Quando aqueles dedos da mão direita começaram a curvar-se teimosamente, Leon Fleisher, então com trinta e poucos anos e a requisitada agenda cheia para talvez mais trinta, não imaginava que eles lhe davam os primeiros sinais de um então inominado problema que, eventualmente, o faria perder completamente o controle dos movimentos da mão direita.
Após submeter-se sem sucesso a diversos tratamentos experimentais – muitos deles com o grande pianista e tremendo amigo Gary Graffman, sobre cuja mão direita também recaiu a mesma desgraça -, Fleisher não se deu por vencido e, sem abandonar a busca por uma cura, passou a explorar o repertório escrito para a mão esquerda dos pianistas, gravando-o e levando-o em turnês pelo planeta.
O compositor William Bolcom homenageou Graffman e Fleisher, amigos e companheiros de infortúnio, compondo um concerto para dois pianos tocados com a mão esquerda, cuja estreia mundial corresponde à gravação do vídeo acima
A maior parte desse significativo repertório deve-se a um só homem: o pianista vienense Paul Wittgenstein, que perdera o braço direito em combate na Primeira Guerra Mundial e, admiravelmente, retomou sua carreira artística após o armistício. Obstinado e, não menos importante, muito endinheirado, fez três ciclos de encomendas a compositores renomados para que lhe criassem obras executáveis somente com a mão esquerda. O primeiro ciclo, nos anos 20, viu surgirem obras de Erich Wolfgang Korngold, Richard Strauss, Bohuslav Martinů e Franz Schmidt. O segundo, nos anos 30, incluiu Maurice Ravel e Sergei Prokofiev. Por fim, entre 1940-45, depois de fugir do Nazismo e radicar-se nos Estados Unidos, Wittgenstein solicitou obras aos ingleses Benjamin Britten e Norman Demuth.
O pianista pagava bem e exigia muito, de modo que as estreias das obras e os direitos de longa data sobre sua execução ficavam, contratualmente, sob sua responsabilidade. Ademais, contrariando o “pagando bem, que mal tem?” com que certamente aquela grana toda sorria naqueles bicudos tempos de guerra na Europa, os compositores não ganharam muitos mimos de Wittgenstein. O concerto de Prokofiev – que ouvirão a seguir – foi devolvido com um agradecimento e a ressalva de que o dedicatário não entendera “uma só nota dele” e que, enquanto a iluminação não viesse, ele não o tocaria. O concertino de Martinů foi também devolvido, o que foi sorte melhor que a Klaviermusik de Paul Hindemith, que Wittgenstein estudou e, sem entender tchongas, escondeu tão bem entre seus papeis que a peça só foi encontrada depois da morte de sua esposa, em 2001. Três anos depois de redescoberta, e oitenta anos após sua composição, a Klaviermusik foi pela primeira vez ouvida em público, estreada por nosso homenageado, Leon Fleisher, em 2004.
Entre toda a, chamemo-la assim, “Wittgensteiniana” para a mão esquerda, o concerto de Ravel é certamente a obra mais célebre. Concebido em um só movimento com seções contrastantes, e iniciando com um sensacional solo de contrafagote, ele distingue-se pela intrincada escritura pianística que emula, com muito sucesso, a impressão dum pianista a tocar com dez dedos. Consta que, ao ouvi-lo tocado pelo dedicatário, Ravel enfureceu-se com alterações arbitrárias que este fizera na orquestração e, pior ainda, com vários cortes, e nunca mais falou com Wittgenstein. Este, pelo jeito um homem de poucas papas na língua, também levou uma carga de azia para o normalmente pacífico Benjamin Britten, que não levou tanta fé em suas “Diversions” quanto deveria e, talvez contaminado pela pentelhância do pianista, acabou por não promover sua obra mesmo depois da morte do encomendante. É uma pena, porque é uma composição muito bem trabalhada que, assim como o concerto de Prokofiev, não busca imitar o efeito de duas mãos a tocarem, e sim explorar o teclado como um novo meio.
Joseph Maurice RAVEL (1875-1937)
Concerto para piano e orquestra em Ré maior, para a mão esquerda
1 – Lento – Andante – Allegro – Tempo 1˚
Sergey Sergeyevich PROKOFIEV (1891-1953)
Concerto para piano e orquestra no. 4 em Si bemol maior, Op. 53, para a mão esquerda
2 – Vivace
3 – Andante
4 – Moderato
5 – Vivace
Benjamin BRITTEN (1913-1976)
Diversions, para piano (mão esquerda) e orquestra, Op. 21
6 – Theme. Maestoso
7 – Var. 1: Recitative. L’Istesso Tempo
8 – Var. 2: Romance. Allegretto mosso
9 – Var. 3: March. Allegro con Brio
10 – Var. 4: Arabesque. Allegretto
11 – Var. 5: Chant. Andante solennemente
12 – Var. 6: Nocturne. Andante piacevole
13 – Var. 7: Badinerie. Grave
14 – Var. 8: Burlesque. Molto moderato
15 – Var. 9a: Toccata I. Allegro
16 – Var. 9b: Toccata II. L’Istesso tempo
17 – Var. 10: Adagio
18 – Finale – Tarantella. Presto Con Fuoco
Leon Fleisher, piano
Boston Symphony Orchestra
Seiji Ozawa, regência
Além da notável carreira concertística com obras para a mão esquerda, Leon Fleisher distinguiu-se como pedagogo. Era muito querido por sua postura amável, que buscava contribuir com o aperfeiçoamento de seus estudantes sem moldar-lhes o estilo a seu próprio. Sugiro fortemente àqueles que entendem inglês que acompanhem esta masterclass em que a extraordinária Yuja Wang – então com 17 anos e aluna de Gary Graffman, grande amigo de Fleisher – desenvolve sua interpretação duma das mais sublimes sonatas de Schubert através de gentis contribuições do mestre.
Vassily