Nenhuma festa de aniversário é completa sem que se fale mal do aniversariante, não é mesmo?
Então vamos falar mal de Robert: em algum momento de sua vida, ele resolveu seguir a voga e adicionar acompanhamento de piano a obras alheias. Não contente, olhou para sua prateleira de partituras e, fuçando a aba “Bach, J. S.”, dela catou um volume em que toda música se resumia a uma parte em clave de sol e, incontinenti, pôs-se a completar aquela paçoca com as carninhas de acordes e baixos que, pensava ele, tanto lhe faltavam.
O resultado é o que vocês aqui ouvem: do Alfa e do Ômega da Música, do maior gênio que já viveu neste triste planeta, do imenso Johann Sebastian Bach, as sacrossantas sonatas e partitas para violino – às quais não se pode apor o “solo”, porque aqui estão com… acompanhamento de piano.
Admito que o conceito, que me sugeriu uma ultrajante pichação, me foi muito pior que o que de fato ouvi: uma parte para piano realmente supérflua, a realizar alguns dos acordes e notas que o Demiurgo, numa de suas obras supremas, um exercício de contingências ao compor polifonicamente para um instrumento mormente monófono, resolvera tão só sugerir ao ouvinte.
Se há algum mérito nela, é o de que a contribuição de Schumann não é pervasiva. Com alguns minutos de audição, conseguimos nos acostumar a elas e pescar, vá lá, um que outro arroubo criativo nela. Advirto, no entanto, que é especialmente duro ouvir as geniais fugas das sonatas com a camada de pichação pianística – ao passo que a Chacona, talvez o ponto mais alto de toda Música, é menos pior do que se espera.
Para quem não me acusem de anacronismos, dou o braço a torcer: Schumann adorava Bach e escreveu o acompanhamento para suas obras com as melhores intenções. Apesar de amplamente reconhecido entre seus colegas músicos como um dos maiores mestres do passado, a redescoberta de suas obras para o público musical em geral – impulsionada por Felix Mendelssohn, que apresentou a Paixão segundo Mateus com imenso sucesso em Berlim – ainda era incipiente. Muitas das obras para instrumentos solo, incluindo quase toda literatura para teclado e as suítes, sonatas e partitas para cordas, eram tidas como obras-primas e valioso material de estudo, mas pouco apeteciam às plateias acostumadas a ver Liszts e Paganinis (mais sobre ele em breve) rugirem com seus instrumentos. Assim, entendemos os esforços de Robert como uma amorosa e, a meu ouvir, inana tentativa de tornar as grandes obras do velho Bach mais atraentes e, quiçá, menos estranhas aos ouvidos de sua época. Sua reverência ao mestre era tão grande que seu acompanhamento foi publicado exatamente como tal: somente uma partitura para piano, com pequenos excertos da parte de violino impressos em tipo miúdo para servirem como deixas ao intérprete. E, se vocês perceberem alguma diferença entre o que o violinista aqui tocar e o que estão acostumados a ouvir, não culpem o pobre Robert, e sim a edição das obras de Bach que ele tinha à disposição na época, com indicações dinâmicas e interpretativas acrescentadas por outrem, à qual ainda não se adicionara o valioso produto do trabalho musicológico que culminaria com as primeiras edições críticas da obra do Maior de Todos.
Os intérpretes nesta gravação desincumbem-se direitinho da tarefa inglória. O violinista Bedelian, cuja nacionalidade não descobri, mas que é de origem armênia e fez carreira no Reino Unido e nos Estados Unidos, dá algum tempero romântico – ma non troppo – aos frutos de Bach, a despeito de algumas barbeiradinhas, enquanto Lorna (adoro o nome!) Griffitt transpira bastante menos com a parte de Schumann. Baixem, ouçam, odeiem – e aproveitem para falar mal do aniversariante, que em breve voltamos com suas obras-primas. Ah – e quem achar que precisa de desinfetante para os ouvidos depois do que escutar, ofereço a restauração de duas postagens das sonatas e partitas in natura: uma com violino barroco, por John Holloway, e outra com violino moderno, por Christian Tetzlaff.
Johann Sebastian BACH (1685-1750)
Sonatas e partitas para violino solo, BWV 1001-1006
Robert Alexander SCHUMANN (1810-1856)
Acompanhamento para as sonatas e partitas de J. S. Bach para piano, WoO 8
Sonata no.1 em Sol menor para violino solo, BWV 1001
1 – Adagio
2 – Fuga
3 – Siciliana
4 – Presto
Partita no.1 in Si menor para violino solo, BWV 1002
5 – Allemanda
6 – Double
7 – Corrente
8 – Double
9 – Sarabande
10 – Double
11 – Tempo di Borea
12 – Double
Sonata no.2 in Lá menor para violino solo, BWV 1003
13 – Grave
14 – Fuga
15 – Andante
16 – Allegro
DISCO 2
Partita no. 2 em Ré menor para violino solo, BWV 1004
1 – Allemanda
2 – Corrente
3 – Sarabanda
4 – Giga
5 – Ciaccona
Sonata no.3 em Dó maior para violino solo, BWV 1005
6 – Adagio
7 – Fuga
8 – Largo
9 – Allegro assai
Partita no.3 em Mi maior para violino solo, BWV 1006
10 – Preludio
11 – Loure
12 – Gavotte en Rondeau
13 – Menuet I
14 – Menuet II
15 – Bourrée
16 – Gigue
Haroutune Bedelian, violino
Lorna Griffitt, piano
Para quem odiou o bedelho de Schumann e quiser ouvir Johann Sebastian sans Robert, recomendo “Bach in Tiradentes”, o primeiro registro em DVD das Sonatas e Partitas completas do Colosso de Eisenach, em que o mesmo Haroutune Bedelian interpreta, sem piano, as mesmas obras na belíssima igreja de Santo Antônio em Tiradentes, Minas Gerais.
Vassily
Gente, por caridade!
Que versão esquisita!
A gente perdoa, porque cada época e cada músico/a tem suas experiências psicodélicas, mas essa viagem de Schumann!…
Misericórdia!…
Sessenta anos apenas após a morte de Bach, e quanta diferença para pior!
Valeu como experiência, merci! Mais, jamais plus!
Eu me neguei a ouvir. Acho Schumann meio chato sozinho, então imagina estragando meu amado Bach. Fugi correndo e não quero nem saber da existência dessas coisas.
Bem que fazes, patrão. Temi mesmo pegar um gancho por tamanho esculacho com a obra de teu pai. Essa intervenção de Bob Schumann (como o chama nosso colega René Denon) é seriíssima candidata a postagem mais execrada entre músicos do século XIX. Como será que se sairia num páreo com Malmsteen, Saint Preux e Zamfir?
HAHAHAHAHA