Numa postagem anterior contamos como Dom Nonino, pai de Astor, salvou o filho para si e o gênio para nós, impedindo que o mesmo embarcasse no avião fatal de Gardel. Também contamos como Nadia Boulanger aconselhou o discípulo argentino a trilhar a senda do ‘si mesmo’, após vê-lo provar suas habilidades na imitação da arte de nomes como Debussy e Ravel. Um detalhe, segundo o próprio Astor, é que ela, após pedir-lhe que tocasse o que sabia de fato fazer, indagou se ele seria idiota de abandonar sua real natureza para ser um bom compositor erudito quando poderia ser único no que sabia fazer de fato – Tango; ou melhor, Novo Tango. Esta postagem traz duas obras: Suíte Troileana e Lumière. Lumière é a trilha sonora de um filme de 1976 com Jeanne Moreau, na qual destacamos a primeira faixa ‘Soledad’ pela sua profunda beleza e intensidade, tipicamente piazzólica; a segunda faixa ‘Muerte’ é uma daqueles momentos em que Astor nos desafia – convite aos fortes; seguida do luminoso tema ‘El Amor’ ou ‘Lumière’.
A Suíte Troileana, que se inicia na quinta faixa, foi uma dedicatória ao amigo, mentor e mestre do bandoneón Anibal Troilo (1914-1975), apelidado Pichuco, ou também Gordo Triste numa outra dedicatória de Astor. Aos 10 anos, o pequeno Anibal apaixonado pelo som dos bandoneóns que ressoavam nos bares do seu bairro em Buenos Aires, pediu a sua mãe Dona Felisa, que lhe desse uma daquelas caixas mágicas. Com este mesmo instrumento atravessaria toda a vida e Piazzolla em entrevista diz o quanto era inacreditável que conseguisse tocar daquela maneira naquele bandoneón velho e cheio de buracos no fole. Estreou aos 11 anos, mais tarde tocou num grupo de senhoritas e aos 14 anos tinha seu próprio quinteto, primeiro grupo dentre outros, dentre os quais contaria com Astor ao seu lado em sua orquestra e com quem gravou duas faixas em duo de bandoneóns, numa verdadeira conversa de cavalheiros. Dom Nonino, ao saber que o jovem filho andava em companhia de Troilo, dirigiu-se a ele e pediu que cuidasse bem do seu rebento. Troilo disse somente “deixe comigo”. ‘El Gato’, como o apelidou Troilo, aos 19 anos já era macaco velho nas noitadas e assim, ambos, de tango em tango e de um bife de chouriço a outro (maravilha das maravilhas portenhas); e claro, de garrafa em garrafa, viam o sol retornar invariavelmente ao fim de cada odisseia musical e boêmia, noite após noite – que inveja. Troilo se casou com uma grega, Dona Ida Dudui Kalacci, a ‘Zita’, homenageada na segunda peça da suíte de Astor. Comenta-se que Anibal, além de beber exemplarmente, também seria adepto das trilhas de pó cândido – e dai? Como diria o fantasma do velho Platão naquele poema do Yeats. Com a palavra Mr. Wilde: ‘não lamentemos que o poeta seja bêbado, mas que nem todo bêbado seja poeta’. Ora, este texto acaba se afigurando uma homenagem a Anibal, mas por que não, se a música presente já o é? Dando uma de Xenofonte para com Sócrates, vão aqui uns ‘ditos e feitos memoráveis’ de Pichuco. Quase à maneira de um teórico musical barroco discorrendo sobre a ‘teoria dos afetos’, Troilo nos diz: “El tono de la gente triste es el re menor. Re, fa, la es el acorde de los pobres, porque tiene color gris. La gente que sufre está toda en re menor.” Ainda em tom filosófico: “El sacrificio no está nunca en renunciar a lo que uno es. El verdadero sacrificio está en seguir siendo lo que uno es.” Palavras de Dona Zita: “Hoy va a tocar como Dios. Siempre toca como Dios cuando anda cerca del Diablo”. A um passo do fim Anibal deu todas suas camisas para um amigo, alegando que lá em cima não faria frio. O disco foi gravado em Milão, em 1975, ano da morte de Troilo e obviamente da composição da suíte a ele dedicada. Na gravação temos a participação do violinista Antonio Agri e de Daniel Piazzolla (filho do homem) aos sintetizadores.
Ambas as suítes têm algo em comum: beleza, densidade, intensidade, tanguedia, tragédia, tragicomédia, todas as dores e delícias do abismo de maravilhas que é a música de Astor. Talvez seja uma heresia, mas acresci ao disco as duas faixas de Astor em companhia de Troilo, descidas do youtube, que me parecem bem raras e fenomenais: ‘Volver’ e ‘El Motivo’. Se for pecado, o fogo eterno não me assusta depois dos verões bahianos. Estas suítes são o que certo escritor chamaria de uma longa jornada noite adentro. Coragem! Vale a pena, pois que de pequena a alma nada tem quando se trata de Piazzolla. Para que esse texto tenha sabor de filmes de James Bond, com alguma emoção a mais antes do final verdadeiro, só gostaria de mencionar que existe um Dia do Bandoneón, instituído pelo congresso Argentino em 2005, na data de 11 de julho, aniversário de Aníbal Troilo, um dos maiores em seu instrumento e no gênero musical, o imorredouro Tango.
Suíte Troileana / Lumière – Astor Piazzolla
Suite Troileana:
1) Bandoneón
2) Zita
3) Whiski
4) Escolaso
Lumiere (banda de sonido del film de J. Moreau):
5) Soledad
6) Muerte
7) El Amor
8) Evasión
9 El Motivo – Astor e Troilo duo
10 Volver – Astor e Troilo duo
Wellbach
gracias !
Piazzolla es nuestro gran músico, gran intérprete, gran compositor.
Y Troilo, un corazón en el bandoneón.