Mais de quatro anos depois de compor a tonitruante “Appassionata”, Beethoven voltou à sonata para piano. O ínterim, como sabemos, foi ocupado por grandes obras, de amplos gestos – duas sinfonias, quatro concertos, importantes quartetos de cordas – e transtornado por desgraças. A progressão da surdez e o desespero com seu isolamento crescente somaram-se mais uma invasão napoleônica, que levou à fuga de muitos de seus patronos e ao agravamento de sua penúria material.
O difícil período até o armistício foi passado na propriedade dos Brunsvik/Brunszvik, família de aristocratas húngaros que foi de fundamental importância para Ludwig. Franz von Brunsvik foi um generoso patrono e dedicatário de várias obras do compositor, tinha duas irmãs para quem Beethoven lecionou piano e que imortalizou, cada qual à sua maneira: Josephine, que é a mais provável destinatária da famosa carta à “Amada Imortal”, e Therese, a quem dedicou a sonata que ouvirão a seguir.
O conturbado ínterim entre a “Appassionata” e a Op. 78 reflete-se no caráter dessa obra, praticamente o oposto de sua grandiloquente, pretensiosa predecessora. Concisa, direta e sem firulas, foi a única composição de Beethoven na incomum tonalidade de Fá sustenido maior – tão rara e cheia de sustenidos em sua armadura de clave que o compositor sonegou vários deles no manuscrito. A sonata resume-se a dois breves movimentos: o primeiro intensamente lírico, o segundo cheio de verve, e é quase só piscar os olhos que está tudo terminado. Apesar de sua brevidade, ela era, junto com a “Appassionata”, uma das sonatas favoritas de Beethoven, opinião que, do alto de minha desimportância, compartilho com o grande homem, por ser um microcosmos de sua genial capacidade de invenção ao piano.
A interpretação de Glenn Gould, para variar, ignora amplamente muitas das indicações do compositor. Nada há aqui, claro, que se compare à sua sabotagem contra a “Appassionata”, mas o lindo cantabile do primeiro movimento é apenas sugerido, e Gould passa quase sem pausas para o finale, a que atribui um ritmo frenético. Ainda assim, esta é uma de minhas interpretações favoritas da Op. 78, e é um mistério por que, mesmo gravada em estúdio, não tenha sido lançada durante a vida do pianista. Somente nos anos 90 ela foi posta em disco, pareada com uma “Hammerklavier” transmitida pela Canadian Broadcasting Corporation, pela qual não sinto o mesmo entusiasmo. O próprio Gould declarou, várias vezes, que não se impressionava com os grandes gestos da “Hammerklavier” e que a considerava antipianística. Mais que isso, ela foi a única obra que suscitou, até onde pude saber, uma sua reclamação pública acerca de seus desafios técnicos – ele a chamou de “horrendamente difícil”, e isso não era algo que se ouvia dele todo dia. A técnica impecável de Gould, claro, assegura uma limpidez incomum a esta mais transcendental das sonatas de Beethoven, mas seu pendor por escolher tempos mais ruminativos, que aumentava a medida em que colecionava grisalhos, acaba tirando muito do elã da obra, especialmente do primeiro movimento. O extraordinário Adagio, cerne da “Hammerklavier”, tem uma leitura muito bonita que, no entanto, nada tem da paixão e do sentimento prescritos na indicação do andamento, e a fuga do finale, apesar do esperado show-room da incomparável capacidade de Gould de realizar com clareza as mais intrincadas passagens contrapontísticas, acaba padecendo da mesma competente frigidez.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Sonata para piano em Fá sustenido maior, Op. 78, “À Thérèse”
Composta em 1809
Publicada em 1810
Dedicada a Therese von Brunsvik
1 – Adagio cantabile – Allegro, ma non troppo
2 – Allegro vivace
Sonata para piano em Si bemol maior, Op. 106, “Große Sonate für das Hammerklavier”
Composta entre 1817-1818
Publicada em 1819
Dedicada ao arquiduque Rudolph da Áustria
3 – Allegro
4 – Scherzo. Assai vivace
5 – Adagio sostenuto. Appassionato e con molto sentimento
6 – Largo – Allegro risoluto
Glenn Gould, piano
Vassily
Meninos do PQP,
Que bom rever vocês!
Estava eu quase de luto, consolado em Língua Portuguesa apenas por Carlinus, a quem novamente registro cá meus agradecimentos por fornecer-me o novo link de vocês.
Saudades saciadas, volto a frequentá-los diariamente!
Vida longa e próspera ao PQP Bach!!!