A inauguração do novo teatro alemão na cidade de Pest (ainda não unificada com sua vizinha Buda, que do outro lado do Danúbio era então capital da Hungria) trouxe, em 1811, duas mui bem-vindas encomendas a Beethoven.
A primeira delas foi a música incidental para Die Ruinen von Athen, uma peça de August Friedrich Ferdinand von Kotzebue (1761-1819). Apesar do nome, “As Ruínas de Atenas” era um descarado veículo de propaganda da dominação austríaca da Hungria. Acompanhem a sinopse: a deusa Atena acorda dum sono de dois mil anos e encontra um casal que lamenta a ocupação da Grécia pelos otomanos, descritos das mais desabonantes maneiras. Constatando com desgosto as ruínas em que os turcos deixaram a cidade, Atena é levada por Hermes a Pest (!), chamada de Nova Atenas (!!) onde assiste, no novo teatro alemão (!!!), a um triunfo das musas Talia e Melpômene, na companhia de… Franz II, Sacro Imperador Romano-Germânico (!!!!). Entre as estátuas das duas, Zeus erige um busto de Franz (!!!!!), que é coroado por Atena. Para arrematar a vergonha alheia (e a massagem no ego do imperador), a peculiar celebração é encerrada por um coro a renovar os juramentos da tradicional lealdade húngara aos austríacos (!!!!!!).
Minhas googleadas pela cyberesfera não me trouxeram resenhas da estreia de “As Ruínas”, mas imagino que ela tenha agradado os germanófonos de Pest tanto quanto deve ter deixado tiriricas os magiares, sempre ferrenhos nacionalistas. O fato é que Beethoven – até então reticente quanto a peças de ocasião – não ficou desgostoso com a sua contribuição. A chamada “marcha turca”, que conta com a curiosa instrução em alemão de usar “todos instrumentos barulhentos possíveis, como castanholas, pratos e assemelhados”, foi um imenso e imediato sucesso que suscitou muitas paródias, paráfrases e reinvenções, a começar pelo próprio Beethoven, com sua série de variações para piano do Op. 76.
Outra prova de que a música para “As Ruínas” não o envergonhou viria dez anos depois, quando encontramos Ludwig, então veterano do Congresso de Viena e de suas composições de ocasião, já com trambolhos sensacionalistas como “A Vitória de Wellington” e “O Momento Glorioso” no currículo, e sem mais quaisquer pudores em compor o que fosse necessário para agradar ao público. Quando o convidaram para a reinauguração do Theater in der Josefstadt em Viena, ele prontamente sugeriu remontagem de “As Ruínas de Atenas”, imaginando, todo pimpão, o quão rapidamente conseguiria reelaborar a música que já escrevera. Não contava ele, no entanto, com a intervenção de um certo Carl Meisl, que adaptou a peça de Kotzebue e, mudando as letras e acrescentando-lhe outros números, ferrou com as pretensões beethovenianas de maciota. Além de ter que providenciar música para as adições de Meisl (como a ária para soprano e coro Wo sich die Pulse, WoO 98), ele reformulou o que compusera em 1811, adaptando um dos números de “As Ruínas” (a Marcha e o Coro “Schmückt die Altäre”) para permitir sua execução independente, publicando-o separadamente como seu Op. 114. Também, notavelmente, descartou a acanhada abertura antiga e acrescentou uma nova abertura, concebida numa escala muito maior que o restante da música incidental. Nela, Beethoven exibiu os primeiros produtos de seu dedicado estudo do contraponto nas obras de Händel e J. S. Bach. A obra resultante, conhecida como “A Consagração da Casa”, Op. 124, é uma de suas melhores aberturas e tem lugar merecidamente cativo nos programas das salas de concerto.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Die Weihe des Hauses, abertura em Dó maior para a peça de ocasião de Carl Meisl, Op. 124
Composta em 1822
Publicada em 1825
Dedicada ao príncipe Nikolay Golitsyn
1 – Maestoso e sostenuto – Allegro con brio
“Die Weihe des Hauses”, Musik zu Carl Meisls Gelegenheitsfestspiel (Música para “A Consagração da Casa”, peça comemorativa de ocasião de Carl Meisl), Hess 118
2 – Coro invisível: Folge dem mächtigen Ruf der Ehre!
Wo sich die Pulse, coro para “Die Weihe des Hauses”, WoO 98
3 – Allegro ma non troppo e un poco maestoso
Marcha e coro para “Die Ruinen von Athen”, peça de August von Kotzebue, Op. 114
4 – Assai moderato
“Die Ruinen von Athen”, abertura e música incidental para a peça de August von Kotzebue, Op. 113
Composta entre 1811-12
Publicada em 1823 (abertura) e 1846
Dedicada ao rei Friedrich Wilhelm IV da Prússia
5 – Abertura. Andante con moto – Allegro, ma non troppo
6 – Coro: “Tochter des mächtigen Zeus” Andante poco sostenuto
7 – Diálogo: “Versöhnt”
8 – Dueto: “Ohne Verschulden Knechtschaft dulden”. Andante con moto – Poco piu mosso
9 – Diálogo: “Wo sind wir”
10 – Coro dos Dervixes: “Du hast in deines Ärmels falten”. Allegro ma non troppo
11 – Diálogo: “Ha! Welchen Unsinn hat mein Ohr vernommen!”
12 – Marcia alla turca. Vivace – Diálogo: “He! Achmet!”
13 – Harmonie auf dem Theater, Melodrama: “Es wandelt schon das Volk im Feierkleide und fullt die weiten Strassen und frohlockt!”
14 – Diálogo: “Wo sind wir nun”
15 – Marcia – Diálogo: “Schau dieser Kinder fröhliches Gewühl” – “Schmückt die Altare”. Assai moderato
16 – Recitativo: “Mit reger Freude”. Vivace
17 – Coro: “Wir tragen empfängliche Herzen im Busen”. Allegretto ma non troppo
18 – Ária com coro: “Will unser Genius noch einen Wunsch gewähren?”. Adagio – Allegro con brio
19 – Monólogo: “Nicht in des Königs furchtgebietendem Glanze”
20 – Coro: “Heil unserm König, heil!”. Allegro con fuoco
Roland Astor, Angela Eberlein, Claus Obalski, Ernst Oder e Leah Sinka, narradores
Reetta Haavisto, soprano
Juha Kotilainen, baixo
Chorus Cathedralis Aboensis
Turun Filharmoninen Orkesteri (Orquestra Filarmônica de Turku)
Leif Segerstam, regência
CD BÔNUS 1: O mundo tem, hoje, aproximadamente 7,6 bilhões de seres humanos. Talvez algum entre eles tenha acordado hoje com a vontade inadiável de ouvir a música para Die Weihe des Hauses da forma que Beethoven a organizou, adaptando a golpes de facão as indesejadas alterações de Carl Meisl ao libreto original de Die Ruinen von Athen – e, talvez, não tenha entendido, pelo CD anterior, como a música foi executada na reinauguração do Theater in die Josefstadt. Se por acaso você for este ser humano, seus problemas acabaram: aqui está a música para Die Weihe des Hauses como foi tocada na efeméride a que se destinou – a única diferença é que, no coro final, a palavra König (“rei”) é trocada por Kaiser (“Imperador”). Baixe o disco e aproveite seu dia de sorte.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
“Die Weihe des Hauses”, Musik zu Carl Meisls Gelegenheitsfestspiel (Música para “A Consagração da Casa”, peça comemorativa de ocasião de Carl Meisl), Hess 118
1 – Abertura [Op. 124]
2 – No. 1: Unsichtbarer Chor (Coro invisível) »Folge dem mächtigen Ruf der Ehre!« [adaptado do Op. 113 no. 1]
3 – No. 2: Dueto »Ohne verschulden Knechtschaft dulden« [Op. 113 no. 2]
4 – No. 3: Coro dos Dervixes »Du hast in deines Ärmels falten« [Op. 113 no. 3]
5 – No. 4: Marcia Alla Turca [Op. 113 no. 4]
6 – No. 5: Coro com solo de soprano: »Wo sich die Pulse jugendlich jagen« – »Laßt uns im Tanze« [WoO 98]
7 – No. 6: Marcha com coro: »Schmückt die Altäre!« [Op. 114; adaptado do Op. 113 no. 6]
8 – No. 7: Melodrama »Es wandelt schon das Volk im Feierkleide« [Op. 113 no. 5]
9 – No. 8: Recitativo »Mit reger Freude« [Op. 113 [6a]
10 – Coro »Wir Tragen Empfängliche Herzen Im Busen« [Op. 113 no. 8] – Ária e coro »Will unser Genius noch einen Wunsch gewahren« [Op. 113 no. 7]
11 – No. 9: Coro »Heil Unserm Kaiser!« [Op. 113 no. 8]
Sylvia McNair, soprano
Bryn Terfel, barítono
Bruno Ganz, narração
Rundfunkchor Berlin
Berliner Philharmoniker
Claudio Abbado, regência
CD BÔNUS 2: Quando Hugo von Hoffmannstahl e Richard Strauss decidiram ressuscitar a esquecida música de Beethoven e a defunta peça de Kotzebue, eles acharam que a música do Op. 113 não bastava para preencher uma noite no teatro. Assim, acharam que seria boa ideia, só porque Prometeu e Atenas são ambos gregos, mesclar a música do balé “As Criaturas de Prometeus” com aquela para “As Ruínas de Atenas”. Qualquer leitura superficial dos libretos tê-los-ia feito perceber que eles nada tinham um com o outro, então resolveram criar um personagem – um misterioso visitante alemão – que dança com as entidades de “Prometeus” e, por fim, acaba por ver uma nova Acrópolis surgir em meio às ruínas em que, pensavam eles, Atenas fora tornada pelos otomanos. O curioso mexidão beethoveniano tem uma pitada só de Strauss: o intermezzo, que tem citações de sinfonias de Ludwig e, com meros dois minutos, não diz muito a que veio. Ainda assim, achei que a curiosidade justificaria o compartilhamento, e por isso eu deixo essa avis rara aqui com vocês:
Richard Georg STRAUSS (1864-1949)
Música para Die Ruinen von Athen, de August von Kotzebue, adaptada da música incidental de Ludwig van Beethoven para a peça Die Ruinen von Athen e para o balé Die Geschöpfe des Prometheus
1 – Overtura. Adagio – Allegro molto con brio
2 – Coro: “Trümmer der herrlichen Welt, erwachet”
3 – Dueto
4 – Marcia alla turca
5 – Dueto
6 – Chor der Derwische
7 – Melodram
8 – Arie
9 – Intermezzo
10 – Auftritt des Fremden
11 – Auftritt und Tanz von fünf Mädchen
12 – Auftritt und Tanz von vier Jünglingen
13 – Pastorale: Auftritt eines Jünglings und einer Bacchantin
14 – Rüpelhafter Spott-Tanz der vier Faune
15 – Ein Zug springender Bacchantinnen, die Faune
16 – Bacchanal
17 – Marsch und Chor
Bodil Arnesen, soprano
Yaron Windmüller, barítono
Franz-Josef Selig, baixo
Chor der Bamberger Symphoniker
Bamberger Symphoniker
Karl Anton Rickenbacher, regência
Vassily
Oi Vassily !
Ótima postagem ! Gostei muito dos 03 CD’s !!!!
Abração !