Dmitri Shostakovich (1906-1975) – Integral das Sinfonias – A Décima-terceira (CDs 10 e 11 de 11)

Sinfonia Nº 13 (Babi Yar), Op. 113 (1962)

Após o equívoco da Sinfonia Nº 12 — lembrem que até Beethoven escreveu uma medonha Vitória de Wellington, curiosamente estreada na mesma noite da sublime 7ª Sinfonia, mas este é outro assunto… –, Shostakovich voltaria às boas relações com a música sinfonia da forma mais gloriosa possível: pela Sinfonia Nº 13, Babi Yar. Iniciava-se aqui a produção de uma seqüência de obras-primas que só terminaria com sua morte, em 1975. Esta sinfonia tem seus pés firmemente apoiados na história da União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial. É uma sinfonia cantada, quase uma cantata em seu formato, que conta com a nada desprezível colaboração do grande poeta russo Evgeny Evtuchenko (conforme alguns, como a Ed. Brasiliense, porém pode-se encontrar a grafia Ievtuchenko, Yevtuchenko ou Yevtushenko, enfim!)

O que é, afinal, Babi Yar? Babi Yar é o nome de uma pequena localidade situada perto de Kiev, na atual Ucrânia, cuja tradução poderia ser Barranco das Vovós. Ali, em 29 e 30 de setembro de 1941, teve lugar o assassinato de 34 mil judeus pelos nazistas. Eles foram mortos com tiros na cabeça e a participação comprovada de colaboradores ucranianos no massacre permanece até hoje tema de doloroso debate público naquele país. Nos dois anos seguintes, o número de mortos em Babi Yar subiu para 200 mil, em sua maioria judeus. Perto do fim da guerra, os nazistas ordenaram que os corpos fossem desenterrados e queimados, mas não conseguiram destruir todos os indícios.

Ievtuchenko criticou a maneira que o governo soviético tratara o local. O monumento em homenagem aos mortos referia-se às vítimas como ucranianas e russas, o que também eram, apesar de saber-se que o fato determinante de suas mortes era o de serem judeus. O motivo? Ora, Babi Yar deveria parecer mais uma prova do heroísmo e sofrimento do povo soviético e não de uma fatia dele… O jovem poeta Ievtuhenko considerou isso uma hipocrisia e escreveu o poema em homenagem aos judeus mortos. O que parece ser uma crítica de importância relativa para nós, era digna de censura, na União Soviética. O poema fui publicado na revista Literatournaia Gazetta e causou problemas a seu autor e depois, também a Shostakovich, ao qual foram solicitadas alterações que nunca foram feitas na sinfonia. No Ocidente, Babi Yar foi considerado prova da violência anti-semita na União Soviética, mas o próprio Ievtuchenko declara candidamente em sua Autobiografia Precoce (Ed. Brasiliense, 1987) que a tentativa de censura ao poema não teve nada a ver com este gênero de discussão e que, das trinta mil cartas que recebeu falando em Babi Yar, menos de trinta provinham de anti-semitas… É tudo muito estranho.

O massacre de Babi Yar é tão lembrado que não serviu apenas a Ievtuchenko e a Shostakovich, tornando-se também tema de filmes e documentários recentes, assim como do romance Babi Yar de Anatoly Kuznetsov. Não é assunto morto, ainda.

O tratamento que Shostakovich dá ao poema é perfeito. Como se fosse uma cantata em cinco movimentos, os versos de Ievtuchenko são levados por um baixo solista, acompanhado de coral masculino e orquestra. Principalmente em Babi Yar e em Na Loja, é música de impressionante gravidade e luto; a belíssima linha melódica ora assemelha-se a um serviço religioso, ora ao grande modelo de Shostakovich, Mussorgski; mesmo assim, fiel a seu estilo, Shostakovich encontra espaço para seu sarcasmo.

Babi YarCalma crueldade: soldados alemães examinam as roupas dos judeus mortos em Babi Yar. (Adotando o tom sarcástico tão caro a Shostakovich, diria que, hoje, as roupas poderiam ser palestinas e os soldados… Deixa pra lá!)

A seguir, aproveitarei a excelente descrição que Clovis Marques fez para o concerto que incuía a Sinfonia Nº 13, Babi Yar, realizado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 27/07/2006. Volto no final do post:

Chostakovich, ‘for ever’Clovis Marques – Opinião & Noticia
30/07/2006

O contato em condições ideais com uma obra-prima do século XX é raro na vida musical de um mortal carioca. Na última quinta-feira, a Sinfonia nº 13 de Chostakovich passou pelo Teatro Municipal com uma carga tão densa de significado e beleza que quase não surpreendeu que a interpretação e o acabamento, a cargo da Petrobras Sinfônica, estivessem também em esferas muito altas.

“Babi Yar” é como ficou conhecida esta sinfonia-cantata para coro masculino, baixo e orquestra composta e estreada em 1962 em Moscou. O título vem do poema de Ievgueni Evtuchenko que causara rebuliço ao ser publicado no ano anterior na “Literaturnaia Gazeta”, tocando na chaga do anti-semitismo a propósito do massacre cometido pelos nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial, no local conhecido como “ravina das mulheres”, perto de Kiev.

A partir desse texto de dura indignação, e apesar dos problemas que uma tal inspiração de “protesto” ainda geraria na União Soviética pós-stalinista, Chostakovich construiu um painel de extraordinária força em torno de duas ou três mazelas trágicas do seu tempo: o medo e a opressão, o conformismo e o carreirismo, o massacre quotidiano num Estado policial e a possibilidade de superação pelo humor e a intransigência.

Em linguagem quase descritiva, contrastando a severidade da orquestra com a impostação épica das vozes, “Babi Yar” tem um poder de evocação propriamente cinematográfico: raramente se ouviu música tão plástica e de poder de invenção tão sustentado, com um grau de concentração expressiva que sublima a revolta, o negrume e a angústia como poucas vezes na música pós-romântica.

O realismo e a concisão imagética dos poemas são admiravelmente esposados pelo estilo alternadamente sombrio e irruptivo da música de Chostakovich, que apesar da forma atípica, para uma sinfonia, dota a obra de continuidade estrutural e organicidade musical mesmerizantes – para não falar da invenção melódica tão sua, que associamos indelevelmente à Rússia soviética. Não obstante o grande efetivo orquestral e a tensão dos clímaxes, as texturas são parcimoniosas e o coro, declamando ou murmurando, canta quase sempre em uníssono ou em oitavas – mais um elemento dessa pungência feita de desolação e sobreexcitação nervosa.

O primeiro movimento alterna estrofes que exploram o horror e a culpa de Babi Yar com relatos de dois outros episódios, sobre Anne Frank e um menino massacrado em Bielostok. No segundo movimento, os tambores em ritmo marcado, a maior animação da música e o tom enfático das vozes falam da resistência que o “Humor” jamais deixará de oferecer à tirania. “Na loja”, o Adagio que se segue, descreve pictoricamente as filas de humilhadas donas-de-casa em uma linha sinuosa nas cordas graves, entrelaçada a outra que, no registro médio, evoca a maneira como elas se insinuam cautelosas até o balcão. “Elas nos honram e nos julgam”, diz o poema, enquanto blocos e castanholas fazem as vezes de panelas e garrafas se entrechocando. A reserva da estupefação moral explode na última estrofe: “Nada está fora do alcance da força delas”.

A subjugada linha sinuosa torna-se reta, com permanente vibração surda na percussão, ao prosseguir sem interrupção no episódio seguinte, em ameaçador ‘sostenuto’ das cordas graves sob solo da tuba: é o “Medo”, componente constante da vida soviética. Frente ao negrume até aqui prevalecente, a sinfonia conclui em uma satírica meditação sobre o que é seguir “Carreira”. Em orquestração e harmonização reminiscentes da música do tcheco Martinu (1890-1959), no emprego de flautas e oboés oscilantes em ritmo de valsa lenta, ficamos sabendo que a verdadeira carreira não é a dos que se submetem, mas a de Galileu, Shakespeare ou Pasteur, Newton ou Tolstoi: “Seguirei minha carreira de tal forma que não a esteja seguindo”, conclui o baixo, com o eco do sino que abrira pesadamente a sinfonia, agora aliviado pela sonoridade onírica da celesta.

A Orquestra Petrobras Sinfônica esteve esplêndida, tocando como gente grande em cada naipe e coletivamente, sob a batuta do jovem maestro chileno Rodolfo Fisher. O barítono americano David Pittman-Jennings, embora não tenha aquele baixo profundo que impressiona nas interpretações russas, ostentou o metal nobre, a projeção plena e a capacidade de nuançar que permitiram total imersão nessa escorchante fantasia pânica. O Coro Sinfônico do Rio de Janeiro, dirigido por Julio Moretzsohn, esteve mais coeso e homogêneo que nunca, em sua formação exclusivamente masculina. Faltou apenas a reprodução/tradução dos poemas.

Shostakovich Kondrashin Yevtuschenko<— Shostakovich (esquerda), com o poeta Evgeni Ievtuchenko (direita) e o regente Kiril Kondrashin na estréia da controversa 13ª Sinfonia.

A seguir, eu, P.Q.P. Bach, copiei para vocês trechos traduzidos por Lauro Machado Coelho dos poemas utilizados na 13ª Sinfonia. Notem como o poema Babi Yar não é só aquilo que diz Clóvis Marques, mas uma clara alusão ao anti-semitismo soviético. Depois, mais comentários sobre a grande estréia da peça na URSS.

Babi Yar

Tenho medo.
Tenho hoje tantos anos
quanto o próprio povo judeu.

Parece que agora sou um judeu.
Perambulo no Egito antigo.
E eis-me na cruz, morrendo.
E ainda trago em mim a marca dos pregos.
Parece que Dreyfus sou eu.
Os filisteus são os que me denunciam e são o meu juiz.
Estou atrás das grades.
Estou cercado,
perseguido, cuspido, caluniado.
E as mocinhas, com suas rendas de Bruxelas,
rindo, me enfiam a sombrinha na cara.

(…)

Eu, chutado por uma bota, sem forças,
em vão peço piedade aos pogromistas.

(…)

Que a Internacional ressoe
quando enterrarem para sempre
o último anti-semita da terra.
Não há sangue judeu no meu sangue,
mas sou odiado com todas as forças
por todos os anti-semitas, como se judeu fosse.
E é por isso que sou um verdadeiro russo.

Humor

Czares, reis, imperadores
soberanos do mundo inteiro,
comandaram as paradas
mas ao humor não puderam controlar.

Ó euzinho aqui!
De repente me desembaraço de meu casaco,
faço um gesto com a mão e “Tchau!”.

Na loja

Dar-lhes o troco errado é uma vergonha,
enganá-las no troco é um pecado.

(…)

E, enquanto enfio no bolso as minhas massas,
olho, solene e pensativo,
cansadas de carregar seus sacos de compras,
as suas nobres mãos.
Elas nos honram e nos julgam,
nada está fora do alcance de suas forças.

Medos

Lembro do tempo em que ele era todo-poderoso,
na corte da mentira triunfante.
O medo se esgueirava por toda parte, como uma sombra,
infriltava-se em cada andar.
Agora é estranho lembrarmo-nos disso,
o medo secreto que alguém nos delate,
o medo secreto de que venham bater à nossa porta.
E depois, o medo de falar com um estrangeiro…
com um estrangeiro? até mesmo com sua mulher!
E o medo inexplicável de, depois de uma marcha,
ficar sozinho com o silêncio.

Não tínhamos medo de construir em meio à tormenta,
nem de marchar para o combate sob o bombardeio,
mas tínhamos às vezes um medo mortal,
de falar, nem que fosse com nós mesmos.

Uma Carreira

Os padres diziam que Galileu era mau e doido.
Que Galileu era doido.
Mas, como o tempo o demonstrou,
o doido era o mais sábio.
Um cientista da época de Galileu,
não era menos sábio que Galileu.
Ele sabia que a Terra girava,
mas tinha uma família
e, ao subir com sua mulher na carruagem,
achava que tinha feito sua carreira,
quando, na realidade, a tinha destruído.

Para compreender nosso planeta,
Galileu correu riscos.
É isso — eu penso — que é uma carreira.
Por isso, viva sua carreira,
quando é uma carreira como
a de Shakespeare e Pasteur,
Newton e Tolstói.
Liev?
Liev!
Por que eles foram caluniados?
Talento é talento,
digam o que disserem.
Os que insultaram estão esquecidos,
mas nós lembramos dos que foram insultados.

Com estes textos, foi difícil estrear a sinfonia. Em 1962, todos tiram o corpo fora, até o velho amigo Mravinski alega excesso de trabalho. Shostakovich volta-se para um moço talentoso — Kirill Kondrashin –, que aceita reger. O regente escala Viktor Nietchpailo para cantar na noite de estréia, deixando o jovem Vitali Gromadski “na reserva”. Sábia providência, pois Nietchpailo não suporta as pressões, acrescidas de um bate boca entre Ievtushenko e Nikita Kruschev, numa reunião entre artistas que devia dissuadi-lo a manter o texto de Babi Yar na sinfonia, e, amedrontado, cai fora. Gromadski é chamado. Muitos outros músicos “adoecem” e o coro desiste de cantar. Kondrashin e Ievtushenko dão discursos indignados e o coral retorna. Popov, o Ministro da Cultura, telefona a Kondrashin perguntando se a sinfonia pode ser apresentada sem o primeiro e quarto movimentos. Kondrashin responde que não, porque mutilaria a forma da sinfonia e todos sabem que o primeiro movimento fala sobre os anti-semitas soviéticos e de Babi Yar… “Ministro, se cortarmos, haverá reações indesejáveis…”. Ouve Popov afirmar e perguntar: “A responsabilidade é sua. Faça como achar melhor. A propósito, há algo que possa impedi-lo de reger esta noite?”. “Não, todos estamos em excelente forma…”, responde Kondrashin. Enquanto isso, as pessoas brigam pelos ingressos de um concerto que fez a Grande Sala do Conservatório vir abaixo, com os aplausos ocorrendo entre cada movimento. O CD 11 é a som desta estréia.

CD 10

SYMPHONY No.13 in B flat minor, Op.113
For Bass Solo, Bass Choir and Orchestra in B Flat Minor, Op.113, “Babi Yar”
1. Babi Yar (Adagio)
2. Yumor – Humour (Allegretto)
3. V Magazine – In the Store (Adagio)
4. Strachi – Fears (Largo)
5. Kariera – A Career (Allegretto)

Recorded: August 23, 1967
Arthur Eisen, Bass
Choirs of the Russian Republic
Alexander Yourlov, Conductor
Moscow Philharmonic Orchestra
Kirill Kondrashin, Conductor
Total time 56:06

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE

E aqui, o registro ao vivo da primeira apresentação. Esta gravação é superior à postada acima. O baixo é o excelente e corajoso Vitali Gromadski.

CD 11

Shostakovich: The Complete Symphonies – No.13
Artist: Moscow Philharmonic Orchestra cond. Kirill Kondrashin
Length: 0:56:35
Notes: Recorded live in the Large Hall of the Moscow Conservatory on December 18, 1962 with State Academic Choir, Yurlov Russian Choir, Vitaly Gromadsky (bass).

Tracks:
01 I Babi Yar (Adagio) [15:03]
02 II Humor (Allegretto) [7:52]
03 III In the Store (Adagio) [11:06]
04 IV Fears (Largo) [10:30]
05 V A Career (Allegretto) [12:04]

BAIXE AQUI (Ao Vivo – Estréia da obra) – DOWNLOAD HERE (Live – Premiere)

11 comments / Add your comment below

  1. Prezado PQP,

    Engraçado, eu já tinha ouvido falar muito sobre a Vitória de Wellington, de Beethoven, mas nunca tinha escutado tal peça. Também nunca ouvi a 12a de Shostakovich, apesar de ter uma caixa de sinfonias completas. Eu confesso que sempre fico receioso com críticas severas aos grandes mestres, sempre penso nos parâmetros pessoais utilizados para estes julgamentos e penso em mais um montão de coisas chatas. Mas finalmente eu tomei coragem e fui ouvir a Vitória de Beethoven, e assino embaixo de cada um que disse que aquilo é um fiasco. Música horrorosa… e incrível, foi publicada imediatamente antes da perfeita 7a sinfonia!

    De qualque forma eu irei ouvir a 12a mas, no momento, continuo com o meu ceticismo perante as críticas. Não me entenda mal, PQP.

    Abraço a todos

  2. Lais, estou atrasadíssimo. Logo que puder, vou lá no Orkut.

    Gilberto, são opiniões pessoais. Você pode concordar ou discordar e espernear sem problemas. A minha afirmativa peremptória vale tanto quanto a sua.

    Abraços a todos.

  3. Caro PQP,

    Sobre a sinfonia n.12, acho que todos concordam: um fiasco. Claro que o início da sinfonia até promete algo, mas no fim, parece um filme iraniano. Eu só não entendo porque os músicos ainda insistem em gravá-la. É um tipo de respeito que não entendo.

    Excelente post.

  4. Isso é maravilhoso. Belo post. Excelente texto introdutório. E o Rapid voltou a ser o velho Rapid. Tenho baixado tudo sem problema algum.
    Muito obrigado, PQP, como diria meu sobrinho, vc é o cara.

  5. Soube que agora os nazistas fizeram um acordo com os judeus. Vamos ver se os judeus deixam de atirar pedra do outro lado e os almães deixam de retaliar com força bruta.

    tsc, tsc.

  6. Meu primeiro contacto com Shostakovich foi através desta sinfonia, numa gravação do Haytink, que achei extremamente pesada, densa (a música, não a versão do Haitink, pois nem tinha referências para compará-la com outro maestro). Depois que li sobre o que ela procurava descrever até entendi o clima. Mas a primeira impressão ficou e pouquíssimas vezes voltei a ouvi-la. Quem sabe ouvindo agora minha impressão mude…

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