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Luca Chiantore, autor de uma Historia de la técnica pianística que não tem concorrentes no mercado editorial, comenta assim o interesse tardio de Ligeti pelo piano:
Nos anos 60, quando ficou famoso, lhe interessavam as massas sonoras da orquestra e do coral. Entre os intrumentos de teclado, preferiu o órgão, com importantes composições para esse instrumento entre 1962 e 69. Sua investigação pianística parecia ter estancado na juvenil Musica Ricercata dos anos 50, “surpreendente despedida da tradição bartokiana e fulgurante exemplo de sincretismo estilístico”, diz Chiantore.
No final dos anos 70, porém, Ligeti parece ter se cansado do estilo que o fez célebre. A partir de então, com uma peça para dois pianos e um trio para trompa, violino e piano (1982), teve um interesse crescente pelo piano. A elaboração sonora se reduz das grandes massas orquestrais e corais e Ligeti recupera uma dimensão virtuosística da interpretação. Chiantore diz ainda que o título Études, em francês, deixa implícita uma homenagem à tradição do piano romântico e aos estudos de Chopin e Debussy. Ao mesmo tempo, Ligeti fazia esses tipos de diálogos com as tradições anteriores sempre do seu próprio ponto de vista: ele jamais se colocaria como um “neoromântico” ou neo- qualquer coisa. Então, misturada com Chopin e Debussy estava a influência do compositor americano-mexicano Conlon Nancarrow (1912-1997), autor de “49 Studies for Player Piano” compostos para o instrumento – em português se chama pianola – que se toca sozinho, com base em um mecanismo mecânico de cartões perfurados semelhante àqueles primeiros e enormes computadores antigos. Com suas complexidades polirítmicas pensadas para as capacidades das máquinas e, em muitos casos, impossíveis de serem tocadas por duas mãos humanas, os estudos de Nancarrow representaram, para Ligeti, “a maior descoberta desde Webern e Ives… Sua música é original, perfeitamente construída, mas ao mesmo tempo com emoções…”
Então esse Ligeti maduro que compôs estudos nas décadas de 1980 a 2000 parece ter dois lados de sua personalidade, seus Dr. Jekyll and Mr. Hyde, divididos entre o mecânico e o sentimental. E aí entramos na audição comparada dos Estudos por esses três pianistas. O francês Pierre-Laurent Aimard, pupilo de Boulez, enfatiza mais o lado mecânico dessas obras, e quem sou eu para dizer se ele está certo ou errado quando o próprio Ligeti dedicou dois dos estudos para ele? Tendo ensaiado várias dessas obras com o compositor, ele é uma autoridade no assunto. Tanto ele como Idil Biret gravaram os estudos quando o compositor ainda era vivo e o terceiro livro ainda não tinha sido inteiramente publicado.
A pianista turca Idil Biret provavelmente foi a primeira a enfatizar o lado romântico de vários desses estudos, atenuando um pouco o caráter mecânico e mostrando o quanto Ligeti traz, mesmo que disfarçados, elementos do piano romântico de Chopin. Após uma longa carreira na qual foi menina prodígio, depois aluna de Alfred Cortot e Nadia Boulanger em Paris, depois concertista com um imenso repertório que inclui gravações dos Estudos de Chopin e dos Études-Tableaux de Rachmaninoff (na verdade ela gravou as obras completas de ambos pela Naxos), não chega a espantar que a sua interpretação de Ligeti tenha conseguido encontrar no compositor esses discretos elementos de sensibilidade romântica em estudos como o lento nº 11, “En suspens” – Andante con moto, avec l’élegance du swing e no nº 11, con delicatezza.
O inglês Danny Driver parece, em muitos estudos, buscar um caminho do meio entre essas duas interpretações. Tanto em termos de estilo como nos andamentos, ele vai se equilibrando entre a técnica e o sentimento. Entre a velocidade estonteante e a comunicação com o ouvinte, que às vezes exige pequenas pausas para que os detalhes apareçam. Os outros dois também fazem esse difícil equilíbrio, é claro, mas acabam pendendo para um dos dois lados como já disse acima.
Por exemplo no mais longo dos estudos, o diabolicamente difícil nº 13, “L’escalier du diable” (A escada do diabo) – Presto legato ma leggiero, com seu movimento ascendente alucinante, Aimard despacha tudo em 5min16s, Biret faz tudo com mais calma em 6min50, deixando transparentes para o ouvinte alguns truques da partitura, enquanto Driver corre quase tanto quanto o francês (5min23s).
Ao contrário de compositores que mandam o intérprete encostar nas cordas do piano ou usar objetos como moedas e vidros para mudar o som do instrumento (é o caso de Cage, Gubaidulina, Vasks e muitos outros das últimas décadas), Ligeti inova apenas no teclado mesmo: o exemplo mais evidente é o 3º estudo, “Touches bloquées”, ou seja, teclas bloqueadas, no qual algumas teclas ficam travadas pelos dedos sem fazer som, o que muda os harmônicos das outras notas, além de criar irregularidades novamente bartokianas. Como explica Idil Biret: “O pianista segura certas notas com o dedo sem fazer som e, enquanto isso, toca as outras; quando chega às notas bloqueadas, não sai som. Isso nunca tinha sido feito antes.”
As instruções de Ligeti muitas vezes são detalhadas e mesmo contraditórias: há uma grande interesse em sons com a repetição precisa das máquinas ao mesmo tempo que há indicações como rubato, con eleganza, con delicatezza, cantabile, with swing… Todas essas indicações vão mais ou menos no sentido contrário da “máquina de precisão”, expressão que pego emprestado de um movimento do seu segundo quarteto de cordas (1968) com a indicação “Come un meccanismo di precisione”.
Danny Driver, no livreto do seu disco lançado há poucos anos, resume assim os desafios de se tocar esses estudos:
Ligeti himself spoke of imagining in the Études ‘highly emotive music of high contrapuntal and metric complexity, with labyrinthine branches and perceptible melodic forms, but without any “back to” gesture, not tonal but not atonal either.’
On a personal note, the process of preparing and repeatedly performing the Études over several years has been an exhilarating and exhausting venture. For all their technical pyrotechnics, I have always believed that they must not become an aural-visual spectacle, a Herculean tour de force that can leave audiences stunned by achievement yet left in the cold. As E D Hirsch might explain, we must not ignore the ‘ghost in the musical machine’ or imagine that ‘the problems of interpretation will be resolved into operational procedures’. Putting the emotional and evocative power of these pieces centre stage despite their intransigent virtuosity is—for me at least—the ultimate challenge laid down by these extraordinary works.
O título de cada estudo traz referências ou dicas de ideias a ele relacionadas: em vez de dar nomes como “estudo de terças” ou “arpejos compostos” (Debussy), Ligeti dá nomes provocativos em várias línguas, como Désordre (Desordem), Fanfares e Der Zauberlehrling (O aprendiz de feiticeiro). E o que dizer do estudo 14, Coloana infinită? Representada nas fotos ao lado tanto de dia como de noite, a coluna é uma escultura na Romênia, construída em 1938 em homenagem aos jovens mortos na 1ª Guerra Mundial. Uma bela escultura que, vista de perto, deve causar algumas ilusões de ótica. O andamento descrito por Ligeti é Presto possibile, tempestoso con fuoco.
Para Aimard, o tempestoso significa uma sonoridade forte e opressora, enquanto o con fuoco indica sons novamente em estilo de máquina, tirados do piano com maestria. Biret, bem pelo contrário, parece observar a tempestade do conforto do seu banco de pianista e dela extrai cores menos preocupadas, mais calmas. Driver mais uma vez ocupa um lugar entre os dois anteriores: sua articulação rítmica lembra mais a das mãos de Aimard, mas seu coração parece estar com o de Biret.
Gyorgy Ligeti: Études nº 1 a 15, Musica Ricercata
Pierre-Laurent Aimard, piano
Recorded: Salle de Musique, La Chaux de Fonds, 1995-1996
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Gyorgy Ligeti: Études nº 1 a 14 e 14a
Idil Biret, piano
Recorded: Clara-Wieck-Auditorium, Sandhausen, 2001
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Gyorgy Ligeti: Études nº 1 a 18 (livros 1 a 3 completos)
Danny Driver, piano
Recorded: St Silas Church, London, 2019
Pleyel
O link Aimard não está funcionando. Música maravilhosa uma educação para mim. Obrigado.
Boa noite. Por favor consertem o link para Aimard. Ligeti é meu compositor do século XX preferido, junto com Penderecki.
Link resolvido.
E temos mais Ligeti nos próximos capítulos…
Ouvi o Driver. MARAVILHOSO!