.: interlúdio :. Benedito Lacerda e Pixinguinha

PQPBach no Carnaval!

O senso comum pode enganar os desavisados. Muita gente que conhece superficialmente a vida e a obra de Pixinguinha expressa sua admiração com o talento desse músico negro que não teve estudos formais e outras platitudes desse tipo…

O que menos gente sabe é que Pixinguinha diplomou-se em teoria musical no Instituto Nacional de Música, foi maestro em orquestras e bandas de rádio, arranjador que conseguiu fundir ritmos brasileiros com estilos europeus e música negra americana. Ouçam, por exemplo, o seu arranjo para a versão original (1941) da marchinha Alalaô, cada vez mais popular no carnaval carioca nesses tempos de aquecimento global:

Ouviram as modulações feitas por quem obviamente sabia ler partitura? Ouviram a banda de sopros que às vezes soa como jazz? Pois é…

Dizem por aí que Pixinguinha foi uma das vítimas de uma certa patrulha ideológica que condenava os músicos que cultivavam influências estrangeiras. Segundo esse ponto de vista, que chegou a auge no nacionalismo do Estado Novo (1937-46), o samba tinha de ser 100% verde-amarelo.

Por exemplo em 1928, quando saiu o choro Lamento em disco 78 rpm, o crítico da revista Phono-Arte escreveu: “nessa música não se encontra um caráter perfeitamente típico. A influência da melodia e mesmo do ritmo da música dos norte-americanos é, nesse choro, bem evidente. Esse fato nos causou surpresa, porquanto sabemos o compositor um dos melhores autores da música típica nacional. É por esse motivo que julgamos este disco o pior dos quatro que a Orquestra Pixinguinha-Donga oferece-nos esta quinzena”

Uma breve pesquisa sobre a origem dos desfiles de escolas de samba – aquela coisa cronometrada, em linha reta que, não por acaso, teve origem na mesma década dos desfiles da juventude hitlerista – mostra essa busca por uma suposta “autenticidade brasileira”:

No desfile de 1933, organizado pelo jornal O Globo, o regulamento proibia o uso de instrumentos de sopro, proibição que permaneceu nos anos seguintes.

Também era obrigatório tratar de temas nacionais. Em 1938 a Escola de Samba Vizinha Faladeira foi desclassificada por ter apresentado o enredo “Branca de neve e os sete anões”.

O regulamento do desfile de 1946 apresentou uma novidade que significava o final de uma fase das escolas de samba: “É dever dos compositores da escola ou de quem responder pela segunda parte dos sambas não improvisar, trazendo a letra completa.” Manteve-se a proibição ao uso de instrumentos de sopro e, ao mesmo tempo, reconhecia como instrumentos próprios de escolas de samba violão, cavaquinho, pandeiro, tamborim, surdo, cuíca, reco-reco, tarol e cabaças.

E o Pixinguinha no meio disso tudo? Como os grandes gênios, Pixinguinha voa muito acima dessas limitações dos teóricos da carioquice e da brasilidade…

Para o músico Marcel Nicolau, “Pixinguinha é quase um semideus. Ele é uma daquelas pessoas que são poucas na humanidade e que, por algum motivo, nascem. É um dos nossos maiores maestros, apesar das pessoas só o conhecerem através do choro. Ele está dentro do nascimento do samba, do choro e da música instrumental brasileira.”

Há também o racismo, é claro. Em 1922, quando o grupo de Pixinguinha tocava em Paris, Benjamin Constallat relatou que “segundo os descontentes, era uma desmoralização para o Brasil, ter na principal artéria de sua capital uma orquestra de negros! Que iria pensar de nós o estrangeiro?”. Ao que parece, foram poucos esses descontentes e a temporada dos Oito Batutas durou 6 meses contínuos em Paris, onde ele teve contato com o saxofone, que com o tempo destronaria a flauta como seu instrumento principal.

Nas gravações com Benedito Lacerda, dos anos 40, Pixinguinha resume sua arte contrapontística, fazendo os graves no sax enquanto a flauta de Lacerda fazia os agudos. O músico contou a um jornal, na época: “O Benedito Lacerda me procurou para gravarmos umas músicas minhas. Só choros. Negócio mais ou menos grande. São 25 discos de uma só tacada e as condições são boas. Além disso, as edições das músicas.”

Pixinguinha é um desses gênios muito maiores do que a censura, do que o nacionalismo e outros refúgios dos canalhas. As censuras d’O Globo passam, a falsa autenticidade verde-amarela passa, a arte fica.

1. André de sapato novo (1947)
Compositor: André Victor Correia

2. Atraente (1950)
Compositores: Chiquinha Gonzaga, Hermínio Bello de Carvalho

3. Um a zero (1946)
Compositores: Pixinguinha, Benedito Lacerda

4. Ainda me recordo (1947)
Compositores: Pixinguinha, Benedito Lacerda

5. O Gato e o canário (1949)
Compositores: Pixinguinha, Benedito Lacerda

6. Naquele tempo (1946)
Compositor: Pixinguinha

7. Língua de preto (1949)
Compositor: Honorino Lopes

8. Vou vivendo (1946)
Compositores: Pixinguinha, Benedito Lacerda

9. Devagar e sempre (1949)
Compositor: Pixinguinha

10. Displicente (1950)
Compositor: Pixinguinha

11. Sofres porque queres (1946)
Compositor: Pixinguinha

12. Soluços (1949)
Compositor: Pixinguinha

Flauta: Benedito Lacerda (1903-1958)
Saxofone Tenor: Pixinguinha (1897-1973)

Obs.: Ficha técnica do disco sem créditos aos arranjadores e aos outros músicos que participam do disco. Lançamento em CD supervisionado por Charles Gavin. As datas entre parêntesis ao lado dos nomes das músicas indicam o ano original de gravação. Os créditos de algumas composições à dupla Pixinguinha/Benedito Lacerda talvez sejam mais por cortesia e amizade, conforme citação acima: “umas músicas minhas”.

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Referências:
Escolas de samba do Rio de Janeiro. Sérgio Cabral

Dicionário Cravo Albin da MPB

Pixinguinha, quintessência da música popular brasileira. Luís Antônio Giron.

“Chorinho é um negócio sacudido e gostoso” – Pixinguinha

Pleyel

8 comments / Add your comment below

  1. Obrigado pela aula sobre Pixinguinha e por esse belíssimo CD que não conhecia. Gostaria de conhecer mais álbuns do Pixinguinha.
    Um abraço.

  2. Confesso que era um ignorante em Pixinguinha, Pleyel!
    Muito conteúdo importante nesse texto!
    Parabéns e obrigado, Pleyel!

    Avicenna

  3. Gente, ouvindo o disco agora, só me vem uma comparação para o jogo entre o sax e flauta (abstraídos os demais instrumentos): AS INVENÇÕES A DUAS VOZES DE BACH.

    1. Não é? É muita erudição com muito improviso ao mesmo tempo… Muito conhecimento harmônico e muita sensibilidade popular. Único.

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