Muitas maneiras de dizer Martha
Por Juan Forn no Página 12 (traduzido e complementado por Milton Ribeiro)
O Japão costuma idolatrar os virtuosos do piano, porém se um pianista ou músico cancela um concerto no último momento, as consequências são implacáveis. Certa vez, o famoso Arturo Benedetti Michelangeli recusou-se a tocar por algum motivo. Em resposta, confiscaram seu piano pessoal e o mundo musical nipônico declarou-o persona non grata pelo resto da vida. Martha Argerich, hoje com 75 anos, décadas atrás também suspendeu um concerto em Tóquio, o último de sua primeira turnê do Japão, que estava sendo apoteótica. O imperador estaria presente, mas Martha brigara com seu namorado da época, o regente Charles Dutoit, e pegou um avião para o Alaska sem avisar ninguém. Jamais seria perdoada, só que… No ano seguinte, voltou ao Japão pagando sua passagem e deu 14 concertos sem receber nada. O mesmo organizador que tinha sido lesado por ela recebeu a renda de todos os 14 concertos, só que… Ela fez com que um pianista angolano — um dos muitos jovens que Martha auxiliou — sentasse a seu lado para virar as páginas da partitura. O angolano usava uma túnica sem mangas e a exposição da pele masculina no Japão é considerada quase tão obscena como o cancelamento de um concerto, mas ninguém disse nada porque Martha Argerich é algo sobre-humano para os japoneses.
Martha Argerich já tocou com lombalgia, com infecção dentária, em cadeira de rodas, de minissaia (pois perderam sua mala no aeroporto), com grama no cabelo (fizeram-na tocar numa floresta), mas só os concertos que ela suspendeu ficaram famosos. Declara que o que a sufoca desde os oito anos de idade são algumas das características da vida no mundo da música clássica: “Eu não quero ser uma máquina de tocar piano. Vivo sozinha, toco sozinha, ensaio sozinha, como sozinha, durmo sozinha. É muito pouco para mim”. Daniel Barenboim, que a adora, disse: “Martha fez todo o possível para destruir sua carreira, mas não conseguiu”. O primeiro concerto foi cancelado aos dezessete anos, “só para saber como eu me sentiria.” Aos vinte anos, com uma carreira brilhante pela frente, ela passou três anos sem se aproximar de um piano, assistindo TV em um pequeno apartamento em Nova York. Quando o dinheiro acabava, trabalhava como secretária. Afinal, para algo devia servir ter os dedos tão rápidos. A poucas quadras dali, vivia Vladimir Horowitz. Ela tinha a intenção de ir falar com ele para dizer: “Ajude-me a voltar a tocar piano”. Nunca se atreveu a uma visita. Melhor, pois Horowitz estava há dez anos sem tocar em público, submetia-se a sessões regulares de eletrochoque e só aceitava gravar discos em sua própria casa. Mas Argerich, como sabemos, voltou a tocar. Após sua consagração no Concurso Chopin em Varsóvia, em 1965, ela foi ao estúdio de Abbey Road gravar um álbum, porque todos os seus amigos estavam em Londres. Deixaram-na sozinha com um piano no estúdio. Ela pediu uma jarra de café, olhou hesitante para o teclado e executou três vezes o repertório que tinha escolhido. Abandonou a jarra de café vazia e nem ouviu o que tinha gravado. E passou a morar em uma espécie de pensão musical chamada Clube de Londres.
Quem morava lá? Barenboim, Jacqueline Du Pré, Nelson Freire, Fou-Tsong, Kovacevic, todos com apenas um único telefone na entrada do prédio cheio de vazamentos, pianos, sofás comidos pelas traças e cinzeiros. Todos em total liberdade e camaradagem. Havia gente que estava na casa para tocar algum instrumento e os que estavam lá para ouvir e conviver. Para quase todos, aquela comunidade era uma espécie de interlúdio feliz, mas ela entendeu que queria viver assim para sempre. Alugou um orfanato do século XIX, em Genebra — cuja porta não tem chave — povoou-a de pianos, gatos e sofás e recebeu todos os jovens pianistas em crise que a procuraram. Ela os adotava até a recuperação. O(a) adotado(a) tocava piano, participava de jogos de adivinhação, dançava e cozinhava para as filhas de Martha quando ela saía em turnê. Ela tem três filhas de três homens diferentes, apesar de a vida em comunidade lhe dar um ar respeitoso de mulher casada.
Há um belo documentário filmado por sua filha mais nova. É a história íntima da mãe e das filhas. Em uma cena, todas estão sentadas na grama pintando as unhas dos pés. As filhas decidem pintar cada dedo da mãe de uma cor diferente. A agitada Annie, segunda filha (do citado Dutoit), diz que sua lembrança mais viva da infância é a de ficar deitada debaixo do piano, olhando os pés descalços de sua mãe até dormir. “Isto é minha mãe, mais do que seus cabelos, cigarros e gestos: onde já se viram pés tão grandes e tão femininos ao mesmo tempo?”. Stephanie, a mais jovem — diretora do documentário e filha do referido Stephen Bishop Kovacevich –, conta sobre a primeira vez que acompanhou sua mãe num concerto e sobre sua imensa provação: “Tudo era muito solene, muito dramático, eu não gostei, me senti estranha”. Ouviu todo o concerto angustiada nos bastidores até que sua mãe voltou: “Eu estava exausta e ela dez anos mais jovem.” Lyda, a mais velha e a única que já é mãe — é também violoncelista profissional –, fala de quando a mãe foi operada de um feio melanoma em 1999. Depois de três horas e meia na sala de cirurgia, ela estava feliz e radiante em contraste com o esgotamento dos cirurgiões. Eles se recusaram a fazer uma cirurgia convencional para abrir a caixa torácica de Martha, pois “uma pianista precisa de todos os músculos do seu corpo para tocar”.
Até hoje Martha Argerich avisa seus companheiros de palco para não lhe beijarem a mão ou tocarem seu cabelo. Ela não gosta. Já não vive em Genebra, mas em Bruxelas, numa casa também está cheia de pessoas, gatos e pianos. Como Tchékhov, que construiu uma casa para sua família e amigos e um quarto afastado para escrever, ela tem um pequeno apartamento em Paris onde apenas cabem um piano, uma cama, uma televisão e uma imagem de Liszt presa com fita adesiva na parede. Seu próximo projeto é uma pensão para artistas aposentados, como a que fundou Verdi em Milão para cantores que ficaram sem voz. De todas as suas formidáveis frases — “Quando os pianos não me querem, não os toco de jeito nenhum”, “Eu acho que eu nunca me senti exatamente mulher, só consigo me ver como a menina de cinco anos e o menino de quatorze que me habitam”, “Chopin é ciumento, exclusivo, faz com que você toque mal qualquer outro compositor”, “Como me saí hoje? Como um cavalo selvagem ou como um carrossel de cavalinhos?” — a minha favorita é “Sou um pouco infantil. Se fosse inteiramente infantil não diria”.
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Milton Ribeiro escreve:
(1) Há uns dez anos, fui pedir um autógrafo a Martha Argerich após um concerto. Como já tenho certa experiência, não levei um CD, mas um disco de vinil para que a assinatura saísse maior. A foto da capa era bonita pacas. Ela pegou o disco com a mão direita e tapou a boca com a esquerda, fazendo cara de admiração. Olhou para mim e disse:
— Como eu era bonita! Agora sou tão feia, tão horrível, uma bruxa velha.
Comecei a responder que não era nada disso e ela fez um gesto mandando eu me calar:
— Não minta, por favor.
(2) Em janeiro deste ano, vi Martha Argerich tocar o Concerto Nº 3 de Prokofiev no Southbank Center, em Londres, com a Orquestra Filarmônica de São Petersburgo sob a regência de seu velho amigo Yuri Temirkanov. Foi um arraso. Não é somente uma das músicas que mais amo como é uma espécie de “Concerto de Martha”. Ninguém toca aquilo como ela, com aquela miraculosa exatidão e sensibilidade. Após a introdução, quando ela começou a tocar… Olha, não lembro de outra oportunidade em que eu chorei num concerto. Não houve escândalo, ninguém viu, mas aconteceu.
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Brahms / Lutoslawski / Prokofiev / Rachmaninov / Tchaikovsky: Music for Two Pianos
Piotr Tchaikovsky (1840-1893) · The Nutcracker – Suite
1. I. Ouverture miniature:- The Nutcracker, Suite from the Ballet (transcribed for two pianos by Nicolas Economu)
2. Marche:- The Nutcracker, Suite from the Ballet (transcribed for two pianos by Nicolas Economu), II. Danses caractérisque
3. Danse de la Fée Dragée:- The Nutcracker, Suite from the Ballet (transcribed for two pianos by Nicolas Economu), II. Danses caractérisque
4. Danse russe Trepak:- The Nutcracker, Suite from the Ballet (transcribed for two pianos by Nicolas Economu), II. Danses caractérisque
5. Danse Arabe:- The Nutcracker, Suite from the Ballet (transcribed for two pianos by Nicolas Economu), II. Danses caractérisque
6. Danse Chinoise:- The Nutcracker, Suite from the Ballet (transcribed for two pianos by Nicolas Economu), II. Danses caractérisque
7. Danse Mirlitons:- The Nutcracker, Suite from the Ballet (transcribed for two pianos by Nicolas Economu), II. Danses caractérisque
8. III. Danse des Fleurs:- The Nutcracker, Suite from the Ballet (transcribed for two pianos by Nicolas Economu)
Sergei Rachmaninov (1873-1943) · Suite No.2 for two pianos
9. I. Introduction (Alla marcia):- Suite No. 2 in C Op. 17
10. II. Valse (Presto):- Suite No. 2 in C Op. 17
11. III. Romance (Andantino):- Suite No. 2 in C Op. 17
12. IV. Tarentelle (Presto):- Suite No. 2 in C Op. 17
Sergei Rachmaninov (1873-1943) · Six Morceaux for piano four hands
13. No. 1, Barcarolle (G minor):- 6 Morceaux Op. 11
14. No. 2, Scherzo (D major):- 6 Morceaux Op. 11
15. No. 3, Thème russe (B minor):- 6 Morceaux Op. 11
16. No. 4, Valse (A major):- 6 Morceaux Op. 11
17. No. 5, Romance (C minor):- 6 Morceaux Op. 11
18. No. 6, Slava (C major):- 6 Morceaux Op. 11
Disc: 2
Johannes Brahms (1833-1897) · Sonata in F minor for two pianos, Op. 34b
1. Allegro non troppo:- Sonata in F minor for 2 pianos Op.34b
2. Andante, un poco adagio:- Sonata in F minor for 2 pianos Op.34b
3. Scherzo (Allegro):- Sonata in F minor for 2 pianos Op.34b
4. Finale (Poco sostenuto – Allegro non troppo – Presto non troppo):- Sonata in F minor for 2 pianos Op.34b
Johannes Brahms (1833-1897) · St Antoni Variations
5. Theme – ‘St Anthony Choral’. Andante:- Variations on a theme by Haydn for 2 Pianos Op.56b
6. Variation I. Andante con moto:- Variations on a theme by Haydn for 2 Pianos Op.56b
7. Variation II. Vivace:- Variations on a theme by Haydn for 2 Pianos Op.56b
8. Variation III. Con moto:- Variations on a theme by Haydn for 2 Pianos Op.56b
9. Variation IV. Andante:- Variations on a theme by Haydn for 2 Pianos Op.56b
10. Variation V. Poco presto:- Variations on a theme by Haydn for 2 Pianos Op.56b
11. Variation VI. Vivace:- Variations on a theme by Haydn for 2 Pianos Op.56b
12. Variation VII. Grazioso:- Variations on a theme by Haydn for 2 Pianos Op.56b
13. Variation VIII. Poco presto:- Variations on a theme by Haydn for 2 Pianos Op.56b
14. Finale. Andante:- Variations on a theme by Haydn for 2 Pianos Op.56b
Sergei Prokofiev (1891-1953) . Symphony No.1 in D Major, Op.25 “Classical” (for two pianos):
15 I. Allegro 4:11
16 II. Larghetto 3:55
17 III. Gavotte. Non troppo Allegro 1:31
18 Finale. Molto vivace 4:20
Witold Lutosławski (1913-1994)
19 Variations on a Theme by Paganini for two pianos 5:34
Martha Argerich
Mirabela Dina
Gabriela Montero
Lilya Zilberstein
Polina Leschenko
Yefim Bronfman
Giorgia Tomasi
PQP
Monumental demonstração de amor e respeito à argentina Martha Argerich. Ela bem merece e todos sabemos porque.
Confesso que não sei tanto de Guiomar Novaes como sei de Martha. E esta vossa demonstração de aprêço será causa de eu pesquisar e me aprofundar um pouco mais sobre a brasileira. Parabéns a vocês dois. É isso aí.
abraços.
São duas Deusas do piano! E estou preparando uma homenagem a uma terceira, a portuguesa Maria João Pires…
Aí é covardia, Pleyel, já estou aguardando desde já a tua postagem. Obrigado e abraços