Uma constatação que não é novidade mas é sempre bom lembrar: fama, glória e reputação internacional dependem não só de fatores intrínsecos às obras artísticas mas também a fatores externos como tendências geopolíticas, guerras, modas, etc. Um exemplo recente: Silvestrov, nascido em 1937, finalmente foi bem mais ouvido desde 2022, ao mesmo tempo em que bombas destruíam a Ucrânia onde ele vivia.
Com o fim da Guerra Fria, surgiram na cena europeia vários nomes da ex-URSS, normalmente pouco reconhecidos naquele país por não se alinharem com as ideias da burocracia de Moscou quanto ao que deveria ser a música revolucionária. Naquele contexto pré 1989 o Estado soviético tinha juízos de valor sobre música, teatro, literatura etc. e poder para realizar ostracismos, censuras e silenciamentos. Isso pra não falar no período anterior, mais stalinista, quando matavam mesmo e sumiam com os corpos, como aliás também se fez por toda a América do Sul durante parte da Guerra Fria.
Sobre essa temática, recomendo a leitura de “Lukács 1955”, do francês Henri Lefebvre (1901-1991), ainda não traduzido em português, ou ao menos do resumo que aqui fez J. P. Netto. Para Lefebvre, o filósofo [mas também o compositor] teria o direito/dever de não se inclinar aos juízos filosóficos oficiais (partidários e/ou estatais) e de pensar com sua própria cabeça. Uma perspectiva corajosa – e perigosa – para os intelectuais vinculados aos partidos comunistas no século XX.
Assim, desde mais ou menos 1990 ganharam notoriedade nomes como Schnittke, Gubaidulina, Pärt e Vasks, todos estes nascidos entre 1931 e 1946 e já maduros quando de repente surgem convites de grandes orquestras, reportagens em grandes jornais e revistas, além de patrocínios, pois sem dinheiro não se vai muito longe.
Amiga de Schnittke, Gubaidulina talvez seja mais parecida estilisticamente com Arvo Pärt e Krzysztof Penderecki (1933-2020), devido ao caráter sempre espiritualmente carregado de suas músicas. Ela se interessa por música sacra nos mais diversos sentidos da palavra, com a espiritualidade podendo se expressar em obras instrumentais (aqui) e podendo dar origem também a uma longa Paixão de Cristo que estreou em 2000 por encomenda da cidade de Stuttgart (Alemanha) para celebrar 250 anos de morte de J. S. Bach.
Nesta outra obra do disco de hoje, que também se insere no período em que a compositora “saiu do armário” após anos de trabalho mais ou menos solitário e discreto, há a presença de um coral, de um violoncelo solista e de percussionistas. Sem os outros naipes orquestrais, Gubaidúlina se aventura por diferentes possibilidades de combinação desses instrumentos. O coro faz muitas peripécias em trechos sem palavras (só com “ah-ah”‘s, “hm-hm”‘s e coisas do tipo). Já nos momentos em que cantam as palavras escritas por São Francisco de Assis, as vozes soam mais sóbrias, representando um certo respeito de Gubaidúlina com o texto.
E qual é o texto, afinal? Um cântico escrito por volta de 1284. Como resume a wikipedia,
O Cântico das Criaturas (em italiano: Cantico delle creature; em latim: Laudes Creaturarum), também conhecido como Cântico do Irmão Sol (italiano: Cantico di Frate Sole) é uma canção religiosa cristã composta por Francisco de Assis. Escrita no dialeto da Úmbria, acredita-se que esteja entre as primeiras obras escritas no idioma italiano.
Aprendemos, assim, que São Francisco de Assis (1181 – 1226) acreditava (séculos antes de Lutero) que as orações deviam ser feitas na linguagem que o povo entendia. Décadas antes de Dante Alighieri (c. 1265 – 1321), Francesco Petrarca (1304 – 1374) e Giovanni Boccaccio (1313 – 1375), portanto, Francisco de Assis estava escrevendo em italiano. Esse mesmo cântico, além de Gubaidúlina, inspiraram em 2015 a encíclica “Laudato si” (em português: ‘Louvado sejas’; subtítulo: “sobre o cuidado da casa comum”), na qual o Papa Francisco critica o consumismo e a degradação do planeta.
O disco tem ainda duas obras de câmara de Gubaidulina, não por acaso, escritas na época em que nenhuma grande orquestra ou coro tinha interesse na compositora. Os Prelúdios para violoncelo solo (1974) já apareceram em uma gravação integral no blog. Aqui, Wispelwey escolheu os cinco que mais lhe agradam. Tanto o violoncelista como o Collegium Vocale Gent são mais conhecidos por suas interpretações historicamente informadas do repertório dos séculos 18 e 19, mas mostram aqui que não se limitam a Bach e Beethoven.
Sofia Gubaidúlina (n. 1931):
1-19. The Canticle of the Sun (Il Cantico Frate Sole)
20-24. Preludes for violoncello solo
25. In Croce (for cello and bajan)
Pieter Wispelwey, violoncelo
Collegium Vocale Gent – Daniel Reuss, conductor
An Raskin, bajan
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – mp3 320kbps
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – flac
Pleyel
Marvellous post, many thanks