Um amigo meu, entendedor de vinhos, costuma dizer que quando uma marca se apresenta como “o vinho mais vendido” do país tal ou do continente tal, ele evita. Porque deve ser um vinho que atende a todos os requisitos mínimos mas, feito em grandes quantidades, não tem uma caráter próprio. A palavra caráter, aqui, não no sentido de “bom” ou “mau caráter” – o que implicaria um julgamento moral – mas com o significado de personalidade, o conjunto de elementos que diferencia uma pessoa ou coisa das outras.
Essas discussões sobre o caráter – nesse sentido não moralista e sim atento aos detalhes da vida – permitem um desvio sobre o entusiasmo dos nossos tempos com a assim chamada “inteligência artificial” (lembro aqui a frase de Groucho Marx sobre inteligência militar e música militar): creio que a máquina só pensa melhor que a pessoa se a pessoa estiver treinada para pensar como uma máquina. É claro que eu e o Groucho podemos estar errados e a máquina – leia-se: a repetição de comandos, frases feitas, protocolos, hierarquias – correta.
Desviando novamente os argumentos e entrando no assunto principal, chamo atenção para o fato de que Gustav Mahler, em suas sinfonias, sempre tira da cartola frases feitas e truques que sabidamente animam as plateias. Após muitos sucessos como maestro em Budapeste, Hamburgo e Viena (com sinfonias de Beethoven mas sobretudo regendo óperas de Mozart, Wagner e Tchaikovsky), ele conhecia os públicos orquestrais, sabia o que funcionava ao vivo. Ao mesmo tempo, ele criou sinfonias que não são só pedaços remendados e requentados de compositores anteriores: em suas próprias palavras, uma boa sinfonia devia conter o mundo inteiro dentro de si, e a frase pode ser lida também como uma sucessão de variações de escala: mundos dentro de mundos. Pois entre as marcas do caráter de Mahler – ou seja, o seu jeitinho, suas manias – está a alteração não só de humores mas também de momentos de tutti orquestral com momentos camerísticos em que dois ou três instrumentos dialogam e os outros silenciam.
Essas sinfonias são também boas oportunidades para maestros e orquestras mostrarem aspectos do seu caráter: entre os que gravaram ciclos inteiros, não dá pra não mencionar Haitink com a elegância e a tradição mahleriana do Concertgebouw (1962 a 71) e Bernstein extraindo emoções maiúsculas de três grandes orquestras (1974 a 88). E nesta gravação da 5ª de Mahler o venezuelano Gustavo Dudamel, que na época tinha menos de 30 anos, fez definitivamente música muito particular com seus músicos de Caracas. Quero dizer que os jovens músicos e maestro não buscam apenas imitar orquestras mais famosas do continente europeu: ao invés disso, imprimem seu caráter à obra.
Por exemplo no penúltimo movimento, o Adagietto para cordas e harpa, com um colorido orquestral rico em detalhes mas sem exagerar no drama, eles fazem jus à opinião de Mengelberg, maestro que conheceu Mahler e afirmava que este movimento era uma declaração de amor à sua esposa Alma. Assim, a entrada alegre dos metais e madeiras no início do Rondo-Finale, que eu estava acostumado a ouvir como o desabrochar das flores e o surgimento dos animais após um longo inverno, aparece aqui com a simplicidade do canto dos pássaros anunciando o fim de uma noite. Não significa que o Adagietto tenha sido breve: o andamento aqui é quase no mesmo passo de Tilson Thomas ou Haitink, mas o som de serenata noturna das cordas da Orquestra Jovem Simón Bolívar faz tudo soar leve. É verdade que a sinfonia tem também momentos mais pesados, mas nesta gravação eles se concentram nos três primeiros movimentos.
No livreto do CD, Dudamel afirma que a 5ª de Mahler representa um tremendo desafio, ainda mais para aqueles músicos jovens, não só pelas dificuldades técnicas mas também pela sensibilidade necessária para expressar os “extremos de felicidade, tristeza, depressão e esperança desta obra”. Dudamel também conta que ele e os músicos da orquestra aprenderam muito sobre essa sinfonia com o maestro italiano Claudio Abbado (1933 – 2014): ele conduziu a orquestra nesta obra e o jovem maestro venezuelano teve a oportunidade de discuti-la com ele em detalhes.
Gustav Mahler: Sinfonia nº 5 (1901-1902)
I. Trauermarsch
II. Stürmisch bewegt
III. Scherzo
IV. Adagietto
V. Rondo-Finale
Simon Bolivar Youth Orchestra of Venezuela, Gustavo Dudamel
Recorded: 2006, Aula Magna de la Universidad Central, Caracas
Pleyel
Olá!
A postagem é tão bonita que deu vontade de ouvir o álbum! Vai para a playlist do fim de semana…
Abração
Que bom que gostou… boa apreciação!