“É uma revolta? – Não, Majestade, é uma revolução.” (diálogo entre Luís XVI e o duque de La Rochefoucauld no dia 14 ou 15 de julho de 1789)
O músico, maestro e escritor autríaco Nikolaus Harnoncourt (1929-2016) disse uma vez: “A expressão historicamente informado me dá enjoo”. Ele se considerava “não informado, mas curioso”. Pois bem, sejamos curiosos.
A ideia de que algumas tonalidades eram apropriadas para expressar certos tipos de humor ou características psicológicas era universalmente aceita nos séculos 17 e 18, em parte por causa do temperamento desigual, que fazia com que as terças e quintas de cada tom fossem notavelmente diferentes. Isso se torna menos relevante com o temperamento uniforme, aquele que Bach “defendia” ao publicar o Cravo bem temperado.
A época da Revolução Francesa e da Revolução Industrial é também a época de uma mudança profunda nos gostos. O mundo da música barroca se caracterizava pelo temperamento desigual e por desigualdades também no ritmo e na articulação. Esse período revolucionário coincidiu com a popularização da ideologia do desenvolvimento e do progresso, que ocuparam até nossa bandeira brasileira. Esse conjunto de valores acompanha a uniformidade da produção industrial e da linha reta. É um mundo completamente diferente do anterior: uma revolução estética. Vejam por exemplo a caligrafia de Bach e de Mozart em partituras escritas pela mão dos compositores. Bach parece se divertir desenhando curvas elegantes, enquanto Mozart prefere a linha reta. É um golpe baixo naqueles que acham a música do pai de P.Q.P. um tanto quadrada ou uniforme… quem acha isso, me desculpe, mas está com pouca curiosidade.
Resumindo: até meados do século 18, as desigualdades entre tonalidades dão a cada composição uma “cor” diferente, como se dizia na época. Por outro lado, era muito difícil modular (trocar de tonalidade durante a execução). Na música de Mozart e Beethoven, a escolha dos tons ainda tem uma grande importância, mesmo se as razões são mais culturais do que propriamente acústicas. E as modulações são abundantes.
Para os franceses Jean-Philippe Rameau (Tratado de Harmonia, 1722) e M. Charpentier (Regras de composição, 1690), o tom lá maior é alegre e camponês, enquanto para o alemão Christian Schubart (Ideias sobre a estética da música, séc.18), ele contém declarações de amor inocente, alegria juvenil. O Concerto nº 23 de Mozart, em lá maior, realmente é menos heroico e grandioso que os outros concertos de 1986, ele tem um caráter mais brilhante e bucólico como o 15º e o 17º concertos, mas com a presença do clarinete, que só aparece do 22º ao 24º.
O Concerto nº 24 é em dó menor, tonalidade que para Charpentier é obscura e triste e, para Rameau e Schubart, combina com lamentos de amor infeliz. Para Mozart, porém, essa tonalidade já apresenta o caráter de ombra, termo italiano usado para as cenas de ópera em que aparecem oráculos, demônios, bruxas ou fantasmas. Não por acaso, Beethoven ficaria muito associado ao dó menor em suas composições mais sombrias ou misteriosas: Sonata Patética, Sinfonia nº 5 (o tan-tan-tan-tan do “destino”), Sonata op.111, etc.
Outra obra de Beethoven em dó menor é o Concerto para piano nº3, em que o tema inicial que é quase um plágio do 24 de Mozart. E realmente não é uma coincidência: Beethoven teria dito a um amigo, ao ouvir este concerto nº 24: “nós nunca vamos conseguir fazer algo assim”. Na Beethoven-Haus em Bonn, há vários cadernos de Beethoven em que ele estudava os concertos de Mozart, cheios de anotações.
Last but not least, fiquem com a postagem original de P.Q.P., que descreve o pianista Alfred Brendel melhor do que eu conseguiria.
Antes que alguém tente algo mais violento, aí vão mais dois concertos para piano de Mozart. Nestas gravações, Brendel alcança aquele pontinho exato entre a pura alegria de tocar Mozart e o abismo representado por uma interpretação superficial. A naturalidade e a categoria com que o pianista permanece nesta posição é para qualquer um – aí sim! – abismar-se. A foto abaixo foi-me mostrada pela mais querida das amigas e não posso me furtar de mostrá-la a nossos leitores-ouvintes. Ah, com nossa exatidão habitual, informamos que o nome da gata de Brendel é Minnie.
P.Q.P. Bach.
Piano Concerto nº 23, K. 488, em lá maior
1 – Allegro
2 – Adagio
3 – Allegro Assai
Piano Concerto nº 24, K. 491, em dó menor
1 – Allegro
2 – Larghetto
3 – Allegretto
Academy of Saint Martin in the Fields
Alfred Brendel – Piano
Neville Marriner – Conductor
Como eu gosto do primeiro movimento do concerto 23! Que força tem ele, e com que graça o piano dialoga com a orquestra! Mas, o 24, o famoso concerto em dó menor, estou lendo sobre ele.Esse Concerto foi o maior modelo de Beethoven na elaboração do seu concerto em dó menor (o terceiro). Embora o terceiro concerto pra piano de Beethoven envereda por caminhos por onde Mozart nunca passou, e supera Mozart – de acordo com muitos autores – em alguns aspectos, especialmente de unidade musical, ha elementos nesse concerto que são superiores ao concerto em dó menor de Beethoven.
Segundo Brahms, em dialogo que teria ocorrido em 1896: “Sim, o Concerto em dó menor de mozart é uma maravilhosa obra de arte, repleta de idéias inspiradas! Eu tambem acho que o Concerto em Dó Menor de Beethoven, é muito menor e mais fraco que o de Mozart. Voce sabe o quanto eu admiro Beethoven! Compreendo perfeitamente que a sua nova personalidade e a nova visao de suas obras impactaram o publico de maneira significativa. Mas, ja se passaram 50 anos, e temos que mudar de opinião. Precisamos distinguir a excitação daquilo que é novo do seu valor intrinseco. Admito que o Concerto de Beethoven é mais moderno, mas não é tão significativo! Também vejo por que a primeira sinfonia de Beethoven pareceu tão colossal para as audiencias. Ela tem realmente um novo ponto de vista! Mas as ultimas 3 sinfonias de Mozart são muito mais significativas. De vez em quando as pessoas percebem isso.”
Richard Heuberger disse a Brahms que os quartetos de Mozart eram mais importantes do que a musica de camara de Beethoven até o opus.24 (sonata primavera). Brahms concordou e continuou:”Sim, os quartetos Razumovsky, as ultimas sinfonias, aquilo alí é um outro mundo. Já podemos percebe-lo na segunda sinfonia.”
Fonte: Beethoven, vida e obra. Lewis Lockwood
Ah, o meu Brendelzinho…(longo suspiro)Clara Schumann
Já assisti ao vivo a dois recitais de Alfred Brendel. Fabulosos. Consta que o pianista planeia retirar-se no próximo ano, com um concerto em Viena.Abraços,Heitor
Heitor, queres que morramos de inveja?É um enorme prazer e uma honra recebê-lo aqui.
P.Q.P. Por favor poste novamente as obras para piano de Debussy. Os links não funcionam mais. Grato B.S.
Imensamente feliz de ver esses concertos por aqui. E nessa gravação esplêndida de Brendel!Valeu, PQP!
Estimado PQP Bach,Matá-lo de inveja?! Nada disso. Além de que o nosso amigo pode sempre ir a Viena!Abraços,Heitor
Maravilhosas as postagens com Brendel. Sugestão: que tal a íntegra dos concertos com Haebler? É maravilhosa!!!!!
Obs.: Bach não escreveu o Teclado[1] bem Temperado para advogar o temperamento igual, mas precisamente para também ressaltar a diferença de como soava cada tonalidade nos temperamentos desiguais, ainda usados na época.
[1] A palavra usada em Alemão é “klavier”, que se refere a quelquer instrumento de teclado, não apenas o cravo.
Cleverson,
Não sei se é possível afirmar com 100% de certeza o que Bach pretendia. Ao contrário de Rameau e C.P.E.Bach, ele não publicou tratados de musicologia ou de execução. Ao contrário de Schumann e Brendel, não escreveu inúmeros artigos na imprensa.
Por isso, inclusive, escrevi entre aspas que ele “defendia” algo.
Mas as suas observações trazem outro ponto de vista absolutamente coerente e que enriquece bastante o debate! Um abraço.