Pedimos vênia hoje ao grande homenageado do ano e à sua mastodôntica Grande Sonata para o Piano de Martelos – que voltará, com muita gala, amanhã – para focarmos numa sua maiúscula intérprete.
Maria Yudina (1899-1970) é legendária e, tão logo começamos a ouvi-la, entende-se o porquê. O virtuosismo e a expressividade são evidentes, tanto quanto as inúmeras licenças poéticas que ela toma e que, longe de parecerem idiossincrasias, soam muito coerentes. Nosso patrão PQP sempre fala que há músicos que, em suas interpretações, demonstram não só imensa cultura musical, mas também revelam sua vasta cultura geral. Yudina é dessas intérpretes, e o que se chamou nela de “rigor intelectual” é, embora correto, apenas uma pequena entre as tantas janelas que ela nos oferece com suas leituras.
Nascida numa família judia, e mais tarde convertida ao cristianismo, Yudina estudou no Conservatório da então Petrogrado (hoje São Petersburgo) na mesma classe que Dmitri Shostakovich. Graduou-se em piano e também em teologia na Universidade local, e lecionou no Conservatório até ser de lá expulsa pelas críticas ao governo soviético. Desempregada, faminta e sem teto, sobreviveu de “bicos” até ingressar no Conservatório de Tbilisi, na república soviética da Geórgia, de onde seguiu para o Conservatório da capital da União Soviética. Em Moscou, lecionou no Instituto Gnessin, de onde foi demitida, outra vez, por conta de suas críticas abertas ao regime e suas convicções religiosas. Autorizada a manter sua carreira de recitalista, desde que seus recitais não fossem gravados ou divulgados, ela acabou banida por oferecer ao público, como bis, um poema do desgraçado Boris Pasternak (cujo “Doutor Zhivago” foi lido pela primeira vez no apartamento de Yudina), e não uma peça musical. Após o final do “gancho”, que durou cinco anos, ela retomou a carreira e gozou duma certa celebridade, gravando febrilmente, nem sempre com os melhores pianos (o que é evidente em algumas gravações), como se adivinhasse que levaria mais um punhado de anos até morrer em Moscou.
Muito já se escreveu que Maria foi maior que Gilels e Richter, e que só não teve a importância artística e pedagógica dos dois por conta de suas ferozes críticas ao regime soviético e por ser mulher. Não consigo lhes dizer que ela foi maior, mas certamente foi a mais original, e ardentemente independente. Não temia se alinhar aos perseguidos e oprimidos – além do supracitado Pasternak, foi amiga de Osip Mandelstam e protetora no banido Aleksandr Solzhenitsyn -, nem tocar repertório ocidental contemporâneo, dedicando recitais inteiros à música “degenerada” de Hindemith, Krenek e Bartók. Não temia sequer Stalin, que lhe enviou uma vultosa quantia como recompensa por uma gravação de Mozart, e que acabou doada para a suprimida Igreja Ortodoxa Russa, junto com a seguinte resposta ao “caucasiano do Kremlin“:
Eu rezarei por você dia e noite e pedirei ao Senhor que perdoe seus grandes pecados antes do povo e do país. ‘
Quem tem a coragem de dizer isso ao Továrich Koba certamente não temeria tocar a leviatânica “Hammerklavier” do jeito que ela toca. Ouçam com seus próprios ouvidos, porque… só ouvindo vocês vão acreditar.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Grande Sonata para piano em Si bemol maior, Op. 106, “Hammerklavier”
Composta entre 1817-18
Publicada em 1819
Dedicada ao arquiduque Rudolph da Áustria
1 – Allegro
2 – Scherzo: Assai vivace
3 – Adagio sostenuto
4 – Introduzione: Largo – Allegro – Fuga: Allegro risoluto
Sonata para piano em Mi menor, Op. 90
Composta em 1814
Publicada em 1815
Dedicada ao príncipe Moritz von Lichnowsky
5 – Mit Lebhaftigkeit und durchaus mit Empfindung und Ausdruck
6 – Nicht zu geschwind und sehr singbar vorgetragen
Sonata para piano em Lá maior, Op. 101
Composta em 1816
Publicada em 1817
Dedicada à baronesa Dorothea Ertmann
7 – Etwas lebhaft, und mit der innigsten Empfindung. Allegretto, ma non troppo
8 – Lebhaft, marschmäßig. Vivace alla marcia
9 – Langsam und sehnsuchtsvoll. Adagio, ma non troppo, con affetto
10 – Geschwind, doch nicht zu sehr, und mit Entschlossenheit. Allegro
Sonata para piano em Dó menor, Op. 111
Composta em 1821-22
Publicada em 1823
Dedicada ao arquiduque Rudolph da Áustra
11 – Maestoso – Allegro con brio ed appassionato
12 – Arietta – Adagio molto semplice e cantabile
Maria Yudina, piano
Documentário russo, com legendas em inglês, sobre Yudina. Para quem é, como
eu, fascinado pela grande artista, vale cada segundinho.
Vassily
Impossivel cansar de ouvir estas sonatas.
Em tantas gravacoes que estao disponiveis aqui no PQP, voces ainda conseguem surpreender e trazer novidades.
Historia interessantissima dessa pianista!
Não conhecia essa pianista – que grande intérprete, muito original!! procurei, tem no YouTube, tem ela tocando tb a Moonlight, outra interpretação instigante – infelizmente, numa gravação ao vivo de qualidade sonora horrível
Olá, Eduardo!
Incrível a Yudina, não?
Uma boa parte das gravações dela acaba por padecer dos males que você percebeu no vídeo com a “Luar”. O boicote a ela impediu-a, por um bom tempo, de gravar em estúdios, e muitos dos seus recitais, que são as fontes da maioria dos registros que temos dela em ação, aconteceram em salas secundárias com pianos subótimos. Na própria Hammerklavier, principalmente no primeiro movimento, tenho a sensação de que lhe faltou piano.