O mais legendário dos pianistas vivos completou setenta anos no sábado passado, e nós aqui, tsc, nem para lhes darmos os parabéns! Queremos crer que eles, que chegam atrasados, provavelmente não fizeram falta a Grigory Sokolov, que deve ter passado seu natalício em sua casa a contemplar um lago italiano, possivelmente alheio ao fordunço que virou o mundo do avesso, e quiçá mesmo a engordar seu já imenso repertório com alguma outra peça que, assim queremos, em muito breve apresentará para assombro do mundo que o idolatra.
Avesso a publicidade e notoriamente recluso, Sokolov abre pouquíssimas janelas para seus idólatras. Quase não dá entrevistas, não gosta de tocar com orquestras, odeia a rotina dos estúdios. Assim, só deixa aos fãs a opção de ouvi-lo nos palcos – ao vivo ou em gravações, a maior parte das quais não autorizadas, muitas de qualidade sofrível, e invariavelmente disputadas a tapa no imenso escambo que delas há mundo afora (eu próprio tenho umas quantas, algumas ainda em fita cassete). Suas apresentações, entremeadas por temporadas sabáticas dedicadas à leitura e aos estudos, são cada vez mais restritas: não toca nas Américas há décadas, e há algum tempo deixou de incluir o Reino Unido em suas turnês, revoltado com a burocracia envolvida na obtenção de vistos. Não há hype nem ansiedade antecipatória bastantes para seus recitais, com ingressos normalmente esgotados com toda antecedência possível, sempre com dezenas de cadeiras extras no palco, e abarrotados de gente que vem de longe disposta a pendurar-se nos lustres para vê-lo tocar. Quando ele entra em cena, ouvem-se aplausos muitas vezes contidos, como se houvesse dúvidas sobre a capacidade daquele tipo atarracado e barrigudo, de cabeleira lisztiana, praticamente uma caricatura dum pianista de concerto, honrar tantas expectativas.
Seus fãs, claro, não têm a menor dúvida: é só ele atacar o teclado, e o estupor começa. “Gênio”, sussurram. “Monstro”. “Lenda”.
Sim, Sokolov é tudo isso, e muito mais que se possa descrever. “Sobre-humano”, já ouvi dizerem – e sim, talvez seja um bom ponto de partida. Nunca deixo de me impressionar com a grandeza da concepção, com o controle absoluto do todo e de tudo, e com a naturalidade com que ele entrega ao mundo suas leituras inconfundivelmente pessoais, e ainda assim reverentes às intenções dos compositores. O culto a Grisha – sim, os sokolovmaníacos chamam-no pelo apelido – não se atém somente ao primor técnico do mestre, que é óbvio, e às proezas prestidigitadoras, como as que podem testemunhar no vídeo abaixo. A Grande Fraternidade Sokolóvica venera, acima de tudo, seu poder de recriar as obras com imensa singularidade a cada revisita e, com seu arsenal inesgotável de recursos, fazê-lo duma maneira tão convincente que não pareça possível concebê-las de outra maneira.
Ainda que seja um mago que tudo consegue, costuma escolher andamentos mais comedidos que a praxe, de maneira a poder melhor expor suas ideias. Sua postura hipercurva ao teclado, como se quisesse atirar-se sobre ele, a recusa a gestos histriônicos de bravado, denotam uma profunda concentração, como se não desejasse despender qualquer energia com supérfluos. Nenhuma de suas extraordinárias interpretações é semelhante a qualquer outra, inclusive às suas próprias de outrora. E assim eu poderia seguir, tecendo minha guirlanda de superlativos, sem que eu lhes conseguisse dar a ideia mais tíbia do que Sokolov é capaz de fazer.
Por isso, ainda bem, temos a Música. E é com grande música que saúdo os setenta anos desse gênio do teclado, oferecendo aos leitores-ouvintes duas gravações feitas ainda na Rússia, com as maiores obras em variações de todos os tempos: as “Goldberg” do demiurgo Bach, e as “Diabelli” de seu profeta Beethoven. No começo, provavelmente, estranharão a lentidão dos andamentos tanto quanto desejarão mandar pastilhas para as tussígenas plateias russas. Tenho certeza, também, de que acharão bizarra a maneira com que Sokolov aborda a tola valsinha de Diabelli, até que o desenrolar das variações mostre que ele não a poderia ter tocado de outra maneira. Ao final dessas horas a escutar o maior dos pianistas, só haverá em vós outros, creio eu, pasmo e energia para um singelo “amém” – mas, se lhes sobrar para algo mais, não deixem de dar ao mestre seus merecidos parabéns.
ooOoo
Johann Sebastian BACH (1685-1750)
CD1
Ária e trinta variações para teclado, BWV 988, “Variações Goldberg”
2 – Variatio 1. a 1 Clav.
3 – Variatio 2. s 1 Clav.
4 – Variatio 3. Canone All’Unisuono a 1 Clav.
5 – Variatio 4. a 1 Clav.
6 – Variatio 5. a 1 Ovvero 2 Clav.
7 – Variatio 6. Canone alla Seconda a 1 Clav.
8 – Variatio 7. a 1 Ovvero 2 Clav.
9 – Variatio 8. a 2 Clav.
10 – Variatio 9. Canone alla Terza. a 1 Clav.
11 – Variatio 10. Fughetta a 1 Clav.
12 – Variatio 11. a 2 Clav.
13 – Variatio 12. Canone alla Quarta
14 – Variatio 13. a 2 Clav.
15 – Variatio 14. a 2 Clav.
16 – Variatio 15. Canone alla Quinta a 1 Clav. Andante
17 – Variatio 16. Ouverture a 1 Clav.
18 – Variatio 17. a 2 Clav.
19 – Variatio 18. Canone alla Sexta a 1 Clav.
20 – Variatio 19. a 1 Clav.
21 – Variatio 20. a 2 Clav.
22 – Variatio 21. Canone alla Settima a 1 Clav.
23 – Variatio 22. a 1 Clav. Alla Breve
24 – Variatio 23. a 2 Clav.
25 – Variatio 24. Canone all’Ottava a 1 Clav.
CD2
2 – Variatio 26. a 2 Clav.
3 – Variatio 27. Canone alla Nona a 2 Clav.
4 – Variatio 28. a 2 Clav.
5 – Variatio 29. A 1 Ovvero 2 Clav.
6 – Variatio 30. Quodlibet a 1 Clav.
7 – Aria Da Capo
9 – Allemande
10 – Courante
11 – Sarabande
12 – Rondeau
13 – Capriccio
15 – Allemande
16 – Courante
17 – Sarabande
18 – Bourrée I
19 – Bourrée II – Bourrée I da capo
20 – Gigue
CD3
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Trinta e três variações para piano sobre uma valsa de Anton Diabelli, em Dó maior, Op. 120
1 – Thema: Vivace
2 – Variation 1: Alla marcia maestoso
3 – Variation 2: Poco allegro
4 – Variation 3: L’istesso tempo
5 – Variation 4: Un poco più vivace
6 – Variation 5: Allegro vivace
7 – Variation 6: Allegro ma non troppo e serioso
8 – Variation 7: Un poco più allegro
9 – Variation 8: Poco vivace
10 – Variation 9: Allegro pesante e risoluto
11 – Variation 10: Presto
12 – Variation 11: Allegretto
13 – Variation 12: Un poco più moto
14 – Variation 13: Vivace
15 – Variation 14: Grave e maestoso
16 – Variation 15: Presto scherzando
17 – Variation 16: Allegro
18 – Variation 17: Allegro
19 – Variation 18: Poco moderato
20 – Variation 19: Presto
21 – Variation 20: Andante
22 – Variation 21: Allegro con brio – Meno allegro – Tempo primo
23 – Variation 22: Allegro molto, alla « Notte e giorno faticar » di Mozart
24 – Variation 23: Allegro assai
25 – Variation 24: Fughetta (Andante)
26 – Variation 25: Allegro
27 – Variation 26: (Piacevole)
28 – Variation 27: Vivace
29 – Variation 28: Allegro
30 – Variation 29: Adagio ma non troppo
31 – Variation 30: Andante, sempre cantabile
32 – Variation 31: Largo, molto espressivo
33 – Variation 32: Fuga: Allegro
34 – Variation 33: Tempo di Menuetto moderato
Grigory Sokolov, piano
Vassily
Postagem extraordinária! Confesso que, no começo da série da obra completa de Beethoven, lá nas primeiras sonatas, perguntei-me (não ousaria comentá-lo) se o grande Sokolov apareceria ulteriormente. Acho comovente sua entrega, o
domínio na expressividade, como se estivesse sempre em plenitude artística, sendo a arte não mero ofício, mas o que se respira o dia inteiro — palavras que realmente não abarcam totalmente o que ocorre, e, como bem dito, temos por outro lado a música. Obrigado.
Oi Vassily, como disse o Otávio: “Postagem extraordinária”. Adoro as leituras do Rameau, Bach e Couperin.
Obrigado por um texto tão inspirado !
Abração !
Os links reportam a mensagem: “Talvez este item não exista ou não esteja mais disponível”… O problema é só comigo? Obrigado. E um abraço.
Olá,
O problema não acontecia só com você: quase todos meus links anteriores a agosto de 2020 ficaram indisponíveis por uma falha no armazenamento.
Acredito tê-lo corrigido, pelo menos nessa postagem.
Bom proveito!
Corrigido está. Muito obrigado.