Como a ___________ [insira aqui sua hipérbole] “Hammerklavier” dispensa apresentações, foco aqui num de seus grandes intérpretes.
Falo “um dos grandes” porque, claro, jamais haverá uma realização completamente satisfatória de qualquer obra musical, quanto menos dessa mais transcendental de todas as sonatas daquele século. Suas dificuldades eram tão grandes que Beethoven, que já não tinha mais ouvidos para tocar em público, além de sérias dúvidas quanto à qualidade dos músicos britânicos (George Thomson que o diga), concordou com que seu editor inglês lançasse somente os três primeiros movimentos, deixando o complicadíssimo finale numa publicação em separado – mesmo expediente que, como veremos, adotaria para com sua Grande Fuga para quarteto de cordas. Nessa curiosa versão, o imenso Adagio sostenuto – que, sozinho, era mais longo que a maioria das sonatas para piano da época – era o movimento central, e a “Hammerklavier” era encerrada pelo lépido e brevíssimo Scherzo.
Viena viu a sonata sair inteira da prensa, com os movimentos na ordem que hoje conhecemos – a mesma em que foram compostos. A reação foi estupefata e unânime em considerá-la difícil de compreender e impossível de tocar, e não há registro de que seu dedicatário – o arquiduque Rudolph, excelente pianista – a tenha tocado, pelo menos em público. Sua estreia aconteceria somente em 1836, dezoito anos depois de sua composição, por um Franz Liszt que, mesmo já histericamente idolatrado em toda Europa, colheu tão só olhares de incompreensão.
Quase todo pianista que se preza tenta escalar este K2 pianístico, e alguns são insensatos a ponto de legar gravações para que a posteridade lhes dê pedradas. O primeiro foi Artur Schnabel, já distante de seu apogeu, mas bastante fiel às prescrições de Beethoven e atento aos andamentos insanamente rápidos, dos quais até um pianista genial como Glenn Gould (que só tocou a “Hammerklavier” comedidamente na rádio e a considerava “horrendamente difícil”) sabia fugir. Outras gravações notáveis apareceram, muitas em verdade, e os nomes de Gilels, Yudina e Sokolov, que já escutamos na série, e os de Pollini, Perahia e Brendel, que os colegas já lhes trouxeram antes, estão entre os píncaros indiscutíveis da discografia.
Brendel terminando a “Hammerklavier” = um dos meus momentos favoritos na vida
A mim, no entanto, restava a curiosidade de saber o que o mais demoníaco dos pianistas da segunda metade do século XX teria a dizer sobre esta sonata.
Ecce homo
Sim, Sviatoslav Richter era meu intérprete dos sonhos para a “Hammerklavier”. Além da técnica formidável e do tremendo elã que trazia para todas as obras que tocava, sempre apreciei nele o espírito desbravador, aventureiro mesmo, com que mergulhava nas partituras e delas trazia novidades que só ele era capaz de encontrar. Por isso, fiquei meio jururu quando lançaram a caixa de Beethoven por Richter e a mastodonta não estava lá. Foi só recentemente que tive a imensa surpresa de descobrir não só um, mas três registros diferentes da Op. 106, todos realizados ao vivo e ao longo de pouco mais de duas semanas de 1975 – que foi, aparentemente, o período em que a “Hammerklavier” permaneceu no imenso repertório de Richter, pois ele nunca mais voltaria a tocá-la.
Assim, ofereço aos leitores-ouvintes as três leituras que Richter fez do colosso do renano, todas elas como encerramento de recitais de programas idênticos, iniciados pela sonata Op. 2 no. 3 e tendo, como interlúdio, três das bagatelas do Op. 126.
O primeiro foi realizado em Praga, cidade que Richter amava, de cujo Festival de Primavera era arroz de festa, e onde fez dezenas de gravações ao vivo para o selo Supraphon. A segunda foi feita em Aldeburgh, no festival fundado por seu amigo Benjamin Britten, e do qual o legendário pianista soviético foi a maior estrela naquele 1975. Por fim, um recital no Royal Festival Hall em Londres, notável pelo bis: ao terminar o medonhamente difícil finale da Op. 106, depois do qual quase todos pianistas saem correndo ao camarim para se hidratarem e chorarem, Richter decidiu tocá-lo de novo, porque não ficara satisfeito com sua execução anterior. Cada uma das leituras é excepcional, e vale a pena compará-las para fruir de tudo que esse genial pianista tinha a dizer sobre a “Hammerklavier”. Ainda que eu tenha reparos à sua abordagem do maravilhoso Adagio sostenuto, que de alguma maneira não soa como o cerne da obra, o que Richter faz na fuga sublima toda a crítica que eu lhe pudesse fazer. A escolha é difícil, mas a versão de Londres é minha preferida. Ouçam-nas e me digam qual vocês preferem.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Das Três Sonatas para piano, Op. 2
Compostas entre 1793-1795
Publicadas em 1796
Dedicadas a Joseph Haydn
No. 3 em Dó maior
1 – Allegro con brio
2 – Adagio
3 – Scherzo: Allegro
4 – Allegro assai
Das Seis bagatelas para piano, Op. 126
Compostas em 1824
Publicadas em 1825
5 – No. 1: Andante con moto, cantabile e compiacevole
6 – No. 4: Presto
7 – No. 6: Presto – Andante amabile e con moto
Grande Sonata para piano em Si bemol maior, Op. 106, “Hammerklavier”
Composta entre 1817-18
Publicada em 1819
Dedicada ao arquiduque Rudolph da Áustria
8 – Allegro
9 – Scherzo: Assai vivace
10 – Adagio sostenuto
11 – Introduzione: Largo – Allegro – Fuga: Allegro risoluto
Sviatoslav Richter, piano
Recital em 2/6/1975 no Rudolfinum de Praga, Tchecoslováquia
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Recital em 11/6/1975, na igreja de Blythburgh, Reino Unido, durante o Festival de Aldeburgh
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Recital em 18/6/1975, no Royal Festival Hall em Londres, Reino Unido
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Faixa-bônus: o movimento final da Hammerklavier,
executado como bis no recital de Londres, em 18/6/1975
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Vassily
Obrigado pela maravilhosa postagem, Vassily!! Sou fã incondicional de Richter, meu pianista preferido – embora não tanto em Beethoven (onde prefiro Pollini, especialmente nesta Hammerklavier). Tenho o CD triplo da Brilliant com sonatas de Beethoven (além de um álbum separado dele com a Appassionta), e tinha esta Hammerklavier apenas em mp3 (agora, com sua postagem, identifiquei que a que eu tinha era a de Praga). Gênio, o maior intérprete do piano no sec. XX na minha modesta opinião (seus Chopin, Liszt, Mussorgsky e Prokofiev são irretoáveis)… Pena que nunca vi gravações dele tocando a Walstein ou Moonlight… Grande abraço!!
Caro colega,
Dei uma olhada no CD duplo “Beethoven por Richter”, postado por FDP ano passado. São gravações dos anos 1990. Após os 70 anos, Richter não deve ter abordado essa temida sonata ao vivo. O mesmo vale para Pollini, que recentemente gravou ao vivo, aos 70 e muitos, só as 3 últimas sonatas.
Para contribuir com a dobradinha Richter/Beethoven, recomendo dois dos raros vídeos que ele fez, tocando ao vivo as opus 109 e 110. Joguem no Youtube algumas das seguintes palavras e acharão facilmente:
richter beethoven pushkin museum moscow 1991 109 110
Caro colega,
Tem toda razão. Richter, que não temia correr riscos, tampouco apreciaria fazer papelões, autocrítico que era. Schnabel, que tinha pouco mais de cinquenta, até hoje recebe mais pedradas por suas derrapadas na Hammerklavier do que reconhecimento por uma interpretação muito boa, atenta às prescrições de Beethoven, feita com técnicas incipientes de gravação elétrica e sem o benefício de editar o produto retocado de várias tomadas.
Desconhecia os vídeos recomendados, que adorei – grato pela sugestão! Sempre um privilégio ver Richter em ação.