Nota: esta postagem, assim como todas as demais com obras de Heitor Villa-Lobos, não contém links para arquivos de áudio, pelos motivos expostos AQUI
Todo mundo pensava que meu pai tinha morrido sem deixar sucessores. Todavia, ele teve casos amorosos fortuitos por aí afora e eu vim a ser fruto de um deles. Não interessam, nesse momento, mais detalhes: minha história vai ser revelada bem aos poucos. Estou aqui para mostrar o quanto a música clássica brasileira e americana [das três Américas] tem oferecido ao resto mundo obras tão dignas de serem ouvidas e apreciadas quanto às do resto do mundo.
Não vou ficar chamando meu pai de “pai”, senão vão dizer que entrei neste blog por amizade nepotista entre ele e o genitor de PQP, FDP e CDF. Além do mais, ele nunca soube de minha existência. Doravante, ele é o “Villa”, alcunha pelo qual todos o conhecem.
Meu presente de boas-vindas é este raro CD que vos posto: a primeira gravação mundial de Magdalena, com a desconhecida Orquestra New England e solistas mais desconhecidos ainda, lançada em 1988. Magdalena é uma obra sui generis dentro do catálogo villalobiano: nem uma ópera cômica, nem um musical parecido com os demais que conhecemos. E vocês podem perguntar: Villa-Lobos escreveu um musical? Sim.
Histórico
Robert Wright e George Forrest, dois letristas da Broadway tinham realizado uma bem sucedida adaptação de uma opereta de Grieg para os palcos nova-iorquinos e queriam lançar um espetáculo que tivesse como cenário a América do Sul. Não tinham uma história pronta, somente os personagens principais, e decidiram procurar Villa-Lobos por sua fama. Foram até pra França aprender francês in loco porque sabiam que ele não falava nada de inglês, só no idioma de Debussy, Chopin e Lully.
Voltaram para os States e tentaram viajar de Nova Iorque pro Rio umas três ou quatro vezes, mas sempre dava pau no avião e eles desistiram, até que souberam que o Villa tava indo pra lá com Mindinha e José Vieira Brandão. Wright e Forrest não queriam uma composição original, mas fazer uma adaptação de obras já existentes de Villa-Lobos. Por isso vocês vão reconhecer o Coral da Bachianas n° 4, Remeiros do São Francisco, peças do Guia prático (A maré encheu, Na corda da viola e Garibaldi foi à missa), a Impressões seresteiras do Ciclo brasileiro etc.
Magdalena estreou sob ótimas críticas em 1948 – quando o Villa estava sendo operado pela primeira vez para tratar do câncer de bexiga que iria vitimá-lo mais tarde – e foi apresentada em Los Angeles, San Francisco e Nova Iorque durante cerca de três meses. Todos os detalhes que envolvem o nascimento da obra estão no encarte, em inglês, narrados pelos próprios libertistas.
Enredo
Pedro e Maria, habitantes da tribo dos muzos, vivem às margens do Magdalena, maior rio da Colômbia, no ano de 1912. Ela é a chefe da tribo e leal devota de Padre José, que parte para uma missão evangelizadora e deixa sob guarda dela a imagem de Nossa Senhora que protege a tribo. Os muzos, que trabalham na mina de diamantes do General Carabaña, entram em greve e o Major Blanco, supervisor da mina, viaja à França para reportar a situação ao seu superior bon vivant, que mora em Paris e se cuja nobre razão de viver se resume a incrementar sua invejável adega. Pedro presenteia Maria com uma esmeralda que ambos acharam quando crianças.
General Carabaña passa a maior parte do tempo no Moulin Rouge de Teresa, o Little Black Mouse Café. A triunfal entrada da cafetina, digo, da empresária é um dos momentos mais engraçados da obra do Villa – méritos para a solista que a interpreta, de comicidade vocal única (pra não dizer que ela tem uma voz bem esquisita).
Major Blanco transmite as más notícias ao patrão e este tenta seduzir Teresa a partir para a Colômbia junto consigo, prometendo-lhe um colar com cem diamantes. Ela reluta em se desfazer do querido café, mas ele persuade Zoogie, astrólogo de Teresa, a convencê-la e ela cai na lábia do antepassado de Walter Mercado. No Magdalena, enquanto o patriarca dos muzos canta as belezas do rio, Pedro e os demais índios botam um jukebox defeituoso pra funcionar aos socos e pontapés. A tática dá certo, até o aparelho se espatifar de vez e deixar que o velho índio termine sua canção.
Maria e os muzos preparam uma festa para receber o patrão. Pedro, rebelde e nada fã do General Carabaña, chega com o ônibus lotado de índios bêbados da tribo chivor e a confraternização acaba em pancadaria. Pedro leva Maria para dançar na floresta e os chivores aproveitam o descuido para roubar a imagem de Nossa Senhora. Ela descobre que Pedro forjou o plano. Ele pede perdão e se declara para ela, propondo o casório para quando Padre José retornar à tribo.
O General proíbe qualquer assembléia até que a greve esteja acabada, mas os muzos se rebelam. Enquanto isso, ele prepara um grande baile em sua fazenda, para o qual Teresa ficou encarregada de organizar o banquete. Ela descobre que o General negociou a paz com seus subordinados aceitando se casar com Maria, o que o impede de explorá-los como vinha fazendo, e decidiu dar à chefe dos muzos o colar de diamantes outrora prometido à mestre-cuca. Teresa planeja, então, matá-lo empanturrado de comida, literalmente.
Após o baile, Teresa emenda um quitute atrás do outro até General Carabaña morrer de ataque cardíaco com a pièce de resistance e ela se apossar do desejado colar. Padre José volta à aldeia e Maria lhe conta tudo o que ocorreu na ausência dele. O ônibus de Pedro se despedaça num desfiladeiro e ele escapa da morte pelas preces da amada, mas ela desiste do amor dele por sua recusa em reconhecer o milagre que o salvou. Ele se arrepende e chega à aldeia com a imagem de Nossa Senhora em seus braços, pedindo Maria em casamento. Padre José abençoa a união e todos os muzos entoam em coro o grand finale.
Apêndice
Adquiri o Little Black Mouse Café na década de 1940 e o rebatizei lusitanamente de Café do Rato Preto (“Ratinho Preto” não soaria bem). A posteriori, expandi o negócio e abri franquias em todo o mundo. Aqui no Brasil, há filiais em São Paulo, Rio de Janeiro, Campinas, Recife, Porto Alegre, Belém, Curitiba, João Pessoa, Salvador, Brusque (SC) e Brasília. Desde já, vocês estão convidados a dar um pulo no Café do Rato Preto mais próximo e passar horas agradáveis discutindo música, jogando bilhar e fumando um bom charuto.
Heitor Villa-Lobos (1887-1959) – Magdalena (primeira gravação mundial)
1. The Jungle Chapel: a) Women Weaving b) Peteca! c) The Seed Of God – Charles Damsel/Muzo Indians
2. The Omen Bird – Faith/Women
3. My Bus And I – Kevin Gray/Children/Passengers/Muzos
4. The Emerald – Kevin Gray/Faith Esham
5. The Civilized People – Charles Repole/The Astrologer/George Rose/Habitues & Staff Of Teresa’s Little Black Mouse Cafe
6. Food For Thought – Judy Kay/Habitues
7. Colombia Calls: a) Come To Columbia b) Plan It By The Planets… – Keith Curran/George Rose/Charles Repole/Judy Kay/Habitues & Staff
8. The River Port: a) Magdalena b) The Broken Pianolita (A Dance) – The Old One/Indian youths
9. Festival Of The River: a) River Song b) Pedro Wrecks The Festival (A Dance) – Faith Esham/Children/Muzos/Tribal Elder/Kevin Gray/Chivor Indian Men
10. Guarding The Shrine OF The Madonna: s) The Forbidden Orchid b) The Theft (A Dance) – Faith Esham/Kevin Gray/Chivor Men
11. The Shining Tree – Kevin Gray/Faith Esham/Muzos
12. Lost – Faith Esham/Kevin Gray
13. Freedon! – Kevin Gray/Muzos
14. In The Kitchen – Judy Kay/George Rose
15. A Spanish Waltz – Carabana’s Guests
16. Piece De Resistance – Judy Kay/Carabana’s Guests
17. Teh Madonna’s Return: a) The Emerald Again (Reprise) b) Finale: The Seed Of God – Faith Esham/Kevin Gray/Charles Repole/Kevin Gray/Children/Muzos
Orchestra New England
Regência: Evans Haile
Com: Judy Kaye, George Rose, Faith Esham, Kevin Gray e Jerry Hadley
BAIXE AQUI
CVL
Puxa, que estréia!
Uau.. é só o que tenho a dizer… bem vindo, Ciço…
Excelente estréia. Parabéns.
Cícero,
Welcome home!
A sua,
Clara Schumann
grande estréia!!!!!!! Espero que continue assim… Aliàs, será que o Cícero teria o maravilhoso Concerto para Violão e Orquestra do Villa????
gostaria também de perguntar ao FDP se, já que ele esté postando a integral das grandes óperas de Wagner, se também não poderia postar os Wesendonk Lieder de Wagner (na versão original, para piano e voz, e na versão para orquestra e voz).
parabéns a este blog! é por coisas como essa que ainda tenho gosto de usar a internet!
um abraço.
Valeu, pessoal.
Espero que os fãs do blog gostem também.
Muito bom, CVL, parabéns!
Lembrando a todos que a gravação dos Choros de Villa-Lobos da Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo)está sendo muito bem recebida (o volume 1 recebeu o Diapason D’or). E que outra obra brasileira desconhecida (tão desconhecida que nem lembro o nome do compositor, acho que é Francisco Braga), Jupyra, teve sua primeira gravação mundial realizada por essa magnífica orquestra.
Aproveitem que esses cd’s estão a preços acessíveis (R$32,00). E o meu tem o autógrafo do John Neschling! :p
Abração!
CVL,
vc não teria o “Assobio a jato”? Há anos que procuro…
Obrigado,
Francisco
Olá Villa!
Olá todo mundo!!
Oh Villa! Você chegou mesmo a todo vapor, heim!
Parabéns pelo que aceitou fazer!
Claro que via nos mostrar, com freqüência, o que o Villa Pai fez.
De bom ou de não tão bom.
Todo mundo é assim.
Até mesmo Schubert.
(Essa estória de Villa Pai e Villa Filho ainda vai dar confusão…).
Não cheguei a ouvir a Magdalena toda.
Uma obra que foi feita para ser, também, vista perde muito de seu objetivo quando o visual é eliminado.
Sobretudo quando já conhecemos,”em outro cenário”, a maioria das Peças utilizadas.
É interessante observar como Villa-Lobos soube adaptar tão bem esse conjunto de obras ao “gosto popular” Norte-Americano.
De fato, a estrutura, mesmo tendo aqui e ali, ritmos, instrumentos e até mesmo melodias brasileiras, veste a capa de um típico musical americano do norte (sem México e Canadá).
Na verdade, meu caro Villa, ainda não sei se, para mim, a obra de seu Pai está à Altura Dele.
É preciso ter paciência para ouvir (sem simultaneamente ver), aquela tulha de mesmices deformadas por uma encomenda que, provavelmente, foi aceita por razões não apenas musicais.
Grandes Gênios, as vezes, são forçados pelas cicunstâncias a não criarem, mas, apenas, fazerem.
Bem! Capacidade para fazer qualquer obra músical, Villa-Lobos tinha de sobra.
No entanto, as circunstâncias, as vezes, falam mais alto do que a capacidade, mesmo daquela de um Gênio.
Será que é por isto que esta obra está tendo sua primeira audição por aqui tão tardiamente?
…e… …também… …essa “estória” de que “Wright e Forrest não queriam uma composição original” é muito estranha.
Estranha demais…
…não queriam ou não podiam?
Bem, vou auvi-la aos pedacinhos para ver, mais tarde, o que o conjunto me diz.
De qualquer forma, você está de parabéns, caríssimo Villa. Inclusive por justificar, de forma excelente, o também caríssimo Villa!
…além pelo magnífico “marketing” do Café!!!
Quanto está custando a franquia e qual é a cobertura dada aos franqueados?
Um grande abraço a você, pela magnífica extréia e um abração a todos por poderem usufruir de um blog tão aberto e significativo.
Edson
Sim!!!
Sem querer deixei passar a indagação: existem outras gravações de Magdalena além da que você postou?
Abração.
Edson
Oi, Edson.
Você, como sempre, muito participativo aqui no blog. Obrigado pela acolhida. Quando eu estiver novamente no Recife (acredito seu B de Mello é de Bandeira de Mello), o convidarei a dar um pulo no Café do Rato Preto da rua da Aurora (tudo por minha conta). Um dia espero que ele funcione dentro do Teatro de Santa Isabel.
Respondendo:
– Não há confusão entre minha alcunha e a do Villa. Eu sou Cícero, ou Ciço, se preferir.
– Não há outra gravação da Magdalena. Esta é a primeira e única gravação mundial. Existe uma gravação anterior, em vinil, de uma suíte sinfônica de excertos do musical. Quanto à execuções no Brasil, que eu saiba, Magdalena foi encenada em anos recentes, não me lembro onde.
– No encarte (pena que somente em inglês) está explicada a preferência de Forrest e Wright por uma adaptação em vez de uma obra inédita (coisa que o próprio Villa indagou a eles): a partir do momento em que eles escolheram uma história que se passasse América do Sul, quiseram que a música fosse de um compositor de lá, mas quiseram também se valer da popularidade – e ao mesmo popularizar mais ainda – de melodias famosas do compositor escolhido, tal qual haviam feito em Songs of Norway (1944), que é uma “Magdalena” com temas de Edvard Grieg.
Grande Abraço.
Olá CVL.
Obrigado pela reposta, pelo convite e pelas explicações.
É! De fato o Villa deveria estar em um estado de saúde bem precário (e todos nós sabemos que realmente estava) para aceitar uma encomenda naquelas condições.
Mas é ótimo, como já foi dito, postar-se o Bom, o Excelente, o Ótimo e o Menos Ótimo porque, assim, niguém vira Divindade como é o caso de… …bem… …não vou provocar…
…deixa pra la…
Um grande abraço a todos.
Abração, CLV
Edson
Ooh la La!!!
Gracias
Malcolm
Ca-ra-cas, para não dizer Bogotá!! Baixei essa peça há mais de mês, achando que era mera curiosidade mas iria ser uma obra menor… Agora fui ouvir e fiquei de queixo caído!! Obra menor coisa nenhuma, sô!!
Inclusive tem uma coisa engraçada: me incomoda MUITÍSSIMO ouvir português brasileiro com impostação lírica. Como a Magdalena é cantada em inglês não tive esse problema e pude apreciar muito mais a escrita de solo vocal do nosso camaradinha… rsrs
Aí até saí fazendo uma busca no Google e encontrei notícia sobre uma montagem da Magdalena prevista para 2010 em Paris.
Isso foi no The Villa-Lobos Magazine, http://villa-lobos.blogspot.com , mantido por Dean Fry no Canadá… Talvez todo mundo aqui já conheça e eu esteja chovendo no molhado, mas para mim foi uma surpresa; acho que o melhor site de atualidades sobre o Villa que já vi. Só que em inglês, né?… Que coisa!!
Por favor, estou precisando muito da partitura do String Quartet no. 3 do Villa-Lobos. Ja procurei em tudo que e site e nao consigo encontrar.
Bom, meu nome e Fabio Pires, sou brasileiro e moro nos EUA. Estou estudando piano performance e classical composition em Cleveland Institute of Music, Ohio.
Agradeco antecipadamente
Fabio