BTHVN250 – A Obra Completa de Ludwig van Beethoven (1770-1827) – Leonore, Op. 72a – Blomstedt

Para acompanhar o precioso registro do sueco, da tremenda orquestra e do ótimo time vocal, ofereço-lhes a um texto de René Jacobs, que acompanha sua gravação de “Leonore”, em que ele defende suas qualidades e justifica sua preferência por ela a “Fidelio”. Claro que teria sido melhor se minha tradução acompanhasse a própria postagem correspondente, mas eu só consegui conclui-la agora e, por considerá-la uma excelente apologia a “Leonore”, alcanço-a como arremate a nosso miniciclo.

ooOoo

Quatro razões pelas quais eu penso que a “Leonore de 1805 é a melhor versão da ópera de Beethoven
René Jacobs

Das três versões existentes da ópera de Beethoven – “Fidelio” (1814), “Leonore” (na revisão de 1806) e a versão original de 1805, eu gostaria de discutir essa última, já que a considero a mais bem-sucedida, pelos seguintes motivos:

Os cortes

A “Leonore” de 1805 é a primeira versão, sem cortes, que Beethoven completou, após dois anos de
trabalho entusiasmado sobre o libreto inspirador de Joseph Sonnleithner, adaptando-o para obter grande sucesso em sua estréia no Theater an der Wien. Pretendia-se que cada número fosse um genuíno tour de force, refletindo sua admiração pelas óperas de Mozart e, ao mesmo tempo, tentando mostrar que o rapaz de 35 anos poderia se sair ainda melhor como compositor – especialmente com relação à elaboração de arcos de desenvolvimento em larga escala dentro da sonata-forma. Infelizmente, entretanto, a estreia foi um fracasso: antes de tudo, porque praticamente não havia virtualmente qualquer elemento de língua alemã na plateia – quase toda a nobreza vienense tinha fugido da cidade antes da chegada das tropas invasoras de Napoleão, e o público consistia principalmente de soldados franceses. Além disso, a orquestra e os cantores não conseguiram lidar com a difícil música e foram simplesmente inadequados, de modo que os andamentos não foram os corretos e a coisa toda se arrastou.

O musicólogo Willy Hess, que revisou a história completa da ópera de Beethoven e analisou e comparou exaustivamente as três versões, conta-nos duma reunião entre Beethoven e seus amigos vienenses, que o convenceram de que a ópera era brilhante, mas longa demais. A performance da ópera, de fato, deve ter parecido muito longa – ou arrastada – para eles. O resultado foi a revisão da obra para as récitas de 1806, na qual encontramos cortes incompreensíveis, com números inteiros removidos e cortes de até 150 compassos em outros. Beethoven queria agora espremer tudo em dois atos, em vez dos três de 1805. Esse processo de compressão levou ao sacrifício de árias magníficas, como a “ária do ouro” de Rocco e o dueto entre Marzelline e Leonore no segundo ato, “Um in der Ehefrohzuleben“, acompanhado de violino e violoncelo solo. As intervenções de Beethoven parecem quase uma autoagressão, pois, a partir de nosso ponto de vista hoje, com os ritmos corretos, devo concluir que nada parece longo demais – uma visão que, aliás, foi compartilhada por Willy Hess, que também considerava  a primeira versão a mais bem-sucedida. Infelizmente, no século XIX, prevaleceu a visão de que apenas o Fidelio de 1814 era obra dum mestre maduro, como se o Beethoven de 1805, que já havia composto a “Eroica“, ainda fosse um jovem aprendiz.

A abertura

Das quatro aberturas remanescentes, a chamada “Leonore no. 2”, de 1805, é a mais moderna e convincente
– existe um amplo consenso sobre isso. Seu aspecto mais convincente [nota de tradução: o termo “convincente” é repetido no original] é que ela antecipa o drama e nos prepara musicalmente para ele, como um poema sinfônico avant la lettre, pode-se dizer. A escala descendente na introdução lenta simboliza a descida de Florestan para a masmorra profunda de sua prisão, que ocorreu antes do início do primeiro ato. Assim, o principal tema da exposição da abertura é a melodia com a qual Florestan surgirá pela primeira vez no terceiro ato.

A complexa seção de desenvolvimento é seguida pelo chamado “trompete redentor”, de modo que aqui a resolução do drama apareça na textura musical. É por isso que essa abertura não requer uma recapitulação, um fato de que Beethoven reconheceu claramente em sua dramaturgia. Mas aqui também seus conselheiros o convenceram, após o fiasco da estréia, a dar uma guinada para o pior: uma abertura em forma de sonata, alegaram eles, precisava duma recapitulação, e por essa razão o compositor inseriu uma na abertura “Leonore no. 3” para as apresentações de 1806 e encurtou o desenvolvimento extremamente emocionante e musicalmente sofisticado para dar lugar a ela. A abertura “Fidelio”, que viria muito depois, é um movimento em sonata totalmente bem-comportado. A abertura “Leonore no. 2” é formal e  expressivamente a mais ousada e emocionante, e dramaturgicamente a introdução mais lógica para a trama.

A dramaturgia

Na “Leonore” de 1805 temos três atos, e nas versões posteriores,  apenas dois. Cada um desses três atos tem sua dramaturgia e atmosfera cuidadosamente pensadas. Cada um deles baseia-se num aumento gradual nas forças envolvidas, do solo ao quarteto ou coro. Cada um dos três atos pode ganhar o nome de um dos personagens principais. No primeiro ato, estamos em um Singspiel, e Marzelline desempenha o papel principal. No segundo ato, no entanto, o Singspiel tem que abrir caminho para um melodrama, com Leonore como personagem principal. O vilão Pizarro se junta ao conjunto, enquanto o personagem Jaquino desaparece, mas não Marzelline, como nas versões posteriores (ela canta um dueto com Leonore no jardim, com acompanhamento de violino obbligato e violoncelo, que representam os pássaros). A grande ária de Leonore é mais longa que em “Fidelio“. Há um concertino de três trompas e fagote. Para trompas naturais, essa parte é muito cansativa, levando os trompistas ao limite de suas capacidades. Em contraste com “Fidelio“, que omite as muitas passagens de coloratura de Leonore, sua ária aqui prova ser uma “scena” italiana no estilo das óperas de Cherubini, que tiveram grande sucesso na época.

Florestan seria, então, a figura do título do terceiro ato “trágico”. Sua entrada tem que esperar dois atos inteiros, até que ele possa finalmente cantar a ária cujo tema já ouvimos na abertura. No longo prelúdio orquestral que prepara sua entrada, ocorre algo muito incomum: os tímpanos não são afinados em quintas, como de costume, mas em Mi bemol e Lá; isto é, eles formam um trítono dissonante. Eles introduzem o tom de terror sombrio que o terceiro ato inicialmente exala. Aliás, Beethoven não foi o primeiro a usar essa sinistra afinação dos tímpanos: já se encontra na ópera de Salieri “La Grotta di Trifonio“, de 1785. A ária de Florestan permanece em Fá menor, sem a seção em Fá maior tão familiar de “Fidelio”. Alguns podem achar isso uma lástima, mas eu não, pois a música é muito mais adequada ao estado deplorável de Florestan no início do ato.

O final

Vamos dar uma olhada no final. O último ato, como aparece em “Fidelio”, é um anticlímax. A aparição de Florestan é seguida pelo dueto “cava-cova” de Leonore e Rocco e pelo trio com Florestan, em sua última refeição antes da execução, que ao mesmo tempo assume o caráter duma Última Ceia. O quarteto com Pizarro (no. 16) leva diretamente para o toque do trompete, sinalizando que o resgate está próximo. Aqui a tensão está resolvida e encerrada. O que se segue é uma representação um tanto simbólica de Leonore como a heroína de uma humanidade melhor (a esse respeito, “Fidelio” já está próximo dos dramas musicais de Wagner).

Em “Leonore“, as coisas são diferentes: Pizarro foge depois do quarteto e Rocco o acompanha depois de levar a pistola de Leonore. Os amantes permanecem sozinhos na masmorra e devem pensar que aqueles
serão seus últimos momentos, e que agora eles devem morrer uma “Liebestod” juntos. A “namenlose Freude” (“alegria sem nome”) que eles cantam é inexprimível ou “sem nome” porque não tem causa externa, e sim deriva de seu amor e solidariedade mútuos nessa situação extrema e desafiadora. Quando o “coro de vingança” começa de fora da cela, devemos assumir, junto com os amantes, que ele é cantado pelos soldados de Pizarro voltando-se contra os prisioneiros. Esperamos um final trágico. A porta se abre, mas ainda estamos na escuridão; somente lenta e gradualmente o coro entra e mostra ser… a voz do povo, os herdeiros daqueles que invadiram a Bastilha: eles vêm para se vingarem do déspota e tirano Don Pizarro, que só agora é feito prisioneiro. A tensão e o suspense hitchcockiano persistem até pouco antes
do fim, e muitas coisas permanecem inexplicadas por um bom tempo, como o papel de Rocco, que agora explica que tomou a pistola de Leonore como medida de proteção.

[baseado numa entrevista de René Jacobs para Gregor Herzfeld.  Traduzido por Vassily em julho de 2020]