Quero discutir com vocês um pouco sobre música modal. Para entender melhor boa parte das obras de Pärt que postei até agora e as que virão no futuro, é bom ter uma noção do que se está escutando.
Imaginem algo circular, que não tem um fim, mas apenas uma progressão estável e contínua, variando muito pouco em sua forma e sempre retornando para os mesmos pontos. Essa ideia de circularidade não é apenas a ideia de história que tinham, por exemplo, os gregos antigos, ou os povos ameríndios do século XVI, é uma ideia que predominou na construção musical que veio do oriente e que se fixou por séculos no ocidente, o chamado cantochão (mais conhecido como canto gregoriano). A música ocidental como a conhecemos, a qual chamamos tonal, só veio a nascer com a Ars Nova no século XIII. Ao contrário da música modal, que anda em círculos, a música tonal possui uma construção teleológica, ou seja, com um telos, ou um fim. A música tonal poderíamos dizer, é como uma montanha russa, cheia de altos e baixos, enquanto a música modal, permanence constante e linear.
Um bom exemplo do que quero dizer é o segundo movimento de Tabula Rasa, Silentum, onde a música permanece constante e parece estar num ciclo infinito. Semelhantemente, quando forem ouvir a Kanon Pokajanen, entre um Ode e outro pode lhes parecer estar na mesma música, e durante vários momentos ao longo do álbum alguns modos se repetem. Se pensarmos bem, é até contraditório que o cristianismo, religião que delimita um fim pra história, possa conter em sua cultura algo de cíclico, sem fim. Mas a musica modal ocidental é resultado do contato com o oriente, cuja visão da história é, em algumas culturas, cíclica. Por isso que, um compositor, que em pleno final do século XX recupera a imemorável tradição musical medieval sacra, veio a surgir justamente no leste europeu, sob o cristianismo ortodoxo, que, querendo ou não, ainda conserva certas influências do oriente medieval.
Este é um álbum para se ouvir no momento mais espiritual e calmo possível. Um dia nublado, silencioso, uma enorme paz no espírito e aquele sentimento de que ouvir qualquer coisa dramática demais não vai cair bem. Desligue a TV (como brincou o próprio Pärt sobre como essa música deveria ser ouvida), o celular, e sinta a beleza e o imenso poder de uma fé.
Arvo Pärt (1935): Kanon Pokajanen for soloists & mixed choir
CD1
Kanon Pokajanen
01 Ode I
02 Ode III
03 Ode IV
04 Ode V
05 Ode VI
CD2
01 Kondakion
02 Ikos
03 Ode VII
04 Ode VIII
05 Ode IX
06 Prayer After the Canon
Estonian Philharmonic Chamber Choir
Tõnu Kaljuste, conductor
Ave Moor, alto
Kaia Urb, soprano
Tiit Kogerman, tenor
Luke
Prezado Luke,
Gostaria de parabenizá-lo pelo sucinto e ótimo texto acerca do que é Música Modal e de suas diferenças em relação à Tonal. Acabo de salvá-lo em meus arquivos. Ainda, pelos posts de Arvo Pärt, compositor que, pouco a pouco, vou começando a ouvir e gostar.
Cordiais saudações,
Nilton Maia
Agradeço seu comentário Nilton, fico feliz de saber que meu texto lhe foi útil.
Um grande abraço.
Luke, os Modos não se referem a estrutura dos intervalos utilizados numa escala NAO temperada? entendo o que vc colocou, de grande ajuda, acerca do aspecto ciclico… mas fiquei sem saber se o Avo Part utiliza ou nao escala temperada. desculpe se a pergunta for sem sentido… estou tentando aprender mais aqui neste site magnifico. obrigado
Não importa muito se a escala é temperada ou não, isso vai da afinação dos instrumentos (incluindo a voz). Os modos referem-se sim à estrutura dos invervalos dentro da escala padrão de sete notas. O que caracteriza o sistema tonal é a chamada resolução do trítono, que não existe no sistema modal. Na escala de Dó, por exemplo, o trítono é formado pelo intervalo Fá-Si, que se resolve respectivamente em Mi-Dó. Já um Dó modal (isto é, não tonal) busca evitar esse trítono, pois este é considerado uma dissonância bastante grande, e quando este aparece de qualquer forma, faz-se alguma outra coisa com ele ao invés de resolvê-lo como no sistema tonal.
[ ]s
Luke,
Obrigado pela bela explicação sobre a música do Arvo Part. Ele entrou definitivamente na minha vida depois do filme A grande beleza, reforçado pelos links do PQP.
Quanto ao fato da circularidade, o cristianismo advoga pela vida eterna. Então estas sonoridades são coerentes.
Feliz Natal,
joão
Ótimo texto e ótimo compartilhamento!
Diria que entre compositores ainda vivos, Arvo Pärt é um dos meus favoritos, ao lado da Sofia Gubaidulina. Pra mim, a música de ambos é divina.
Estou feliz por saber que mais obras dele virão. Belo trabalho!