Parear duas das mais concisas sonatas de Beethoven com a segunda do grandiloquente Rachmaninoff – ainda que seja sua versão revisada e, se é que se pode dizer isso de algo de Rach, um pouco simplificada – é uma escolha pouquíssimo convencional. Aí os leitores-ouvintes olham a capa do disco, enxergam o intérprete e compreendem tudo: o que é convencional, afinal, na carreira de Ivo Pogorelić?
Nada, sem dúvidas – desde sua origem, quando havia Iugoslávia, um filho de pai croata e mãe sérvia que o colapso da federação transformou num croata nascido em Belgrado, passando por sua formação naquela capital e em Moscou, os estudos e posterior casamento com sua professora e mentora Aliza Kezeradze, nada, desde o começo, apontava para o frugal.
Mesmo que não entendam tchongas do idioma, vale a pena conferir Ivo sendo,
bem, Ivo desde os tempos de moleque.
Sua grande estreia no cenário mundial, dir-se-ia de sola, ou mesmo uma voadora dupla nas costas do estado das coisas musical foi, claro, o X Concurso Internacional Chopin de Varsóvia, em 1980, no qual, entre 180 competidores engravatados e engomados e prontíssimos para agradar os jurados na meca dos chopinianos, ele surgiu com esses trajes, essa cachopa e tocando Chopin dessa maneira:
O público amou o enfant terrible e transformou-o em seu queridinho. Os jurados dividiram-se. Lajos Kentner abandonou o barco no final da primeira etapa, alegando que “se gente como Pogorelić chega à segunda etapa, eu não posso participar do júri – temos critérios diferentes”. Quando ele foi eliminado, na semifinal – depois de inverter a ordem de apresentação das peças, sair do palco e voltar para tocar o restante do programa obrigatório como se fosse um bis para uma plateia incensada -, foi a vez de Martha Argerich – ninguém menos! – pular fora em protesto, bradando que Pogorelić era um “gênio”, que seus colegas jurados eram incapazes de aceitá-lo por causa de seu “conservadorismo entranhado” e que sentia vergonha de fazer parte daquele júri.
GRAVATA DE CAUBÓI, gurizada
A eliminação de Pogorelić, somada a sua persona provocativa e sua abordagem heterodoxa das interpretações assegurou-lhe tanta fama que hoje ele é mais lembrado que o próprio vencedor do concurso em 1980 – o vietnamita Đặng Thái Sơn, um artista extraordinário e introspecto, que acabou por carregar a imerecida pecha de nêmese do croata. Ivo, entretanto, não voltou para casa com as mãos abanando: recebeu prêmios e troféus extraoficiais, foi convidado a tocar com uma orquestra no final do concurso (honra que caberia aos vencedores, ainda que sua orquestra fosse de estudantes) e, de quebra, ainda assinou um polpudo contrato com a Deutsche Grammophon, para a qual gravou vários discos, todos de muito sucesso e certamente recheados de momentos magníficos, durante os anos 80.
Nas décadas seguintes, Pogorelić tornou-se cada vez mais bissexto, tanto nos palcos como nos estúdios. Talvez por problemas de saúde, em parte também pela viuvez (Aliza, vinte anos mais velha que ele, faleceu em 1996), quem sabe pelos desafios naturais da maturidade, inda mais pungentes para quem foi menino-prodígio e jovem provocador. Quando voltou a dar recitais, tornou-se um esporte popular massacrá-lo por excentricidades e inconsistências em dinâmica e agógica não muito diferentes daquelas que tanto foram incensadas durante os anos 80. E em 2019, depois de mais de vinte anos sem gravar, lançou esse disco pela Sony e recebeu uma chuva de tomates.
Não acho que a tomatina se justifique, pelo menos no que tange a Beethoven. As duas sonatas escolhidas, que estão entre as mais concisas entre as trinta e duas, prestam-se bem às idiossincrasias de Pogorelić. A Op. 54, que abre com uma alegoria de um minueto e termina com um agitado finale, já foi comparada a uma sonata convencional da qual foram arrancados os dois primeiros movimentos. Gostei da abordagem, embora estranhe bastante os crescendos meio despropositados que estão a trovejar bem antes dos clímaxes. Costumo preferir a Op. 78, uma de minhas sonatas prediletas (e também do próprio Beethoven), com andamentos menos hesitantes, especialmente no segundo movimento, em que Pogorelić parece ruminativo e quebra toda a verve prescrita como um Allegro vivace. Sobre Rachmaninoff, deixo para vocês comentarem – não conheço bem a obra, mas estranhei os andamentos lentos e, de novo, os crescendos meio precoces. Fiquei sem saber muito bem qual a razão de ser de tudo aquilo que ouvi, mas talvez esse não seja um problema entre Ivo e essa sonata, e sim meu com Sergei no geral.
Gênio, como proclamou nossa deusa Marthinha, ou mero embuste? Qualquer que seja vosso veredito, eu saúdo o retorno do garoto terrível e espero ansioso suas novas traquinagens.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Sonata para piano em Fá maior, Op. 54
Composta em 1802
Publicada em 1804
01 – In tempo d’un menuetto
02 – Allegretto
Sonata para piano em Fá sustenido maior, Op. 78
Composta em 1809
Publicada em 1810
Dedicada a Therese von Brunsvik
03 – Adagio cantabile
04 – Allegro vivace
Sergei Vasilyevich RACHMANINOFF (1873-1943)
Sonata para piano no. 2 em Si bemol menor, Op. 36
(“A Nova Versão, Revisada e Reduzida pelo Autor”, 1931)
05 – Allegro agitato
06 – Non allegro—Lento
07 – Allegro molto
Ivo Pogorelić, piano
Vassily
Penso que Pogorelich faz uma leitura mais poética da Sonata de Rach, enquanto Horowitz faz uma
abordagem mais eletrizante desta obra. Gosto das duas versões. Obrigado amigão.