Richard Strauss (1864-1949): Vier letzte Lieder & Orchesterlieder (Norman, Gewandhausorchester, Masur)

Quando certa manhã PQP Bach acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama tomado por uma monstruosa vontade de ouvir as “Quatro Últimas Canções” de Strauss com a Jessye Norman e o Kurt Masur. Estava deitado sobre suas costas duras de torcedor colorado e, ao levantar um pouco a cabeça, olhou para a estante e não encontrou esse disco. Procurou na caixinha de busca do site e ele tampouco estava ali. Suas duas pernas, torneadas pelos quilômetros corridos nas calçadas da capital gaúcha, repousavam desamparadas diante de seus olhos.

“Eu é que não vou ouvir esse disco no YouTube”, pensou.

Não era um sonho. E foi assim que, como o bater de asas da famosa borboleta e seu efeito, nasceu a cadeia de acontecimentos que fez esse disco vir parar aqui no blog. Lacuna braba, que agora a gente vem mui humildemente preencher. O próprio PQP diria: Im-per-dí-vel! Incontornável, basilar, seminal, referência, enfim, dê o nome que quiser, esse disco é tudo isso e mais um pouco. João Gilberto dizia que não sabia se a perfeição existe, mas que a perfeição o incomodava pra caramba. Pois bem, existe sim, e é esse disco aqui.

Jessye Norman clicada por Irving Penn, 1983

Um repertório transcendental, uma cantora estupenda e uma orquestra em estado de graça, sob o comando de um de seus Kapellmeister mais marcantes. Ruim, não teria como ser, mas putz, que encontro, que milagre, que grande feito humano que é esse disquinho. Se Deus está morto, como querem alguns (entre os que acreditam que Ele(a)/ele(a) existe), esse disco bem que poderia ter sido tocado em seu funeral — que, segundo os relatos, foi um senhor rolê, com o trio final de Der Rosenkavalier regido por Sir Georg Solti, nas vozes de Marianne Schech, Maud Cunitz e Gerda Sommerschuh. Mas essa é outra história, para outro dia.

Compostas quando Strauss tinha 84 anos e já vislumbrava o doce suspiro da morte, as Vier letzte Lieder são algumas das mais belas canções de todo o repertório de concerto. O sublime como poucas vezes foi atingido na história dessa nossa combalida espécie. Quem as reuniu como um ciclo de quatro pontas não foi o compositor, mas seu amigo e editor Ernest Roth, da Boosey & Hawkes. As três primeiras canções são a partir de poemas de Hermann Hesse, e a última, Im Abendrot, de Joseph von Eichendorff. Aliás, um poemaço:

Im Abendrot
Wir sind durch Not und Freude

gegangen Hand in Hand;
vom Wandern ruhen wir
nun überm stillen Land.
Rings sich die Täler neigen,
es dunkelt schon die Luft.
Zwei Lerchen nur noch steigen
nachträumend in den Duft.
Tritt her und laß sie schwirren,
bald ist es Schlafenszeit.
Daß wir uns nicht verirren
in dieser Einsamkeit.
O weiter, stiller Friede!
So tief im Abendrot.
Wie sind wir wandermüde—
Ist dies etwa der Tod?

A tradução da Wikipedia, não creditada, vai assim:

No crespúsculo
Através de dores e alegrias,

nós caminhamos de mãos dadas;
agora descansamos da nossa errância
sobre uma terra silenciosa.
Em torno de nós se inclinam os vales
e já escurece o céu.
Apenas duas cotovias alçam voo,
sonhando no ar perfumado.
Aproxime-se, e deixe-as voejar.
Logo será hora de dormir.
Venha, que não nos percamos
nesta grande solidão.
Ó paz imensa e tranquila
tão profunda no crepúsculo!
Como nós estamos cansados dessa jornada —
Seria talvez isso já a morte?

Strauss infelizmente não viveu para ouvir a obra; a estreia foi em maio de 1950, com Kirsten Flagstad cantando e ninguém mais, ninguém menos que Wilhelm Furtwängler regendo a Philharmonia Orchestra. O lado B do disco é um apanhado de seis outras canções orquestrais de Strauss, de diferentes opuses e poetas. Uma mais linda que a outra. Você, caro leitor, cara leitora, tem alguma preferida?

O velho Strauss sorrindo para você que, além de nos ler, comenta nas postagens do blog

BAIXE AQUI / DOWNLOAD HERE

Richard Strauss (1864-1949)

Vier Letzte Lieder
1 – Frühling (Hesse)
2 – September (Hesse)
3 – Beim Schlafengehen (Hesse)
4 – Im Abendrot (Eichendorff)

Orchesterlieder
5 – Cäcilie, op. 72, nº 2 (Hart)
6 – Morgen, op. 27, nº 4 (Mackay)
7 – Wiegenlied, op. 41 nº 1 (Dehmel)
8 – Ruhe, meine Seele, op. 27 nº 1 (Henckell)
9 – Meinem Kinde, op. 37 nº 3 (Falke)
10 – Zueignung, op. 10 nº 1 (Von Gilm, orch. Robert Hegel)

Jessye Norman, soprano
Gewandhausorchester Leipzig
Kurt Masur, regência

“E o salário, ó”

Karlheinz

5 comments / Add your comment below

  1. Melhor texto para começar uma segundona: leve, informativo, hilário, provocador! O ser humano é muito complexo e Strauss não foi diferente, cheio de ambiguidades, tal como seu contemporâneo Heidegger. Apreciemos, então, seu lado luminoso…

Deixe um comentário