Vimos aqui que com a crise social e econômica ligada à Revolução Francesa, a vida artística de Viena decaiu subitamente. Haydn foi morar em Londres (onde a riqueza era maior, as orquestras eram maiores e ele compôs suas sinfonias mais grandiosas), enquanto Mozart permaneceu em Viena e morreu pobre em 1791, aliás não era só ele: quase todos estavam pobres em Viena.
Pois bem. Em 1792, aparentemente a cena musical vienense melhorou, concluo isso pois Haydn foi chamado de volta. No caminho de Londres para o sul, ele passou por Bonn, onde se deparou com a partitura de uma cantata de Beethoven e convidou aquele alemão de 21 anos para ser seu aluno em Viena. Outro provável motivo para Ludwig aceitar o convite era familiar: sua mãe morrera de tuberculose em 1787, o pai fora aposentado devido ao alcoolismo em 1789 (não foi um ano fácil pra ninguém!), nada mais o prendia ali. Ludwig, ao que parece, pretendia voltar à região do rio Reno após seus estudos em Viena, mas a vida nem sempre segue nossos planos. O pai morreria um mês após a chegada a Viena, os dois irmãos também se mudariam para a Áustria poucos anos depois…
Em carta de 29 de junho de 1800, Ludwig escreveu: “há momentos em que minha alma cultiva o desejo de estar com meus antigos amigos e ficar com eles algum tempo. Meu país, a bela região onde vi a luz do mundo, ainda é tão bonito e claro para mim como antes de deixá-los, enfim, considerarei como a grande fortuna de minha vida se puder vê-los novamente e cumprimentar nosso pai Reno. Quando esse dia virá, não posso te dizer com certeza. Mas quero dizer que me encontrarão maior: não falo do artista, mas também do homem, que lhes parecerá melhor; e se o bem-estar não crescer um pouco em nossa pátria, minha arte deverá se dedicar a melhorar a sorte dos mais pobres…” Em 1801, quinze meses depois, ele escrevia para o mesmo amigo de Bonn em um tom bem mais severo, de um homem que batalha com a surdez e outras doenças: “Não fosse minha surdez, já teria percorrido a metade do universo; é disso que eu precisava. Não há maior alegria para mim do que exercer e fazer brilhar minha arte em público […] Não creia que eu seria feliz perto de vocês. O que me tornaria mais feliz aí? Esses belos campos de minha pátria, o que eu encontraria lá? Nada além da esperança de melhora deste mal…. Oh! eu abraçaria o universo se me livrasse deste mal!”
Ludwig nunca mais voltaria a ver sua terra natal. Nisso, Beethoven se assemelha a Chopin, que também nunca voltou à sua Polônia após sair em exílio. São artistas de dois lugares, com um pé aqui, o outro lá longe. Em Chopin, é mais evidente a oposição entre Mazurkas e Polonaises representando a terra natal e Norturnos e Barcarolle com uma sonoridade da Europa ocidental – oposição que ele transcende e une na Polonaise-Fantaisie. Em Beethoven, essas duas faces se combinam de maneira mais sutil.
Após toda essa introdução sobre o compositor alemão-austríaco e as complexidades inseridas na alma do mesmo homem, vamos pular para os músicos que, nesses últimos dois séculos, têm se dedicado à difícil tarefa de trazer à vida a música de Beethoven. Entre os intérpretes, é possível falar em uma linha de interpretação que foca no Beethoven mais alemão, sério, intelectual. E em uma outra escola que foca no Beethoven vienense, com seu desejo de brilhar nos palcos do Império Austro-Húngaro como o fez Mozart, com formas musicais derivadas de danças e às vezes até com humor. Pianistas como Brendel, Gulda, Badura-Skoda (um trio de austríacos), além de Kempff e Argerich tocam um Beethoven mais vienense, . Outros como Gilels, Richter, Arrau e Pollini tocam um Beethoven mais alemão. A Filarmônica de Viena, óbvio, é mais vienense, enquanto a de Berlim (sobretudo no século passado, com Karajan), mais alemã.
Qual interpretação escolher? Na dúvida, melhor ficar com as duas. O Beethoven de Kempff, menos intenso, mais poético, refinado, é maravilhoso em obras como as sonatas “quasi una fantasia” op. 27, assim como Martha Argerich é provavelmente a maior intérprete viva dos dois primeiros Concertos para Piano e Orquestra. Mas nas últimas sonatas, sempre prefiro ouvir os intérpretes com uma visão mais grandiosa, preocupados em juntar os detalhes e frases individuais em uma concepção elevada da obra, uma sucessão de notas formando um todo coerente. Aqueles que fazem menos absurda a comparação entre uma sonata instrumental e o idealismo germânico iluminista de Kant (1724-1804).
O pianista Hans Richter-Haaser (Dresden, 1912 – Braunschweig, 1980) tem uma alta reputação entre os admiradores do “Beethoven alemão”, com seções contrastantes (compare o “piano” e o “forte” do curto movimento central da sonata op. 110) e uma concepção monumental da mensagem do gênio de Bonn que talvez seja resumida pela palavra latina gravitas (seriedade, dignidade, nobreza).
Richter-Haaser (não confundir com o pianista russo de sobrenome alemão) fez uma série de gravações em Londres com Walter Legge, de 1959 a 1966, nos estúdios de Abbey Road, que eram absolutamente state of the art, como atestam os excelentemente produzidos discos dos Beatles, bem como as gravações ali realizadas por outros alemães como o pianista W. Gieseking e o ainda jovem maestro H. von Karajan. A partir dos anos 70, talvez por motivos mais mercadológicos ou políticos* do que estéticos, Richter-Haaser parou de gravar por grandes gravadoras, mas até hoje beethovenianos fanáticos colocam nas listas de melhores gravações da História as 19 sonatas que ele gravou, além dos Concertos e Fantasia Coral com Giulini e Böhm. Em 2019, finalmente, foram reeditadas essas sonatas que os colecionadores ouviam em vinil.
Ludwig van Beethoven (1770-1827): As Três Últimas Sonatas para Piano
Sonata No. 17 em Ré menor, Op. 31 no. 2
Sonata No. 30 em Mi maior, Op. 109
Sonata No. 31 in Lá bemol maior, Op. 110
Sonata No. 32 in Dó menor, Op. 111
Piano: Hans Richter-Haaser (1912-1980)
*Em 1964, houve um boicote de artistas aos estados do sul dos EUA, devido à segregação racial. Em muitas salas de concerto, negros eram proibidos de entrar. Richter-Haaser furou o boicote, alegando que os músicos deveriam se distanciar dos problemas raciais e políticos. O sobrevivente do holocausto Artur Rubinstein respondeu: “Os músicos também são seres humanos e têm a mesma responsabilidade moral que todo mundo”. Que bola fora, Richter-Haaser! Você provavelmente não valia nada, mas eu gosto do seu piano.
Pleyel
Vamos aproveitar o aniversário de Beethoven e postar a coleção completa dos quartetos de corda pelo Kodály quartet, que nunca foi postado integralmente aqui, Até hoje, depois de naos espero por isso. Vida longa e saúde a todos!
Caro Albires,
OK. Seu pedido foi inserido na lista de espera. Tomara que dê tempo ainda em 2020. Sabe como é, nosso SAC é meio lento.
Um abraço e boa apreciação da música do gênio de Bonn.
PS: Da próxima vez, não precisa repetir o comentário.