Como bem coloca o historiador Eric Hobsbawm, o século XIX só acaba em 1914 com o início da 1ª guerra imperialista. Na música, seu último suspiro no ocidente europeu se dá com as obras de Mahler, Richard Strauss e outros românticos tardios. A geração seguinte, como Debussy e Stravinsky, embora formados na antiga “escola” do romantismo, fariam a transição para os novos tempos, tentando criar uma música nova que se libertasse dos padrões românticos, cujos limites de desenvolvimento já haviam sido atingidos.
Seria um desses compositores de transição que iria causar o maior rompimento com a música ocidental até então. Arnold Schoenberg, contraditoriamente, estava preocupado em manter a supremacia que a música alemã detinha até ali. Extremamente conservador, totalmente alinhado com a tradição musical alemã, Schoenberg sairia na frente na fundação de uma nova escola que encerrará não só o domínio da música alemã sobre a tradição da música ocidental, mas do domínio de qualquer escola. Buscando criar um novo paradigma já conservador em sua própria concepção, daria as bases para os compositores mais vanguardistas do século XX: aqueles ligados ao dodecafonismo e ao serialismo.
A segunda escola de Viena, iniciada por Schoenberg, teria dois discípulos, Alban Berg e Anton Webern. Berg, mais moderado, será o “mestre da transição mínima”, tentando juntar elementos do romantismo tardio com o dodecafonismo. Já Webern vai levar os ensinamentos de Schoenberg ao limite, dando as bases para o posterior serialismo integral. No geral, a música da segunda escola de Viena nada mais é do que a música do tempo em que o velho morreu mas o novo ainda não pode nascer. Isto é, uma música de um tempo de transformações sociais inacabadas, ainda em conflito, deixando os indivíduos criadores (artistas), numa confusão completa, sem um paradigma.
Em 1935, Berg recebe a encomenda de um concerto para violino. Apesar de a rejeitar num primeiro momento, devido a sua dedicação exclusiva à finalização da ópera Lulu, posteriormente Berg aceita a encomenda, principalmente pelo alto valor que seria pago pela obra. Sem saber exatamente como serão as formas gerais deste concerto, fica sabendo da morte de Manon Gropius, filha de Alma Mahler e Walter Gropius. Este acontecimento pessoal definirá o conteúdo íntimo de seu concerto. Berg, que conhecia a filha do casal desde tenra idade, profundamente afetado, coloca a dedicatória da obra “à memória de um anjo“.
Na obra, a homenagem fúnebre da obra fica evidente por duas características:
Primeiro, pelo tema de Es ist genug (É o bastante), da cantata O Ewigkeit du Donnerwort (BWV 60) de Bach, que é explorado em alguns momentos da obra, mas, principalmente, no final. Segundo, pela melodia folclórica da Caríntia, talvez em homenagem à mãe de Webern, Amalie Webern, que fora enterrada na região, e onde Berg escreve o concerto. Mas essas citações, embora elucidativas, não esgotam o caráter “fúnebre” da obra. Se pensarmos que todo o concerto evoca, transfigura e reapresenta esses elementos musicais e tantos outros, vemos, além da capacidade criativa de Berg, a própria indefinição social universal daquele tempo que se expressava mesmo na mais particular de suas obras. E aí está o maior mérito da obra: conseguir exprimir no particular, o movimento de uma transformação universal da música e da própria sociedade europeia.
Por tais conteúdos podemos dizer que o concerto para violino de Berg é, praticamente, um “concerto fúnebre”, que faria, voluntária e involuntariamente, homenagem a quatro mortes: primeiro, a de Manon Gropius, segundo, à mãe de Webern, terceiro, ao próprio Berg (que morreria não muito tempo depois de completada a obra), e, finalmente, à morte da civilização burguesa europeia, que entraria em seu maior período de reação e contrarrevolução em toda sua história.
Escrevendo em plena Áustria pré-nazista, surpreende um pouco o aparente alheamento de Berg enquanto compositor dos acontecimentos de sua época. A Áustria só seria anexada à Alemanha em 1938, mas desde a ascensão de Hitler ao poder em 1932, fascistas e nazistas em todo o mundo já haviam se infiltrado em governos favoráveis à extrema-direita ou tomado o poder por eleições ou golpes. Para ter uma ideia do clima que já rondava a Europa, basta saber que desde 1932 muitos artistas já haviam imigrado para os Estados Unidos, inclusive o antigo mestre de Berg, Schoenberg, que tinha ascendência judia. Berg, sendo um compositor da alta classe média austríaca e bem posicionado socialmente, provavelmente não tinha preocupações de ordem política em seu dia a dia.
Talvez esse próprio alheamento tenha lhe possibilitado ser um dos melhores compositores de sua época, tomando o distanciamento necessário para exprimir o que lhe era particular através do universal. Trazendo o universal de uma maneira particular. E de uma maneira particular que exprimisse o próprio sentimento do presente em seu movimento incerto para o futuro. Como diz um de seus alunos, Theodor Adorno, numa passagem:
“In some of its simplest, intellectually most irritating passages, for instance the two-fold quotation of the Carinthian folk song, the Violin Concerto acquires an almost heartbreaking emotive power unlike almost anything else Berg ever wrote. He was granted something accorded only the very greatest artists: access to that sphere, most comparable with Balzac, in which the lower realm, the not quite fully formed, suddenly becomes the highest. . . . The way, however, in which the imagerie of the nineteenth century stirs within Berg is forward-looking. Nowhere in this music is it a matter of restoring a familiar idiom or of alluding to a childhood to which he seeks a return. Berg’s memory embraced death. Only in the sense that the past is retrieved as something irretrievable, through its own death, does it become part of the present.” (fonte, grifo meu)
É interesse notar o que Adorno diz aqui. Os elementos do século XIX que Berg traz em seu concerto não buscam um retorno, mas um avanço. Em nenhuma parte Berg procura um retorno a um passado ideal ou ao retorno do que era familiar ou tradicional. Toda rememoração é uma forma de aceitação do que está morto, algo que não tem volta, mas que ainda é parte do presente. Esta síntese do Adorno coloca Berg como o principal compositor da segunda escola de Viena, na medida em que Berg consegue, como ninguém, sintetizar em sua “transição mínima” este momento onde o velho morreu mas o novo ainda não pode nascer.
Seu concerto para violino é praticamente sua última obra. Poucas semanas depois, acometido por uma infeção sanguínea, Berg faleceria. Sua ópera Lulu, um grande marco do repertório operístico ocidental, ficaria inacabada. Mas seu concerto para violino se tornaria um grande marco do repertório para violino solo. Um dos maiores nomes da música moderna burguesa, Alban Berg, deixaria a vida, mas entraria para a história da música ocidental em lugar de destaque por esta e por outras obras.
Para terminar, fiquem com os versos finais de Es ist genug:
Es ist genug,
Herr, wenn es dir gefällt,
so spanne mich doch aus.
Mein Jesus kömmt!
Nun gute Nacht, o Welt!
Ich fahr ins Himmelshaus,
ich fahre sicher hin mit Frieden;
Mein feuchter Jammer bleibt darnieden.
Es ist genug!
Tradução livre:
É o bastante,
Senhor, se a ti lhe satisfaz,
Então dai me a liberdade final.
Meu Jesus vens!
Dou-lhe boa noite, ó mundo.
Vou-me à casa celestial.
Tenho certeza que vou com paz.
Meus sombrios sofrimentos deixados para trás.
É o bastante!
Berg & Beethoven: Violin concertos
Alban Berg (1885-1935):
Violin concerto “to the memory of an angel”:
01 I. Andante – Allegretto
02 II. Allegro – Adagio
Ludwig van Beethoven (1770-1827):
Violin concerto in D major, Op. 61
03 I. Allegro ma non troppo – Adagio
04 II. Larghetto
05 III. Rondo allegro
Orchestra Mozart
Claudio Abbado, conductor
Isabelle Faust, violin
Luke
Baita postagem, Luke. Fico feliz com seu retorno.
Valeu pela postagem.
Como eu baixo o arquivo? OneDrive diz que eles sao muito grandes e nao deixa baixar.
Muchas gracias!!!