Acho que é a história natural do melômano: começas pelo que te é mais próximo, e depois expandes teus horizontes (ou não). Eu, que comecei torturando a família com um piano velho em casa, derretia em gozo com a literatura pianística que escutava na rádio e reescutava em fitas cassete (googleiem, garotada!) que da rádio gravava, e com o que conseguia nas esporádicas compras na loja de Shylock Simpson (porque minha adolescência, ahimè!, foi em cruzados). Enquanto isso, calculava a quantidade de encarnações que levaria para coordenar meus incapazes dedos a ponto de tocar aquela segunda Rapsódia Húngara de Liszt como Horowitz, ou desembrutecê-los a ponto fazer o piano cantar em pianíssimo com acompanhamento em pianissíssimo como Rubinstein fazia nos noturnos de Chopin.
Esse inexorável círculo vicioso de incompetência e frustração ao teclado, que foi de modo inapelável sepultado quando fui buscar uma profissão menos frustrante (no que também fracassei), abriu-me ao menos a porteira do conhecimento da música para piano e, posteriormente, para música COM piano – fosse em duos ou em conjuntos de câmara, e daí para a música de câmara e suas diversas combinações de instrumentos. Havia, no entanto, uma fronteira – aquela que não conseguia transpor de JEITO MANEIRA, a dos quartetos de cordas.
Por mais que tentasse, não conseguia escutá-los. Cheguei a pensar que fossem um gosto adquirido, feito chimarrão, dobradinha ou hákarl, mas não adiantava: não os compreendia. Aquelas cordas, que pareciam fanhosas ou estridentes se comparadas aos seus ricos naipes em orquestra, não me pareciam capazes de agradar. E já desistira do caso quando, na rádio, ouvi uma música irresistivelmente ebuliente. Contei suas partes: um violino, dois violinos, um violoncelo e uma viola. Eureka – um quarteto de cordas que me agradou! E não só isso, me deixou embevecido com sua energia maníaca e encerramento furioso – fui conferir, e o locutor me contou que aquele era o finale do Razumovsky no. 3, exatamente na primeira das gravações que lhes apresento agora.
Corri à loja, não à de Shylock Simpson, porque era careiro e cobrava em dólares, e ademais já quase não tinha mais lanches a sacrificar por gravações naquele mês. Meu destino era uma salinha subterrânea onde uma doce senhorinha, com a voz da Marge Simpson (talvez fosse parente de Shylock) e apropriadamente chamada Margarida, recebia-me com afeto e cafezinhos. Para lá me atirei porque lembrava-me de ter visto uma caixa de CDs com o nome de Beethoven e alguns cavalheiros japoneses a brandirem seus instrumentos. Acertei: era o Tokyo String Quartet, eles tocavam os Razumovsky e aquela caixa (saudades, RCA Victor Red Seal!) estava ao alcance de meu famélico orçamento.
Eu, que sempre temi que o feixe de laser do que chamada “toca-discos laser” acabasse por furar o CD, convenci-me do contrário, porque passei horas e dias a ouvir aquele fugato em loop e o CD aqui ainda está, tanto que eu o ripei para compartilhar com vocês. Depois de calejar os tímpanos com aquele movimento, aventurei-me nas outras faixas, enquanto aprendia que aqueles quartetos tinham o nome do embaixador russo, que para o agrado do tal Razumovsky tinham cada qual um tema russo (explícito em títulos de movimentos nos dois primeiros, e supostamente embutido no Andantino do terceiro), e que eram possivelmente os quartetos mais sinfônicos escritos até então – razão, talvez, deles terem me fisgado.
Adorei-os por muito tempo e, mesmo vindo a conhecer outras gravações, sempre guardei a melhor memória possível da leitura do Tokyo String Quartet. Bem mais tarde, quando eu já era um barbudo a pagar meus próprios boletos, veio à luz uma nova gravação dos mesmos quartetos com o mesmo conjunto, parcialmente renovado, e com dois daqueles cavalheiros nipônicos já bastante grisalhos. Um tanto cabreiro, gerei mais um boleto e levei-os para casa. Tudo muito diferente, melhor trabalhado, ataques menos agressivos, vibratos menos pungentes. Gostei tanto que, na dúvida entre qual das gravações eu lhes ofereceria, resolvi oferecer as duas, para que possam compará-las e que me façam saber o que acharam delas.
E o que acho hoje dos Razumovsky? Continuo a apreciá-los, e aquele fugato segue firme em minha lista de movimentos irresistíveis, mas hoje escuto mais os últimos quartetos de Beethoven. Talvez sejam meus próprios grisalhos – ou, então, seja a história natural do melômano.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Três quartetos para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 59, “Razumovsky”
Compostos em 1806
Publicados em 1808
Dedicados ao conde Andrei Kirillovich Razumovsky
No. 1 em Fá maior
1 – Allegro
2 – Allegretto vivace e sempre scherzando
3 – Adagio molto e mesto – attacca
4 – “Thème Russe”: Allegro
No. 2 em Mi menor
5 – Allegro
6 – Molto adagio (si tratta questo pezzo con molto di sentimento)
7 – Allegretto – Maggiore: Thème russe
8 – Finale. Presto
No. 3 em Dó maior
9 – Andante con moto – Allegro vivace
10 – Andante con moto quasi allegretto
11 – Menuetto (Grazioso)
12 – Allegro molto
Tokyo String Quartet, em duas formações:
1ª formação:
Peter Oundjian, 1º violino
Kikuei Ikeda, 2º violino
Kazuhide Isomura, viola
Sadao Harada, violoncelo
Gravado em 1990-91
2ª formação:
Martin Beaver, 1º violino
Kikuei Ikeda, 2º violino
Kazuhide Isomura, viola
Clive Greensmith, violoncelo
Gravado em 2005
Mergulhando com o Borealis String Quartet no finale do terceiro Razumovsky
Vassily
“…Ah, segundo se diz, e acredito que seja verdade, Beethoven é um músico louco – pois estas peças não são música. Ele as apresentou a mim, ainda em manuscrito, e a seu pedido eu as dedilhei. Eu lhe disse que certamente ele não considerava essas obras como música! Ao que ele respondeu: “Oh! elas não são para você, mas para uma época posterior!” (violinista Felix Radicatti, ao visitar o músico inglês Thomas Appleby, em Manchester, 1810, e encontrar, sobre o piano, as partes recém-publicadas dos quartetos do Opus 59).
Em “A música e a vida de Beethoven”, de Lewis Lockwood, pág. 359).
Prezado Vassily, esses de hoje não sabem pelo que já passamos…Pela descrição de suas desditas para poder usufruir das Musas concluo com lágrimas sinceras que somos contemporâneos. No Rio de Janeiro nas décadas de 70-80 a Radio JB-FM tinha um programa noturno: Clássicos em FM. Todo dia entre 20 e 23 hs. Remetiam com antecedência para quem quisesse a programação do mês. Assim me programava para premir o REC e gravar k7s que tenho até hoje.
Tinha tbem uma loja em Copacabana, Modern Sound, com catálogos onde podia-se encomendar, a preço de dolar-cd,seja lá o que isso signifique, os desejados cds ou lps,era uma época de transição. O dia que ligavam dizendo que a encomenda desejada chegara era motivo de euforia. Tempos românticos que você , meu prezado, me fez reviver e pelo qual eu agradeço. Um grande abraço
JKEpprecht
Estimado João,
Mudam os nomes, os RGs e as cores dos cabelos, mas as histórias dos melômanos que se formaram naquela época são sempre as mesmas! Não posso dizer que sinta nostalgia, ou que fosse abrir mão dos imensos recursos disponíveis hoje em dia, mas certamente saborear gravações naquela época era uma experiência muito mais gratificante. Um abraço!
Gostei bastante da versão do Tokyo String Quartet para o op. 18* e, agora, dessas duas para o op. 59. O Razumovsky No.2 do segundo CD é impressionante, lindo. Agradeço.
* https://pqpbach.ars.blog.br/2020/02/16/bthvn250-ludwig-van-beethoven-1770-1827-seis-quartetos-para-cordas-op-18-tokyo/
Dilema terrível, o que fazer nesses casos. Dúvida e dúvidas que são como sementes, que regamos e nunca florescem.
Ok, dúvida vencida porém não direi nem sob tortura ou ameaças, e que a dúvida siga em seu segundo ato.