Este CD é finalizado com uma palestra explicativa de Leonard Bernstein sobre a música de Ives e sua posição dentro da cultura norte-americana e mundial. Só isso já vale o CD. Abaixo, copio um belo texto de Eduardo Prjadko (roubado quase completo da excelente Obvious) sobre o mesmo assunto.
Ives foi um compositor anônimo em sua época. Era dono de uma empresa de seguros em Nova York e teve uma vida abastada, mas nas horas vagas era compositor. Quando jovem teve uma vida musical bastante intensa, patrocinada pelo pai, que também era músico. Aprendeu a tocar piano, órgão, e mesmo muito novo, já fazia composições. Sua formação musical foi a tradicional europeia, no entanto Ives estava na América. Neste mesmo ambiente se desenvolvia o Jazz e todo tipo de experimentação.
Como Ives não tinha muito tempo para compor e também era bastante detalhista, suas obras levavam muitos anos para ficarem prontas. Uma de suas obras mais importantes, Three Places in New England, que consiste em três movimentos, levou cerca de 25 anos desde os primeiros esboços até os últimos retoques. Desta obra em específico, datam os primeiros esboços de 1903. Nesta mesma época Schoenberg terminava de compor Pelleas und Melisande, uma obra pra lá de tonal e tradicional.
O mais importante a se dizer da Three Places in New England está no segundo movimento, chamado Putnam’s Camp, Redding, Connecticut. Os primeiros cinco segundos já deixam o ouvinte de cabelos em pé, com uma entrada forte e densa, bastante incomum. Dalí para frente não é difícil identificar vários momentos em que a música se torna caótica e difícil de entender. A ideia de Ives foi justamente demonstrar isto: o ambiente caótico dos sons das ruas, onde se ouve uma banda de sopro passar numa esquina ao mesmo tempo que se ouve uma marcha na outra. Não se pode dizer que é uma obra completamente atonal, mas com certeza não tinha muito compromisso com o tonalismo.
Existem bibliografias que dizem que o próprio pai de Ives fazia experimentações na música, o que explicaria as obras muito à frente de seu tempo, mas não vou me aprofundar neste assunto. O fato é que a liberdade que a América proporcionava, sem as amarras de uma tradição secular, dava à Ives – e à quem mais quisesse – um ambiente onde era possível criar obras completamente fora do comum.
Outra obra bastante interessante é a The Unanswered Question. Nela, Ives criou uma melodia que se repete mas não é finalizada adequadamente. É como se você fizesse uma pergunta e não obtivesse a resposta (assim como propõe o nome da obra: A Questão não Respondida, em português). O trompete faz sempre a mesma “pergunta”, enquanto que um quarteto de sopro tenta responder de maneira adequada, mas sempre falhando. À medida que a música evolui, o quarteto de sopro se torna cada vez mais dissonante e mais difícil de entender. Se esta obra tivesse sido apresentada em público naquela época, Ives teria sido alvo de piadas.
Apesar de Ives ter sido um compositor anônimo, era bastante convicto de seus ideais. Acreditava no homem comum, que trabalha para sustentar seu lar. Era um verdadeiro praticante do American Way of Life, onde se pode chegar com uma mão na frente e outra atrás e trabalhar duro para se tornar bem sucedido. Entre suas convicções também estavam a de que a música na América devia ser mais audaciosa, mais máscula. Numa ocasião em que um compositor, amigo de Ives, fora vaiado ao apresentar sua obra, Ives não mediu esforços para xingar os detratores de maricas, dizendo para usarem seus ouvidos como homens.
É possível imaginar que um dos motivos que levaram Ives a não se lançar como compositor, foi justamente por não se sentir confortável com a música que era praticada e com a maneira como a música era tratada. Dizia que a música americana foi prostituída; não gostava da ideia de ser obrigado a agradar ao público. A música devia ser feita para engrandecer o homem. O anonimato e suas fortes convicções foram importantes para seu desenvolvimento como compositor. Ives não precisou explicar e justificar seus métodos à público nenhum; apenas compunha como achava que deveria compor, sem se importar com o que pensariam. Já, compositores famosos estavam o tempo todo sub o julgo de seus admiradores e inimigos. Schoenberg passou boa parte de sua carreira tendo de explicar seus métodos, e na maior parte deste do tempo, não conseguiu.
Somente muitos anos depois de sua morte, a música de Ives foi descoberta e revivida. Deve ter sido espantoso para os historiadores descobrir que muito antes de Schoenberg iniciar seus trabalhos com o atonalismo, Ives já se aventurava com muita desenvoltura em obras extremamente dissonantes para a época. Charles Ives acabou se tornando um tipo de herói americano. Em 1974, o centenário de Ives, sua música foi oficialmente declarada como a primeira música genuína norte americana.
Longe de ser uma simples aventura sem sentido, a música de Ives tem uma consistência e uma audácia espantosas. Vale lembrar que até hoje, ainda existe quem torça o nariz para o atonalismo ou qualquer tipo de arte transcendental. Isto nos mostra a genialidade deste compositor, que ultrapassou os limites da música tonal muito antes de seus companheiros de época. A liberdade e a motivação para fazer algo novo, transformaram Charles Ives num ícone Norte Americano e um artista mundialmente reconhecido.
Charles Ives (1874-1954) – Sinfonia No. 2 e Sinfonia No. 3, S. 3 (K.1A3) – The Camp Meeting
Sinfonia No. 2
01. I. Allegro moderato
02. II. Allegro
03. III. Adagio cantabile
04. IV. Lento maestoso
05. V. Allegro molto vivace
Sinfonia No. 3, S. 3 (K.1A3) – The Camp Meeting
06. I. ‘Old Folks Gatherin’_ Andante maestoso
07. II. ‘Children’s Day’_ Allegro
08. III. ‘Communion’_ Largo
Leonard Berstein Discusses Charles Ives
09. Leonard Berstein Discusses Charles Ives
New York Philharmonic
Leonard Bernstein, regente
PQP
A Segunda Sinfonia é uma obra muito curiosa, pertencente ao Ives da primeira fase, ainda um acadêmico, ligado ao romantismo europeu e ao seu professor Horatio Parker. Só percebemos nesta sinfonia o Ives maduro em dois expedientes: a livre e insistente colagem de temas que vão de hinos de Steven Foster a citações de Brahms (Primeira Sinfonia) e Beethoven (Quinta); e o último acorde do finale, super dissonante e inesperado, que Bernstein interpreta de maneira, digamos… peidofônica 🙂
Já a Terceira é uma obra de transição. Tem muito a ver com o Ives dos “Três lugares em New England”, por exemplo.
Defendo que Charles Ives foi quem abriu as portas do séc. XX na música. Alex Ross destaca o tanto de inovações que ele introduziu, sem sistematização nenhuma, só por experimentalismo. Vou baixar essa gravação aí do Lenny.
Que ótimo, Carlinus! Até agora só conheço a Quarta – louquíssima, radicalíssima, apesar de um Adagio mais tradicional… e belíssimo – uma obra toda íssima, rsrs
Você tem acesso à Quarta já em formato digital? Pois eu só tenho em vinil. Poderia digitalizar, mas tenho tanta coisa na fila – melhor dizendo: tanta outra coisa em tantas filas!!
Meu velho e inpirador Ranulfus, tenho a obra solicitada. Postá-la-ei nas próximas semanas. Aguarde e verás. A primeira obra que ouvi do Ives foi a Quarta Sinfonia. Levei um soco no diafragma – “louquíssima, radicalíssima, apesar de um Adagio mais tradicional… e belíssimo – uma obra toda íssima” (suas palavras eficazes). O homem era um gênio. Que pena que seja tão pouco conhecido por aqui.
Abraços a você, ao José Eduardo e ao CVL!
A gravação da Sinfonia 2 de Ives com Bernstein é incompleta. Ele corta alguns momentos que são integralmente restaurados na gravação de Schermerhorn lançado pela Naxos.
Conheci há algumas semanas uma gravação sensacional da Segunda de Ives: Andrew Litton com Dallas. É bem diferente da gravação de Schermerhorn – que usa o texto revisado da obra e é muito bem tocada, embora a regência seja um pouquinho quadrada -, e mais próxima da interpretação de Bernstein. Recomendo fortemente!
José Eduardo, tenho a gravação com o Litton. Inclusive já fi-las subir. Em alguns dias postá-la-ei.
De fato, a gravação com o Litton é espetacular.