Inauguramos, com esta postagem, uma série que ocupará quase todo este ano da graça do ducentésimo quinquagésimo aniversário do nascimento de Ludwig van Beethoven. Se o colapso não bater antes à minha porta, ou se a marota artéria cerebral obliterada que me levou a esta proposta não desentupir em desespero, deverei alcançar-lhes toda a obra conhecida e publicada do genial renano já posta em disco, em gravações inéditas aqui no PQP Bach, até a data magna dos ludwigomaníacos, em dezembro.
Será, claro, um trabalho mastodôntico e doidivano, mas nenhum sofrimento para mim, ludwigomaníaco desde moleque. Não exagero: meu primeiro contato com Beethoven (descontando a musiquinha de espera do telefone lá de casa, que era “Pour Elise”) foi aos seis para sete anos, quando me chegou às mãos uma revista da Disney sobre, bem, Beethoven.
Naturalmente, pouco se poderia esperar de beethoveniano de um cachorro antropomórfico esmerilhando, de pernas cruzadas, um piano. Lembro-me, no entanto, de não ter compreendido como um músico podia ser surdo. Tampei minhas pequenas orelhas e tentei me imaginar ouvindo e fazendo música daquele jeito, e não consegui. Acudi-me com meu pai:
– Pai, Beethoven é surdo?
– Sim, ele era surdo.
– Era?
– Sim, ele já morreu há muito tempo.
– Mas como é que ele era músico se ele era surdo?
– Ele imaginava a música e colocava no papel, filho.
– Ele não ouvia música?
– Não, a música estava na cabeça dele.
– Mas como ele não escuta se ele tem as orelhas do Pateta?
– Isso é só uma historinha. Ele era uma pessoa como a gente. Vem cá que vou te mostrar o Beethoven.
E aí abriu um espesso volume da enciclopédia para apontar-me uma gravura de um tio sério e descabelado. Meu diagnóstico sumário:
– Ele deve estar bem brabo por ser surdo, né?
ooOoo
Pano rápido. Passam-se cinco anos e o velho piano de minha avó, desamparado desde a venda e demolição da abandonada casa no interior, chega até a minha. Sobre o tampo empoeirado, e sem muita cerimônia, o rapaz do caminhão de mudanças coloca um busto.
– Quem é, Pai?
– É Beethoven, filho.
Claro que era Beethoven! Um pouco mais de ordem nos cabelos, sim, mas a mesma seriedade no semblante, por demais apropriado ao longo dos muitos anos em que eu maltrataria o pobre teclado subjacente tentando tocar alguma coisa. Sempre que errava (o que era, bem, quase sempre), pedia desculpas ao sisudo busto branco, enquanto quase comemorava o fato dele, por ser uma escultura – inda mais de Beethoven -, nada poder ouvir.
Junto com o piano, muita poeira e artrópodes sortidos, veio um punhado de discos bem prejudicadinhos. Um deles, imediatamente, chamou-me a atenção, por estampar na capa exatamente o retrato descabelado e seriíssimo que meu pai me mostrara anos antes: Beethoven, sempre ele.
Soprando para longe uns bons nacos de poeira, coloquei o disco na vitrola e o que ouvi, e que me marcou a ferro pelo resto da vida, foi isso:
Escutei, extático, os dois lados do compacto, enquanto a janta esfriava. Lembro de minha mãe chamando-me, furibunda. Veio à sala e, ao me ver daquela maneira, tão absorto, deixou-me lá. Eu, o mesmerizado garoto que perderia o sorteio do bife, só tinha sentidos para aquela música. Então era isso que ele ele tinha na cabeça! Afinal, fora isso que ele colocara sobre o papel! E foi assim, na miudeza de meus onze anos, que Ludwig van Beethoven estreou na minha vida para nunca mais deixá-la.
ooOoo
Nem sequer suspeitaria que, duzentos e três anos antes, um outro menino de onze anos, na distante Bonn, capital do Eleitorado de Colônia – curiosamente muito próxima da cidade de meu avô, o proprietário daquele soturno busto de Beethoven que tanto sofreu com minha precária desenvoltura ao piano -, tinha sua primeira obra publicada em Mannheim. Filho de uma família de músicos com raízes flamengas pela parte do pai, e de cozinheiros do lado da mãe, Ludwig tinha dois irmãos mais jovens e já perdera outros tantos em tenra idade. Seu talento musical era tão evidente que, versado já em piano, viola e violino, fizera seu primeiro concerto público aos sete anos. Seu pai, um tenor na corte do arcebispo de Colônia, via no filho mais velho um potencial filão de fortuna, se ele viesse a ser um novo Mozart e, ele próprio, seu Leopold. Johann, no entanto, era um alcoolista violento que espancava Ludwig com frequência e o deixou sob a tutela de professores abusivos, incluindo um que, insone, arrastava o menino para fora da cama a fim de lhe ensinar de madrugada. As coisas melhorariam um pouco quando, aos nove anos, iniciou seus estudos de piano e composição com Christian Neefe, o organista da corte de Bonn, que providenciou a publicação das Nove Variações sobre uma Marcha de Dressler, que vocês ouvirão a seguir.
A obra, que provavelmente teve colaboração de Neefe, segue as convenções das variações figurativas da época e não deixa de impressionar, fruto que foi da pena de um menino de onze anos. Embora nada que se ouça nelas dê pistas de um criador genial, é curioso notar que nessa diminuta peça já estão presentes três elementos cruciais na futura obra de Beethoven: a tonalidade de Dó menor, a forma da variação e o ritmo de marcha. Outras séries de variações, também inclusas nesta gravação, surgiriam ainda nos anos de Bonn – e é notável a evolução do jovem compositor quando comparamos as Variações Dressler com, por exemplo, aquelas sobre uma ária de Righini, compostas alguns anos depois. Ludwig, então, já tinha feito sua primeira viagem a Viena para tentar estudar com Mozart, mas teve que voltar a Bonn por conta da doença que mataria a mãe e o levaria a assumir a tutela dos irmãos mais novos, posto que o pai se afundava cada vez mais em seus charcos de etanol. A despeito de algumas anedotas, não se sabe ao certo se chegou a se encontrar com o célebre colega – e Mozart, já doente e endividado, provavelmente não tinha tempo nem recursos de assumi-lo como pupilo. De qualquer maneira, enquanto tocava viola na corte do Eleitor e cuidava dos irmãos, o rapazote já sabia que seu norte era Viena (a sudeste). Aos vinte e dois anos, deixaria a provinciana Bonn para estudar com Haydn na capital austríaca. Entre as recomendações, estava uma nota de seu patrono, o conde Waldstein, que escrevera:
Durch ununterbrochenen Fleiß erhalten Sie: Mozarts Geist aus Haydns Händen”
(“Através da diligência ininterrupta, obterá o espírito de Mozart pelas mãos de Haydn”)
Mozart morrera, e Haydn mostrar-se-ia um professor pouco dedicado. Não faltaria a Ludwig, no entanto, a diligência ininterrupta, nem a implacável autocrítica que o levariam, através de enormes dificuldades, à mais impressionante e bem documentada evolução artística entre os grandes compositores. E será esta trajetória magnífica – das Variações Dressler até os últimos retoques nos derradeiros, visionários quartetos de cordas do final de sua vida – que reconstruiremos ao longo do ano do jubileu dum dos mais geniais filhos da Humanidade.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1882)
1 – Nove Variações sobre uma Marcha de Dressler, WoO 63
2 – Seis Variações sobre uma Canção Suíça, WoO 64
3 – Vinte e quatro Variações sobre “Venni Amore” de Righini, WoO 65
4 – Treze Variações sobre “Es war einmal ein alter Mann” de “Das rote Käppchen” de Dittersdorf, WoO 66
5 – Doze Variações sobre “Menuett à la Viganò” de Haibel, WoO 68
Rudolf Buchbinder, piano
Vassily
Caríssimo Vassily!
Com um começo promissor como este, não há dúvida que teremos uma série espetacular!
Dá-lhe, PQP-Bach!
Viva #BTHVN 250!
Abraços!
RD
Parabéns pelo magnífico projeto, que, certamente, será para nós um privilégio e fonte de aprendizado. É o que este belo texto inicial sugere. Difícil não se entusiasmar.
Vassily ! Incrível texto !
Titânica empreitada será a sua ! Imagino os deliciosos textos que estão por vir com a música do Mestre BTHVN que irá fazer a trilha sonora de muitos em 2020 !
Um grande abraço, e que a força do PQP-Bach esteja convosco !
Vassily:
Fora a bela música beethoveniana, curti muito o seu texto. Engraçado, irônico e com ótimas informações históricas.
Como disse o Ammiratore antes de mim, aguardo ansioso suas palavras.
Duplo obrigado.