Já contei essa história aqui no PQPBach certa vez, mas vou contar de novo: em certa ocasião, ouvindo o mesmo Henrik Szeryng tocando esta mesma Sonata “Primavera”, mas com a Ingrid Heubler, em alto volume, fui chamado pela vizinha. Pensei que ia reclamar do volume alto, mas para minha surpresa, ela veio perguntar que música tão linda era aquela que eu estava ouvindo. Falei que era Beethoven e desde então, ficamos amigos. Beethoven unindo duas pessoas que até então nunca haviam se falado, mesmo vivendo um ao lado do outro.
Quero inaugurar a Primavera deste ano tão tenso e triste como tem sido o de 2020 como duas obras que antes de tudo me trazem esperança de dias melhores. Não quero soar piegas, nem repetir o bordão de certo canal de TV que tem uma campanha aqui no Estado que diz que ‘vai passar’. Mas sim, sempre passa. O tempo não para.
O pianista Arthur Rubinstein e o violinista Henrik Szeryng foram grandes estrelas em seus instrumentos, verdadeiras lendas do século XX. E assim como em outra gravação que trouxe em outra ocasião para os senhores com esta dupla, onde tocavam as Sonatas de Brahms, aqui trago as duas obras primas de Beethoven, as Sonatas ‘Primavera’ e a ‘Sonata a Kreutzer’, interpretadas com maestria, há exatos sessenta anos, sim, meus caros, lá do tempo em que os dinossauros dominavam a Terra. O tempo não para, a fila anda, como sempre me lembra René Denon, e para alguns estas interpretações podem soar datadas, mas quem se importa? A essência está ali, é Beethoven no seu apogeu criativo.
Assim como minha vizinha se sentiu inspirada ao ouvir esta “Sonata Primavera” naquela ocasião, espero que os senhores ouçam estas obras com o coração, deixem a beleza penetrar, sintam a genialidade de um genial compositor aelmão surdo, e que viveu há mais de duzentos anos, calar fundo em suas almas, e pensem neste início de Primavera como um novo início para nós, pobres e reles seres mortais que se consideram superiores ao que os cerca.
Sonata para Piano e Violino nº 9 em Lá Maior, op. 47 “Kreutzer”
- Adagio sostenuto – Presto
- Andante con variazone
- Finale – Presto
Sonata para Piano e Violino nº 5 em Fá Maior, op. 24 “Primavera”
4. 1 Allegro
4.2 Adagio molto espressivo
4.3 Scherzo. Allegro ma non troppo
4.4 Rondo. Allegro ma non troppo
Arthur Rubinstein – Piano
Henryk Szeryng – Violino
Eu tenho uma história parecida, mas eu estava do outro lado do muro. Tinha um vizinho que todo sábado de manhã, lá pelas dez, começava com uma sessão de jazz, era só Coltrane, Ellington e companhia limitada que rolava, isso durava até pelo meio-dia quando o cara saia pra ir gastar a energia dos cachorros com a esposa dele. Um dia resolvi abordar o cara e disse que eu acordava aos sábados ao som da música que ele botava pra tocar, ele já veio pedindo desculpas, mas não deixei ele terminar dizendo que eu adorava aquilo e que ficaria triste se ele não continuasse. Ficamos amigos, uma pena que não mantive o contato depois que me mudei daquela casa, na qual aliás permaneci por pouquíssimo tempo. Vizinho desse tipo é difícil de encontrar!
Sal, vizinhos assim são raros. Minha vizinhança, atualmente, só ouve sertanejo universitário nos seus churrasquinhos de final de semana. É triste ver como está tudo nivelado por baixo.