Nosso tio Oscar tinha um jeito meio “wild” de perseguir a beleza, diria até que ele se arruinou por causa disso. Viveu atrás de um amoreco desprezível, uma beleza grega, segundo ele achava, perdeu tudo e foi parar no xilindró, coitado. Depois disso ninguém quis mais conversa com ele – vejam só o que é a hipocrisia. Quando era rico e incensado todos lhe abriam as portas, depois da derrocada, quando o viam com seu passo cadenciado pelo absinto, atravessavam pra outra calçada. Porém, como ele mesmo costumava dizer, “não se deve lamentar que o poeta seja bêbado, mas que nem todo bêbado seja poeta!” e para os carolas ele deflagrava que “experiência é o nome que todos dão aos seus próprios erros”. Como vinha dizendo, o tio Oscar era um sujeito movido pela beleza, melhor dizendo, um ser estético, uma encarnação do senso estético e isso permeava as suas ideias sobre tudo. Para ele a beleza seria “uma forma de genialidade – aliás, superior à genialidade na medida em que não precisa de comentários. Ela é um dos grandes fatos do mundo, assim como a luz do sol, ou a primavera, ou a miragem na água escura daquela concha de prata que chamamos de lua. Não pode ser interrogada – é soberana por direito divino.” Sim, tio Oscar era de tirar o folego com suas tiradas e aforismos. Quem no mundo poderia se pronunciar dessa forma sobre a beleza? Mas por que estou falando tanto de beleza mesmo? Ah, claro! Que disco, meus amigos! Um oceano de beleza no qual rebrilha nas vagas uma dourada melancolia – eu não aconselharia para os combalidos, pois sei que uma dose de beleza melancólica pode ser mesmo letal, sério! Como diria tio Oscar, “A música nos cria um passado que ignoramos, e nos transmite um sentido da dor até então oculto às nossas lágrimas” (!!!) Tio Oscar era foda.
Dois príncipes das baladas, em nosso contexto infelizmente não muito conhecidos: o pianista Chano Domínguez e o violonista Niño Josele. Chano, nascido em Cádiz (1960), pianista de Latin Jazz, Flamenco e pós-Bop. Enveredou pelo rock progressivo até se deparar com Thelonius Monk e Bill Evans. Em sua riquíssima carreira permeada por diversos músicos e parceiros, Chano também lecionou em diversos países, hoje mora no Brooklyn. Niño, de Almeria (1974), é um expoente do chamado Novo flamenco, embora de uma versatilidade, verve e pathos indescritíveis, porém apreciáveis em suas primorosas gravações; a exemplo desta, na qual ambos, verdadeiros poetas musicais aos seus instrumentos, nos trazem um bouquet de beleza arrebatador. Não uso esta palavra, buquê, à toa. Entre as faixas temos Rosa, do nosso Pizindim – aquele menino bom que se tornou imortal. Sentiram-se atingidos por uma pequena e flamejante flecha de Cupido bem no miocárdio? Pois bem, segurem essas: Luiza e Olha Maria, do nosso Tom Jobim, a segunda com letra do Chico e do Vinícius (a gente sempre fala deles com esse ar de intimidade, não é mesmo? É uma graça), mas aqui em versão puramente instrumental. Uma surpresa deliciosa: Lua Branca de Dona Chiquinha Gonzaga! Sim! E que gravação, Santo Zeus… A agridoce balada Django, de derreter os fígados mais empedernidos, do John Lewis – aquele soberbo pianista do Modern Jazz Quartet. Nossos poetas musicais nos colheram um ramalhete e tanto: dos Beatles, Because. Do Henry Mancini, Two for the Road; De Michel Legrand, a lancinante Je t’attendrai, mais famosa no título inglês I will Wait for You – essa é uma daquelas desaconselháveis para os ainda convalescentes de gripe cardíaca. Numa gentil troca de figurinhas, Niño transcreve Chano em Alma de Mujer e vice-versa com Es Esto una Buleria? Uma feliz crítica ao álbum diz que “este é o tipo de registro que ridiculariza a noção de gêneros e classificações, já que ambos os músicos se envolvem em uma conversa em torno de algumas belas peças de música, levando-os aonde quer que sua sensibilidade possa levá-los a qualquer momento: música clássica, música popular, latino-americana, flamenco ou jazz, muitas vezes dentro da mesma composição.” Digo feliz crítica porque, sempre lembrando tio Oscar, “se a função do crítico é educar o público, a função do artista é educar o crítico”; é que vemos tantas asneiras escritas sobre música por aí. Esse festival de beleza, de sussurros e arrebatamentos, este cálido romance em forma de disco, se arremata numa linda faixa a mais, Solitude in Granada, de Domínguez – perfume em forma de música; uma linda e terna melodia que lembra bastante o tema Spleen, do maravilhoso acordeonista Richard Galliano.
Detesto a ideia de datar textos, mas cumpre observar que em nossos tempos de feiura em tantos aspectos, um banho de beleza desses não é coisa pouca. E por falar em beleza, sempre citando tio Oscar, “nada pode curar a alma, exceto os sentidos”. “Todos estamos deitados na sarjeta, mas alguns estão mirando as estrelas”. Ou ainda: “Viver é a coisa mais rara do mundo, a maioria apenas existe”. Eu poderia passar mil e uma noites citando as maravilhas do tio Oscar, porém ele mesmo me reprovaria por estar sendo tedioso. Mas só umazinha: Certa vez ele foi interpelado por alguém que exclamava: “Oscar! Não se lembra de mim? E ele: Perdão, não reconheci você, é que eu mudei muito”.
Chano Domínguez & Niño Josele – Chano & Josele (2014)
- Alma de Mujer
- Django
- Because
- Je t’Attendrai
- Lua Branca
- Es Esto uma Buleria?
- Two for the Road
- Rosa
- Luiza
- Olha Maria
- Solitude in Granada
Chano Domínguez – Piano
Niño Josele – Guitarra (Violão)
Wellbach
Lindo texto, Wellbach!
Danke pelo disco e pela wild experience…
😉
Obrigado! este nosso espaço é um jardim de beleza e civilização. Vamos preservá-lo e continuar partilhando maravilhas. Abrs.
Que texto, Wellbach… que texto maravilhoso, sensível … e que bela homenagem ao seu tio Oscar. Precisas aparecer mais cá pelas plagas do PQPBach para continuares nos brindando com textos desta qualidade. Nem ouvi o CD ainda, e já fiquei fascinado … baixando em 3, 2 , 1 …
Obrigado! este nosso espaço é um jardim de beleza e civilização. Vamos preservá-lo e continuar partilhando maravilhas. Abrs.
Este teu CD me lembrou outro sensacional CD que tenho, com um violonista flamenco chamado Totatito acompanhado pelo pianista panamenho Danilo Perez. Vou ver se acho no meio de minha bagunça para compartilhá-lo.
O nome do violonista é Tomatito. Desculpe o erro de grafia.