fx. 1; piano CP-80 – fx. 2; harmônio – fx. 2, 5; piano – fx. 3; piano rodhes – fx. 4; flautim solo – fx. 4) | Carlos Malta (saxofones – fx. 1; sax soprano – fx. 2; sax tenor – fx. 3; sax tenor solo – fx. 4) | Márcio Bahia (bateria – fx. 1, 2, 3, 4; apitos – fx. 1; percussão – fx. 1 – solo de percussão – fx. 4) | Itiberê Zwarg (contrabaixo – fx. 1, 2, 3; contrabaixo solo – fx. 4; tuba – fx. 4, 5) | Elísio Costa (percussão – fx. 1; flauta solo – fx. 4) | Pernambuco (percussão – fx. 1; triângulo – fx. 2; pandeiro – fx. 4; palavras – fx. 4) | Heraldo do Monte (guitarra – fx. 2; viola – fx. 5) || Convidados especiais: Haroldo do Monte, João Carlos Araújo, João Bó e Osmar Santos | Direção musical e arranjos: Hermeto Pascoal | Coprodutor musical: Jovino Santos Neto | Engenheiro de som: Marcus Vinicius | Auxiliares de estúdio: Ronaldo, Robson e Zé Luis | Mixagem e montagem: Marcus Vinicius e Hermeto Pascoal | Gravado no Nosso Estúdio – São Paulo, Brasil, de junho a setembro de 1984

Pleyel

…et Hermeto Pascoal (tout) est absolument magnifique (AB-SOLU-MENT MAG-NI-FIQUE) Ha quel plaisirs ! )
Linda postagem, Pleyel. A grandeza de Hermeto é difícil de descrever. A mais completa expressão de gênio que conheci não cabe em adjetivos. Qualquer adjetivo a limita, a dessacraliza, o que foi muito bem expresso em seu texto, uma homenagem que certamente alegra o Campeão lá das Esferas de onde ele nos olha agora. Grato por isso.
Oui, d’accord avec vous Vassily, mes adjectifs n’étaient qu’un cri du coeur, exaltation, de quel_s plaisirs! Et salutations à Pleyel de les proposer aussi…