Um abismo, bem maior que a meia dúzia de anos no calendário, separa o segundo quarteto de seu predecessor. Bartók era agora veterano de muitas expedições etnomusicológicas que o levaram tão longe quanto a Argélia e, ainda mais fundamental para ele, pelas veredas e grotas de sua Hungria, que era então muito maior que a de hoje, e que abrangia áreas hoje sérvias, ucranianas, romenas e eslovacas. Suas descobertas, meticulosamente anotadas e muitas vezes gravadas em cilindros de cera, foram decisivas para que seus pendores nacionalistas encontrassem voz em sua linguagem musical. Elas, também, fizeram-no ouvir o que de magiar enfim havia na música tão transfigurada e celebrizada como “húngara”, no mundo todo, pelos ciganos da Panônia. E houve, por fim, a Grande Guerra, que fechou as fronteiras para suas expedições etnomusicológicas, implodiu o universo austro-húngaro em que ele nascera e crescera, e lhe trouxe, além de muita angústia, o primeiro dos tantos encontros duros com a penúria.
O primeiro movimento, com a indicação Moderato, muda frequentemente de andamento, como sói aliás acontecer na música de Bartók. Se relativamente convencional em forma, acenando para o seu primeiro estilo e para alguns gestos do primeiro quarteto, ele não soa da mesma maneira. Embora insinue mesmo uma sonata-forma, com o embate de temas contrastantes e um arremedo de desenvolvimento, seu caráter geral é rapsódico. O Moderato – ma non tanto – também mostra-se distintamente bartokiano em sua complexidade rítmica e caráter improvisatório, inda que preparado com muita meticulosidade. Os temas são apresentados quase que imediatamente, e todo movimento baseia-se na construção hesitante, quase que ensaio-e-erro, de seu clímax. O segundo movimento, à guisa de um rondó, é marcado Allegro molto capriccioso e propõe, com sua rapidez lúbrica e ritmos selvagens, uma tarefa nada caprichosa para os intérpretes: uma das partes mais cabeludas dentro desses já tão desafiadores quartetos de cordas. Aqui, o etnomusicologista parece fazer-nos ouvir o que ele escutou na Argélia, nas melodias de caráter árabe e nos insistentes bordões afins aos dos berberes. A fúria vertiginosa do movimento arrefece em muito poucos momentos, só para concluir num Prestissimo com surdinas e numa velocidade tão insana que quase nunca o ouvimos no andamento prescrito. O finale, marcado simplesmente Lento, desafia tentativas de classificação. Se o primeiro movimento era rapsódico, este aqui é decididamente fragmentário, com seus episódios impregnados de consternação e melancolia – e, se o próprio compositor o definiu como, bem, “difícil de definir”, é claro que eu não me atreverei a tanto.
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Quando eu, ainda ardido do esforço considerável que me foi o #BTHVN250, resolvi propor ao patrão PQP uma série com a obra completa de Bártok, eu tanto já sabia que ele toparia na hora, quanto que começaríamos pelos quartetos que amamos. Essas obras fundamentais, talvez as maiores de seu século, foram recebidas com tanto pasmo quanto estranheza, e seus intérpretes, muitos dos quais lealmente dedicados ao compositor e à divulgação desses quartetos, nunca deixaram de ser desafiados por suas imensas dificuldades técnicas e artísticas. Uma interpretação satisfatória dessas seis criaturas extraordinárias parece depender, mais do que quaisquer outras obras do gênero, duma familiaridade não só com a linguagem do compositor, mas com o peculiar contexto em que ele se fez ouvir. E, por aqui tratarmos de um húngaro, esse contexto torna-se ainda mais peculiar por sua cultura sui generis, da qual o mais notável emblema é o magiar – língua tão fascinante quanto impenetrável, e principal responsável por que a Hungria, que hoje não tem litoral além de seu querido lago Balaton, seja uma ilha cultural e fortemente murada na Planície Panônica.
Por isso, achei indispensável ilustrar minhas postagens sobre os quartetos com gravações feitas por compatriotas de Bartók. Começo com o conjunto talvez melhor denominado para a empreitada: o Quarteto Húngaro, formado em 1935 e que, apesar de estabelecido nos Estados Unidos desde os anos 50, sempre manteve (com a notável exceção do violinista russo Aleksandr Moszkowsky) húngaros em sua formação. Essa clássica gravação dos seis quartetos de Bartók foi feita pela última formação do Húngaro, com Zoltán Székely na posição de primeiro violino (herdada do fundador Sandor Végh), e o violista Dénes Koromzay, seu outro fundador, que permaneceu no conjunto até a dissolução, em 1972. Se Bartók aqui não soa tão angular e incisivo quanto nas emblemáticas gravações do Végh, a proficiência técnica e a precisão asseguram a visceralidade das reações ao ouvi-los.
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Béla Viktor János BARTÓK (1881-1945)
Quarteto de cordas no. 1, Op. 7, Sz 40 (1908-1909)
1 – Lento – Attacca:
2 – Poco a poco accelerando al’allegretto – Introduzione. Allegro – Attacca:
3 – Allegro vivace
Quarteto de cordas no. 3, Sz 85 (1927)
4 – Prima Parte. Moderato – Attacca:
5 – Seconda Parte. Allegro – Attacca:
6 – Ricapitulazione della Prima Parte. Moderato
7 – Coda. Allegro molto
Quarteto de cordas no. 5, Sz 102 (1934)
8 – Allegro
9 – Adagio molto
10 – Scherzo: Alla bulgarese
11 – Andante
12 – Finale: Allegro vivace
Quarteto de cordas no. 2, Op. 17, Sz 67 (1915-1917)
1 – Moderato
2 – Allegro molto capriccioso
3 – Lento
Quarteto de cordas no. 4, Sz 91 (1928)
4 – Allegro
5 – Prestissimo, con sordino
6 – Non troppo lento
7 – Allegretto pizzicato
8 – Allegro molto
Quarteto de cordas no. 6, Sz 114 (1939)
9 – Mesto – Più mosso, pesante – Vivace
10 – Mesto – Marcia
11 – Mesto – Burletta
12 – Mesto
Magyar Vonósnégyes
Zoltán Székely e Mihály Kuttner, violinos
Dénes Koromzay, viola
Gábor Magyar, violoncelo
Gravado em 1962
Quem gosta de gravações históricas, e principalmente quem lhes sabe dar os descontos pelas limitações das técnicas fonográficas então disponíveis, gostará desse registro do quarteto Amar-Hindemith, feito em 1926. Trata-se não só da primeira gravação do quarteto no. 2 de Bartók, como também da primeira gravação comercial de qualquer obra do compositor – e, sim, um dos “Hindemith” do quarteto é o próprio, a tocar viola; o outro é seu irmão, o violoncelista Rudolf. Só não me perguntem por que raios a Polydor trocou esse logotipo maneiro pelo seu atual: jamais saberia lhes responder.
Vassily
Caríssimo Vassily!
Estas postagens iniciais do ‘novo’ projeto estabelecem um nível de excelência muito alto!
Parabéns pela contribuição!
Que venham os outros quartetos e os concertos também!
Forte abraço do
René
que beleza!!!!! que maravilha!!!! que coisa rara e linda!!!! muito, muito obrigado!!!
p.s. por favor, revalide as sontas de mozart com a explendorosa mitsuko uchida!!!
vielen dank!!!!